Teoria dos princípios, de Humberto Ávila - Por Marcelo Pichioli da Silveira

15/12/2017

Confira a análise no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=RtTB1KybSa8 

Segundo consta de seu currículo lattes, Humberto Ávila é Professor Titular de Direito Tributário da USP e da UFRGS. Além da obra que hoje resenhamos, Teoria dos Princípios, Ávila também escreveu o Sistema Constitucional Tributário (5.ª edição pela Saraiva); a Teoria da Igualdade Tributária (3.ª edição pela Malheiros); e a Teoria da Segurança Jurídica (4.ª edição pela Malheiros).

Sua Teoria dos Princípios tem três capítulos: 1.º) “Considerações Introdutórias”; 2.º) “Normas de Primeiro Grau: Princípios e Regras”; e 3.º) “Normas de Segundo Grau: Postulados Normativos”.

As “considerações introdutórias” são curtas, mas nelas Humberto Ávila já traz considerações que não podem ser ignoradas. Segundo nosso autor, “a doutrina constitucional vive, hoje, a euforia do que se convencionou chamar de Estado Principiológico”, o que traz “exageros e problemas”[1]. A clássica distinção entre regras e princípios acabou sendo vítima de uma verdadeira falta de “clareza conceitual na manipulação das espécies normativas”: princípios foram “baralhados com regras, axiomas, postulados, ideias, medidas, máximas e critérios”, e temos um problema com a “alusão acrítica à proporcionalidade, não poucas vezes confundida com justa proporção, com dever de razoabilidade, com proibição de excesso, com relação de equivalência, com exigência de ponderação, com dever de concordância prática ou, mesmo, com a própria proporcionalidade em sentido estrito[2].

O objetivo da obra, diz Humberto Ávila, é o de “contribuir para uma melhor definição e aplicação dos princípios e das regras”: é preciso “manter a distinção” entre ambos, estruturando essas diferenças “sob fundamentos diversos dos comumente empregados pela doutrina”. E “tudo isso sem abandonar a capacidade do controle intersubjetivo da argumentação, que, normalmente, descamba para um caprichoso decisionismo”[3].

Por alguma razão, essa distinção entre princípios e regras “virou moda”[4]. Infelizmente, regras e princípios perfazem “espécies normativas” separadas com os “foros da unanimidade”; e é justamente “a unanimidade” que “termina por semear não mais o conhecimento crítico das espécies normativas, mas a crença de que elas são dessa maneira, e pronto”[5].

E pergunta nosso autor: 

A análise dessas afirmações [as rotineiras diferenciações entre regras e princípios] semeia, porém, algumas dúvidas. Será mesmo que todas as espécies normativas comportam-se como princípios ou regras? Será mesmo que as regras não podem ser objeto de ponderação? Será mesmo que as regras sempre instituem obrigações peremptórias? Será mesmo que o conflito entre as regras só se resolve com a invalidade de uma delas ou com a abertura de uma exceção a uma delas? Este trabalho não só responde a essas e outras tantas perguntas que surgem na análise da distinção entre princípios e regras, como apresenta um novo paradigma para a dissociação entre princípios e regras, como apresenta um novo paradigma para a dissociação e aplicação das espécies normativas[6]

E, como é de sabença geral, Humberto Ávila propõe, ao lado das regras e dos princípios, uma nova categoria de espécie normativa: são os postulados normativos aplicativos, por ele definidos como “as condições de aplicação dos princípios e das regras”[7].

O 2.º capítulo — a distinção entre “princípios” e “regras” proposta por Humberto Ávila: segundo as ideias de Riccardo Guastini, nosso autor propõe que “normas não são textos [...], mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos”. É dizer: “os dispositivos [de lei] se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado”[8].

Isso explicaria porquê, em determinadas hipóteses, há norma, “mas não há dispositivo”: “quais são os dispositivos que preveem os princípios da segurança jurídica e da certeza do Direito? Nenhum. Então há normas, mesmo sem dispositivos específicos que lhes deem suporte físico”; n’outros casos há dispositivo, “mas não há norma”, como a menção de “proteção de Deus” no preâmbulo constitucional e na declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, técnica de controle de constitucionalidade segundo a qual o dispositivo fica mantido, “mas as normas construídas a partir dele, e que são incompatíveis com a Constituição Federal, são declaradas nulas”[9].

