Teoria do fato consumado e direito ambiental. breves comentários sobre a súmula 613 do stj

18/11/2018

Coluna Advocacia Pública em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta Araújo

O Superior Tribunal de Justiça, em 14.05.2018, editou a Súmula n. 613, assim descrita: “Não se admite a aplicação da teoria do fato consumado em tema de Direito Ambiental”.

Os precedentes que deram origem ao enunciado sumular foram os seguintes, conforme descrição na página oficial da internet do STJi: AgRg no REsp 1491027/PB, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 13/10/2015, DJe 20/10/2015; AgRg no REsp 1497346/MS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 19/11/2015, DJe 27/11/2015; AgRg no REsp 1494681 MS, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 03/11/2015, DJe 16/11/2015; AgRg no RMS 28220/DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 18/04/2017, DJe 26/04/2017; REsp 948.921/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 23/10/2007, DJe 11/11/2009.

Da leitura desses julgados extraem-se as seguintes razões determinantes:

1. Impossibilidade de se perpetuar ou perenizar um suposto direito de poluir;

2. Não há direito adquirido à devastação;

3. Não há direito adquirido ao possuidor de boa-fé;

4. Concretização do postulado do meio ambiente equilibrado como bem comum do povo e essencial a sadia qualidade de vida

 

Por todos, mister transcrever os seguintes excertos do voto do Min. Herman Benjamim, no REsp 948.921:

No que se refere à matéria ambiental de fundo do Recurso Especial, há diversos pronunciamentos recentes do STJ. Trata-se de duas regras, ambas muito singelas. Primeiro, a propriedade é fonte de direitos, e também de deveres. Segundo, quem adquire imóvel desmatado ilegalmente, ou com irregularidades perante a legislação de proteção do meio ambiente, recebe-o não só com seus atributos positivos e benfeitorias, como também com os ônus ambientais que sobre ele incidam, inclusive o dever de recuperar a vegetação nativa da Reserva Legal e das Áreas de Preservação Permanente, cabendo-lhe, ademais, proceder à averbação daquela no Cartório Imobiliário.

[...]

Conseqüentemente, as obrigações daí decorrentes trazem clara natureza propter rem (= em razão da coisa), isto é, aderem ao titular do direito real e acompanham os novos proprietários e possuidores ad infinitum, independentemente de sua manifestação de vontade, expressa ou tácita. Se a coisa muda de dono, muda, por igual e automaticamente, a obrigação de devedor, exista ou não cláusula contratual a respeito, cuide-se de sucessão a título singular ou universal. A rigor, não se deveria sequer falar em culpa ou nexo causal, quando o juiz exige do novo proprietário (e também do possuidor) comportamentos do tipo facere (averbação, recuperação com espécies nativas e defesa desses espaços) e non facere (abstenção de uso econômico direto - caso das APPs - e exploração com corte raso, já que admitido apenas o seletivo, quanto à Reserva Legal).

[...]

Quem se beneficia da degradação ambiental alheia, a agrava ou lhe dá continuidade não é menos degradador. Por isso, o legislador se encarrega de responsabilizar o novo proprietário pela cura do malfeito do seu antecessor. Isso vale para o desmatamento, para a poluição das águas e a erosão do solo.

Da ementa, ainda se lê:

2. Inexiste direito adquirido a poluir ou degradar o meio ambiente. O tempo é incapaz de curar ilegalidades ambientais de natureza permanente, pois parte dos sujeitos tutelados – as gerações futuras – carece de voz e de representantes que falem ou se omitam em seu nome.

3. Décadas de uso ilícito da propriedade rural não dão salvo-conduto ao proprietário ou posseiro para a continuidade de atos proibidos ou tornam legais práticas vedadas pelo legislador, sobretudo no âmbito de direitos indisponíveis, que a todos aproveita, inclusive às gerações futuras, como é o caso da proteção do meio ambiente.

Nos precedentes acima elencados os suportes fáticosii foram: degradação e supressão da vegetação nativa, construção de imóvel (loteamento e casa de veraneio) em área de preservação ambiental; ocupação de área pública e de preservação ambiental, exploração de atividade de agricultura (cana-de-açúcar) em área de preservação permanente.

Notório e categórico o afastamento da teoria do fato consumado.

Já se destacouiii que a teoria do fato consumado é utilizada para manter, em definitivo, o estado em que se encontra a parte beneficiada e que seria prejudicada com a cassação da medida antecipatória satisfativa antes concedida, em razão de fundamentos tanto jurídicos, quanto metajurídicos.

Segundo Odim Brandão Ferreiraiv (2002, p. 115), o “fato consumado é o tópico jurisprudencial pretensamente a serviço da equidade por meio do qual o Judiciário, em sentença, ratifica a liminar autorizadora da prática de ato ilícito, apenas porque, no momento de apreciar o mérito da causa, o detentor do provimento cautelar ilegal já desenvolveu, de fato, a atividade que lhe interessava”.