O intérprete: como a função da ciência jurídica “não pode ser considerada como mera descrição do significado”, é certo que “a interpretação não se caracteriza como um ato de descrição de um significado previamente dado, mas como um ato de decisão que constitui a significação e os sentidos de um texto”[10]. Neste sentido, pode-se dizer que a atividade do intérprete “não consiste em meramente descrever o significado previamente existente dos dispositivos”, pois “sua atividade consiste em construir esses significados”[11].

Ainda que Humberto Ávila entenda que o intérprete cria a norma (norma = imputação da interpretação ao texto de lei), ele reconhece que há traços mínimos de significado “incorporados ao uso ordinário ou técnico da linguagem”: um Wittgenstein diria que aí estão os “jogos de linguagem”; um Heidegger invocaria o “enquanto hermenêutico”; um Miguel Reale preferiria falar em “condição a priori intersubjetiva”; um Aulis Aarnio optaria por falar em “condições dadas da comunicação”; um Bydlinsk falaria na “comunidade linguística”[12].

Por isso, ainda que o intérprete lance sentido ao texto e que o resultado desse lançamento seja a norma, é impossível negar que há limites

Compreender “provisória” como permanente, “trinta dias” como mais de trinta dias, “todos os recursos” como alguns recursos, “ampla defesa” como restrita defesa, “manifestação concreta de capacidade econômica” como manifestação provável de capacidade econômica, não é concretizar o texto constitucional. É, a pretexto de concretizá-lo, menosprezar seus sentidos mínimos. Essa constatação explica por que a doutrina tem tão efusivamente criticado algumas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal[13]

De qualquer maneira, “a qualificação de determinadas normas como princípios ou como regras depende da colaboração do constitutiva do intérprete”[14].

Compêndio doutrinário de distinções entre princípios e regras: antes de maiores considerações, Humberto Ávila faz um apanhado geral das considerações feita na doutrina a respeito das diferenças entre os princípios, de um lado, e das regras, de outro. Vejamos...

a) para Josef Esser, “princípios são aquelas normas que estabelecem fundamentos para que determinado mandamento seja encontrado”; “a diferença entre os princípios e as regras seria uma distinção qualitativa”[15];

b) para Karl Larenz, os princípios seriam “normas de grande relevância para o ordenamento jurídico, na medida em que estabelecem fundamentos normativos para a interpretação e aplicação do Direito, deles decorrendo, direta ou indiretamente, normas de comportamento”; em Larenz “os princípios seriam pensamentos diretivos de uma regulação jurídica existente ou possível, mas que ainda não são regras suscetíveis de aplicação, na medida em que lhes falta o caráter formal de proposições jurídicas, isto é, a conexão entre uma hipótese de incidência e uma consequência jurídica”, de maneira que “os princípios indicariam somente a direção em que está situada a regra a ser encontrada, como que determinando um primeiro passo direcionador de outros passos para a obtenção da regra”[16];

c) para Claus-Wilhelm Canaris, “duas características afastariam os princípios das regras. Em primeiro lugar, o conteúdo axiológico: os princípios, ao contrário das regras, possuiriam um conteúdo axiológico explícito e careceriam, por isso, de regras para sua concretização. Em segundo lugar, há o modo de interação com outras normas: os princípios, ao contrário das regras, receberiam seu conteúdo de sentido somente por meio de um processo dialético de complementação e limitação”:

d) em Ronald Dworkin, constata-se um estudo com “um ataque geral ao Positivismo (general attack on Positivism), sobretudo no que se refere ao modo aberto de argumentação permitindo pela aplicação do que ele viria a definir como princípios (principles); para ele “as regras são aplicadas ao modo tudo ou nada (all-or-nothing), no sentido de que, se a hipótese de incidência de uma regra é preenchida, ou é a regra válida e a consequência normativa deve ser aceita, ou ela não é considerada válida. No caso de colisão entre regras, uma delas deve ser considerada inválida. Os princípios, ao contrário, não determinam absolutamente a decisão, mas somente contêm fundamentos, os quais devem ser conjugados com outros fundamentos provenientes de outros princípios. Daí a afirmação de que os princípios, ao contrário das regras, possuem uma dimensão de peso (dimension of weight), demonstrável na hipótese de colisão entre os princípios, caso em que o princípio com peso relativamente maior se sobrepõe ao outro, sem que este perca sua validade”[17];

e) Robert Alexy partiu “das considerações de Dworkin”, e “precisou ainda mais o conceito de princípios”, defendendo que “os princípios jurídicos consistem apenas em uma espécie de normas jurídicas por meio da qual são estabelecidos deveres de otimização aplicáveis em vários graus, segundo as possibilidades normativas e fáticas. Com base na jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, Alexy demonstra a relação de tensão ocorrente no caso de colisão entre os princípios: nesse caso, a solução não se resolve com a determinação imediata da prevalência de um princípio sobre o outro, mas é estabelecida em função da ponderação entre os princípios colidentes, em função da qual um deles, em determinadas circunstâncias concretas, recebe a prevalência. Os princípios, portanto, possuem apenas uma dimensão de peso e não determinam as consequências normativas de forma direta, ao contrário das regras. É só a aplicação dos princípios diante dos casos concretos que os concretiza mediante regras de colisão. Por isso, a aplicação de um princípio deve ser vista sempre com uma cláusula de reserva, a ser assim definida: ‘Se no caso concreto um outro princípio não obtiver maior peso’. É dizer o mesmo: a ponderação dos princípios conflitantes é resolvida mediante a criação de regras de prevalência, o que faz com que os princípios, desse modo, sejam aplicados também ao modo tudo ou nada (Alles-oder-Nichts). Essa espécie de tensão e o modo como ela é resolvida é o que distingue os princípios das regras: enquanto no conflito entre regras é preciso verificar se a regra está dentro ou fora de determinada ordem jurídica (problema do dentro ou fora), o conflito entre princípios já se situa no interior desta mesma ordem (teorema da colisão)”; por isso Alexy fala de “princípios como deveres de otimização aplicáveis em vários graus segundo as possibilidades normativas e fáticas”[18].

Essa evolução doutrinária é importante para compreender as teses de Humberto Ávila: ele mesmo salienta que o compêndio supra permite a demonstração dos “critérios usualmente empregados” para diferenciar princípios e regras. Eles seriam: 1.º) o critério do caráter hipotético condicional; 2.º) o critério do modo final de aplicação; 3.º) o critério do relacionamento normativo; e 4.º) o critério do fundamento axiológico[19]. Isso é explorado com maior detalhamento entre as páginas 60 e 87 da obra agora resenhada.

As definições (afinal de contas) de Humberto Ávila: depois de explorar todas as concepções majoritárias sobre as definições dos princípios, o autor avisa que é possível, agora sim, “propor uma definição”. É o que passa a fazer no subcapítulo n.º 2.4 da obra. De todos os critérios de dissociação (entre regras e princípios), parece-me ter destaque aquele que diz respeito à “natureza do comportamento prescrito” (item n.º 2.4.2.1 da obra examinada). Aí Humberto Ávila diz: 

As regras podem ser dissociadas dos princípios quanto ao modo como prescrevem o comportamento. Enquanto as regras são normas imediatamente descritivas, na medida em que estabelecem obrigações, permissões e proibições mediante a descrição da conduta a ser adotada, os princípios são normas imediatamente finalísticas, já que estabelecem um estado de coisas para cuja realização é necessária a adoção de determinados comportamentos. Os princípios são normas cuja qualidade frontal é, justamente, a determinação da realização de um fim juridicamente relevante, ao passo que características dianteira das regras é a previsão do comportamento[20]

Os princípios, diz ávila, “estabelecem um estado ideal de coisas a ser atingido (state of affairs, Idealzustand)”, tendo eles “caráter deôntico-teleológico: deôntico, porque estipulam razões para a existência de obrigações, permissões ou proibições; teleológico, porque as obrigações, permissões e proibição decorrem dos efeitos advindos de determinado comportamento que preservam ou promovem determinado estado de coisas”[21].

E as regras? As regras, diz Ávila... 

... podem ser definidas como normas imediatamente finalísticas, ou seja, normas que estabelecem indiretamente fins, para cuja concretização estabelecem com maior exatidão qual o comportamento devido; e, por isso, dependem menos intensamente de sua relação com outras normas e de atos institucionalmente legitimados de interpretação para determinação da conduta devida. Enfim, as regras são prescrições cujo elemento formal é o descritivo[22]. 