O fato consumado, como suporte fático a subsidiar a incidência de normas jurídicas é objeto de antiga controvérsia jurisprudencial, tendo aplicação em diversas áreas do Direito além do Ambiental, tais como: liberação de mercadorias apreendidas, importação de produto sem atestado fitossanitário, saque de FGTS, construção em sítio tombado pelo patrimônio histórico nacional, ingresso, transferência e frequência de estudantes no ensino superior em Universidades Públicas sem os requisitos mínimos e ingresso no serviço público sem o preenchimento dos requisitos legais e editalícios.

A propósito desse último exemplo, o Supremo Tribunal Federal definiu o Tema n. 476 de Repercussão Geral, nos autos do RE 608482, relatado pelo Min. Teori Zavascki, em 07.08.2014, nos seguintes termos:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO REPROVADO QUE ASSUMIU O CARGO POR FORÇA DE LIMINAR. SUPERVENIENTE REVOGAÇÃO DA MEDIDA. RETORNO AO STATUS QUO ANTE. “TEORIA DO FATO CONSUMADO”, DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA LEGÍTIMA E DA SEGURANÇA JURÍDICA. INAPLICABILIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. Não é compatível com o regime constitucional de acesso aos cargos públicos a manutenção no cargo, sob fundamento de fato consumado, de candidato não aprovado que nele tomou posse em decorrência de execução provisória de medida liminar ou outro provimento judicial de natureza precária, supervenientemente revogado ou modificado. 2. Igualmente incabível, em casos tais, invocar o princípio da segurança jurídica ou o da proteção da confiança legítima. É que, por imposição do sistema normativo, a execução provisória das decisões judiciais, fundadas que são em títulos de natureza precária e revogável, se dá, invariavelmente, sob a inteira responsabilidade de quem a requer, sendo certo que a sua revogação acarreta efeito ex tunc, circunstâncias que evidenciam sua inaptidão para conferir segurança ou estabilidade à situação jurídica a que se refere. 3. Recurso extraordinário provido.

Em tema de Direito Ambiental o Código Florestal, Lei Federal n. 12.651, de 25 de maio de 2002, dispôs, em Sessões intituladas “Das Áreas Consolidadas em Áreas de Preservação Permanente” e “Das Áreas Consolidadas em Áreas de Reserva Legal”, sobre o fato consumado em algumas situações anunciadas nos arts. 61-A a 68, autorizando e disciplinando quando situações consolidadas pelo tempo podem excepcionar a proteção ambiental, sendo oportuno citar, a título ilustrativo: continuidade de atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural em áreas rurais, assentamentos do Programa de Reforma Agrária, reservatórios artificiais de água destinados a geração de energia ou abastecimento público e recomposição, regeneração e/ou compensação de degradação em Reserva Legal.

Indaga-se:

Tais exceções legais são admitidas constitucionalmente?

Como interpretar destacados preceptivos legais, doravante, com a edição da Súmula 613 do STJ?

E, nesse sentido, há criação de direito com o destacado texto “normativo”?

Sem aprofundar as hipóteses existentes dos questionamentos realizados, parecer adequado afirmar, em determinados aspectos (notadamente o social), que a Constituição Federal não estaria sendo ofendida por aquela legislação, em razão de cláusulas de abertura dispostas no art. 225, III e § 2º.

Consoante muito bem exposto por Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fensterseifer, “não é possível tolerar extremismos (fundamentalismos) ecológicos ou mesmo compreensões ‘maniqueístas’ do fenômeno ambiental, de modo a não se admitir uma tutela ecológica que desconsidere as mazelas sociais que estão, conforme já se assinalou anteriormente, na base de qualquer projeto político-econômico-jurídico que mereça a qualificação de sustentável”v.

São diálogos institucionais entre os Poderes constituídos e entre a sociedade que se impõe, porquanto “há a necessidade de transcender de um pacto social para um pacto socioambiental, em vista de contemplar o novo papel que o Estado e a sociedade desempenham no âmbito do Estado Socioambiental de Direito”vi.

Assim, o enunciado da Súmula 613 do STJ, que aduz que “Não se admite a aplicação da teoria do fato consumado em tema de Direito Ambiental” é impositivo, devendo ser interpretado e, excepcionalmente afastado, em consonância com os enunciados constitucionais e legais, desde que esses, por óbvio, estejam, de igual modo, em conformidade com a Constituição.

 

Notas e Referências

ii Adota-se, aqui, a doutrina de Pontes de Miranda, In, Tratado de Direito Privado, 4ª ed., São Paulo: Revista do Tribunais, 1983.

iii OLIVEIRA, Weber Luiz de. Estabilização da tutela antecipada e teoria do fato consumado. Estabilização da estabilização? Revista de Processo, vol. 242, ano 40, p. 223-248, São Paulo: Ed. RT, abr. 2015.

iv Fato Consumado – História e Crítica de uma Orientação da Jurisprudência Federal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 115.

v Direito constitucional ambiental, 5ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 63.

vi Idem, p. 64.

 

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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