As regras, prossegue nosso autor, têm “caráter deôntico-deontológico: deôntico, porque estipulam razões para a existência de obrigações, permissões ou proibições; deontológico, porque as obrigações, permissões e proibições decorrem de uma norma que indica ‘o que’ deve ser feito” [23].

De um lado, pois, temos os princípios, vistos por Ávila como “normas-do-que-deve-ser (ought-to-be-norms)”[24]; e de outro temos as regras, que “são normas-do-que-fazer (ought-to-do-norms)[25].

Há ainda outros critérios distintivos exibidos na obra, mas não cabe, numa resenha e dentro de nossas finalidades, exaurir todos esses pontos. Um quadro esquemático[26] é proposto pelo próprio Ávila, e segue abaixo:

 

O problema “do uso inconsistente da distinção fraca entre regras e princípios: trecho que chama atenção na obra examinada é aquele constante do subcapítulo n.º 2.4.4. Segundo Humberto Ávila, “há, grosso modo, duas correntes doutrinárias que definem os princípios”, sendo uma delas a que os colocam como “normas de elevado grau de abstração (destinam-se a um número indeterminado de situações) e generalidade (dirigem-se a um número indeterminado de pessoas) e que, por isso, exigem uma aplicação influenciada por elevado grau de subjetividade do aplicador; contrariamente às regras, que denotam pouco ou nenhum grau de abstração [...] e generalidade [...], e que, por isso, demandam uma aplicação com pouca um nenhuma influência de subjetividade do intérprete”[27].

Para Ávila, “essa distinção baseada no grau de abstração e generalidade é bastante difundida na doutrina do Direito Público”, e ela “tem provocado duas inconsistências: uma semântica e outra sintática”. A inconsistência semântica “está na impropriedade da definição de princípio com base no elevado grau de abstração e generalidade”, e a principal crítica contra essa ideia “é a de que toda norma, porque veiculada por meio da linguagem, é, em alguma medida, indeterminada, com base em algo que é comum a todas elas – a indeterminação” [28]. A inconsistência semântica “traz implicações no plano sintático: muitos autores que definem os princípios como aquelas normas portadoras de propriedades específicas (elevado grau de abstração e generalidade) insistem em qualificar de ‘princípios’ normas que não têm aquelas propriedades. Ora, se princípio é definido como uma norma de elevado grau de abstração e generalidade e que, por isso, exige uma aplicação com elevado grau de subjetividade, pergunta-se: a prescrição normativa permitindo o abatimento, do imposto sobre produtos industrializados a pagar, do montante incidente nas operações anteriores pode ser considerada um princípio? A prescrição normativa que exige a publicação da lei que instituiu ou aumentou um imposto até o final do exercício anterior ao da cobrança pode ser considerada um princípio? A prescrição normativa que proíbe o legislador de tributar fatos ocorridos antes da edição da lei pode ser considerada um princípio? A prescrição normativa que proíbe a instituição de impostos sobre determinados fatos pode ser considerada um princípio? A proibição da utilização de prova ilícita pode ser considerada um princípio? Claro que não. Onde estão as referidas propriedades de elevado grau de abstração e generalidade no caso da norma que exige a anterioridade para a instituição ou aumento de impostos, por exemplo? Elas não estão presentes em lugar algum. A norma que exige o comportamento de publicar a lei que instituiu ou aumentou um imposto até o final do exercício anterior ao da cobrança é uma regra, por exemplo”[29].

A proposta de Ávila: nosso autor traz, então, definições para princípios e para regras[30]. Veja-se:

E os postulados? Os postulados normativos são “normas sobre a aplicação de outras normas, isto é, como metanormas”[31]. Não se confundem, avisa ávila, “com as outras normas que também influenciam outras, como é o caso dos sobreprincípios”, os quais “situam-se no nível das normas objeto de aplicação”, atuando “sobre outras, mas no âmbito semântico e axiológico e não no âmbito metódico”[32].

Para Humberto Ávila, “os postulados funcionam diferentemente dos princípios e das regras”. São, pois, uma terceira espécie normativa, já que “não se situam no mesmo nível: os princípios e as regras são normas objeto da aplicação; os postulados são normas que orientam a aplicação de outras”. Além disso, “não possuem [os princípios e as regras] os mesmos destinatários: [...] são primariamente dirigidos ao Poder Público e aos contribuintes; os postulados são frontalmente dirigidos ao intérprete e ao aplicador do Direito”. Os postulados “orientam a aplicação dos princípios e das regras sem conflituosidade necessária com outras normas”[33]. Postulados se prestam ao estabelecimento de “diretrizes metódicas”; ainda que se prefira chamá-los com nomenclaturas diversas, “os postulados funcionam de forma diferente relativamente a outras normas do ordenamento jurídico”, razão esta “suficiente para trata-los de forma separada”[34].

No Direito, um dos postulados hermenêuticos seria o postulado da unidade do ordenamento jurídico; dele decorrendo um “subelemento” que Ávila chama de postulado da coerência[35], que — aparentemente — decorreria da hierarquia das normas. Veja-se a seguinte passagem da obra agora resenhada: 

Essa noção de hierarquia, conquanto importante para explicar, entre outros fenômenos, o ordenamento jurídico como estrutura escalonada de normas, é insuficiente para cobrir a complexidade das relações entre as normas jurídicas. Com efeito, várias perguntas ficam sem resposta, segundo esse modelo. Quais são as relações existentes entre as regras e os princípios constitucionais? São somente os princípios que atuam sobre as regras ou será que as regras também agem simultaneamente sobre o conteúdo normativo dos princípios? Quais são as relações existentes entre os próprios princípios constitucionais? Todos os princípios possuem a mesma função ou há alguns que ora predeterminam o conteúdo, ora estrutura a aplicação de outros? Quais são as relações entre as regras legais, já consideradas válidas, e os princípios e as regras de competência estabelecidos na Constituição? São somente as normas constitucionais que atuam sobre as normas infraconstitucionais ou será que essas também agem sobre aquelas?

Para responder a essas questões, propõe-se, como complementação a este modelo de sistematização linear, simples e não gradual, cuja falta de implementação traz consequência que se situa preponderantemente no plano da validade, um modelo de sistematização circular (as normas superiores condicionam as inferiores, e as inferiores contribuem para determinar os elementos das superiores), complexo (não há apenas uma relação vertical de hierarquia, mas várias relações horizontais, verticais e entrelaçadas entre as normas) e gradual (a sistematização será tanto mais perfeita quanto maior for a intensidade da observância dos seus critérios), cuja consequência preponderante está alocada no plano da eficácia. Entre em cena o postulado da coerência[36]

O papel dos postulados e uma “análise do uso inconsistente de normas e metanormas: para Humberto Ávila, “as normas de segundo grau, redefinidas como postulados normativos aplicativos, diferenciam-se das regras e dos princípios quanto ao nível e quanto à função. Enquanto os princípios e as regras são o objeto da aplicação, os postulados estabelecem os critérios de aplicação dos princípios e das regras E enquanto os princípios e as regras servem de comandos para determinar condutas obrigatórias, permitidas e proibidas, ou condutas cuja adoção seja necessária para atingir fins, os postulados servem como parâmetros para a realização de outras normas”[37].

Nossas críticas: seguindo os passos de Riccardo Guastini, Humberto Ávila engrandece o papel do sujeito cognoscente (= intérprete/jurista) diante de seu objeto (= texto da lei/texto da constituição). Para Adriano Soares da Costa, essa dissociação entre texto e norma na obra de Ávila acaba sendo “fundamental para o relativismo das suas conclusões teoréticas”, ao ponto de ter a sensação de que Ávila “entrou em uma embarcação e, de repente, percebeu que ela estava à deriva”; e indo adiante “para correntezas perigosas”, Humberto Ávila “tenta lançar uma âncora, sem muito peso, para evitar, ao menos, que a embarcação se perca de vez. De repente, assevera ele que essa construção da norma pelo intérprete não deve levar à conclusão de que ‘não há significado algum antes do término desse processo de interpretação’. E, surpreendentemente, assevera a existência de ‘significados mínimos’, incorporados ao uso da linguagem: ‘há sentidos que preexistem ao processo particular de interpretação’”. E questiona Adriano Soares da Costa, com o seu bom tom crítico: “como conciliar afirmações tão díspares em uma mesma página? Ou a interpretação é um ato de decisão, com uma natureza eminentemente constitutiva, e aí não haveria como se falar em significados preexistentes, ou a interpretação partiria de um dado, de estruturas preexistentes, que limitariam o processo interpretativo, de modo que pudéssemos falar em interpretações corretas ou erradas, válidas ou inválidas, justamente porque poderíamos cotejar o produto da interpretação com o texto interpretado”[38].

Há um problema muito sério em se permitir — na esteira de Ávila — a falta de diferença a priori entre regras e princípios. Assim, competiria ao intérprete essa tarefa. Não há norma a priori: “é o intérprete quem a cria”. E “mesmo existindo sentidos comumente aceitos, clareza em uma aplicação costumeira de um texto, pode o intérprete deixar de aplicá-la ou mesmo infringi-la, mediante uma nova interpretação, em que as suas razões superiores se sobrepõem às razões justificadoras do legislador ao editar a norma”[39]. As críticas de Adriano Soares da Costa não cessam aí[40]. O alagoano ainda aduz o seguinte: 

Com isso, resta claro o relativismo absoluto dessa construção teórica, que infirma qualquer segurança mínima presente no ordenamento jurídico. Ela autoriza, na verdade, toda e qualquer interpretação, de modo que não mais existem sentidos: apenas o sem-sentido do absolutismo do intérprete. Eis uma visão autoritária e ingênua do direito, que sempre combati e combato, cujas linhas são tolamente endossadas em nossas universidades de modo acrítico e perverso.

Viva o autoritarismo hermenêutico de qualquer aplicador de normas jurídicas. Viva a liberdade completa do Tribunal Superior Eleitoral para decidir desde já legitimado por essa visão subjetivista do direito, cujas interpretações estão de antemão blindadas por qualquer crítica democrática![41] 

 

[1] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 16.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 43.

[2] Idem, p. 44.

[3] Idem, p. 45.

[4] Idem, p. 45.

[5] Idem, p. 46.

[6] Idem, p. 46.

[7] Idem, p. 47.

[8] Idem, p. 50.

[9] Idem, p. 50-51 (destaquei).

[10] Idem, p. 51.

[11] Idem, p. 52.

[12] Idem, p. 53.

[13] Idem, p. 54.

[14] Idem, p. 55.

[15] Idem, p. 55.

[16] Idem, p. 55-56.

[17] Idem, p. 56-57.

[18] Idem, p. 57-58.

[19] Idem, p. 59-60.

[20] Idem, p. 95.

[21] Idem, p. 95.

[22] Idem, p. 96.

[23] Idem, p. 96.

[24] Idem, p. 95-96.

[25] Idem, p. 96.

[26] Idem, p. 102.

[27] Idem, p. 109.

[28] Idem, p. 110.

[29] Idem, p. 110-111.

[30] Idem, p. 102.

[31] Idem, p. 164.

[32] Idem, p. 164.

[33] Idem, p. 164 (destaquei).

[34] Idem, p. 165.

[35] Idem, p. 165-166.

[36] Idem, p. 168-169.

[37] Idem, p. 179 (destaquei).

[38] COSTA, Adriano Soares da. A Teoria dos Princípios de Humberto Ávila. Disponível em: https://goo.gl/i33Qyv. Acesso em 13 dez. 2017 (destaquei).

[39] COSTA, Adriano Soares da. Humberto Ávila, autoritarismo hermenêutico e o TSE. Disponível em: https://goo.gl/Zatxuc. Acesso em 13 dez. 2017.

[40] Aliás, em análise da obra Teoria da Incidência da Norma Jurídica, do próprio Adriano Soares da Costa, fizemos a seguinte afirmação: “a grande luta intelectual travada por Adriano Soares da Costa, ao menos no âmbito jurídico, é a de nos avisar que o sujeito cognoscente (o jurista) não pode tudo” (cf. SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Teoria da Incidência da Norma Jurídica, de Adriano Soares da Costa. Empório do Direito, Florianópolis, nov. 2017. Disponível em: https://goo.gl/an9XGt. Acesso em 13 dez. 2017).

[41] COSTA, Adriano Soares da. Humberto Ávila, autoritarismo hermenêutico e o TSE. Disponível em: https://goo.gl/Zatxuc. Acesso em 13 dez. 2017.

 

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