Temer tempos sombrios, construir novos tempos: um pouco do que está vivido e do que está para ser vivido

30/04/2016

Por Paulo César Carbonari - 30/04/2016

“Quando se quer substituir a condução política dos litígios pelo tratamento gestionário dos problemas, vê-se reaparecer o conflito sob uma forma mais radical, como impossibilidade de coexistir, como puro ódio do outro”

(J. Rancière, O dissenso, 2006, p. 380).

O momento histórico é sombrio. Sombrio porque sob o sol “cujos raios gelados amadurece a sementeira da nova barbárie”. Sombrio porque o horizonte é triste, desanimador, com desfecho que parece ser de “irrefreável regressão”, resultante da “maldição do progresso irrefreável”. Estes dois fragmentos de Adorno e Horkheimer, em O conceito de Esclarecimento (1991, p. 43; p. 46), desenham com força terrível o que nos é dado viver. Assim como Arendt, que viu pequenas luzes, ou, como ela dizia, “retratos” capazes de orientar no meio do sofrimento dos tempos sombrios da primeira metade do século passado, esperamos não apenas mapear a regressão e a barbárie.

Os mais pobres e aqueles/as que ao longo de séculos pagaram com sua vida a desigualdade estrutural, a concentração do poder e da riqueza, o racismo, o patriarcalismo, o patrimonialismo e tantas outras práticas perversas seguem pagando ainda mais duramente a conta. Continuam sendo os que não tem palavra, mesmo que tenham voz, por isso sem serem ouvidos pelos patrícios que comandam o poder e o dinheiro. Parece que vão seguir pagando ainda mais duramente. O que está em jogo neste momento não é somente a democracia, o cargo da presidenta, o voto legítimo, o estado democrático de direito, o que já seria muito.

O que está em jogo é o futuro para os “deserdados”, e este já está em jogo há muito. O futuro daqueles/as que puderam ser incorporados nos últimos anos, ainda que pelo mínimo e pelo consumo descolado dos direitos, e daqueles/as que sequer chegaram a tal. Este futuro depende de muito mais do que salvar cargos ou reputações. Depende de manter aberto um horizonte que não seja sombrio. O fato de terem sido incluídos perifericamente pelo mínimo e pelo consumo é uma razão a mais para que o futuro se desenhe preocupante. A lógica do consumo faz direitos serem confundidos com méritos e privilégios – “se melhorou é porque corri atrás”, “porque eu mereço” – afinal só está incluído pelo consumo “quem pode”, se “conquistou por seu esforço” como bem de consumo, pagou. Estas distorções retornam na baixa percepção de cidadania e de direitos, em baixa vida política, em baixo compromisso coletivo. Certamente teria sido muito melhor se o tivessem sido incluídos pelo máximo e pela cidadania, pelos direitos, com direitos.

A cidadania e os direitos são rebaixados e até suplantados pela lógica do combate à corrupção tout court. O moralismo despolitizado grassa. Pelo tudo ou pelo nada, acabe-se com tudo, mesmo que o que virá depois possa ser derrota ainda maior, para menos dos mínimos e ainda mais pelo consumo para ainda mais poucos, já que talvez nem estes sobrarão – o que dizer dos direitos, sequer se chegou a eles! Claro que não há corrupção que seja aceitável, mas ela somente será enfrentada efetivamente se houver a criação de mecanismos e instrumentos não seletivos para seu enfrentamento. Não há corruptos melhores porque menos corruptos que os corruptos dos outros. Todos, sem exceção precisam ser responsabilizados.

Olhando para a história recente veremos que o que o Junho de 2013 manifestou não teve a acolhida e nem mesmo a resposta adequada ao clamor multitudinário e diverso. As potências abertas pelas novidades que ali emergiram não foram articuladas em perspectiva para que pudessem se afirmar e se converter em novas agendas de direitos capazes de impactar as decisões nas mesas dos palácios. Facilmente acorreram acólitos destes “altares” para fazer tudo ficar apaziguado e tudo ficar “resolvido” com uma pautazinha de uns quatro ou cinco pontos, fracos (e bastante falsos) – a agenda ali levantada seguiu não foi acolhida. Em termos de dissenso, cumpriu o seu papel político, mesmo que as “polícias” tenham tentado dar-lhe um lugar.

Logo aqueles que por séculos mandam – e seguiram mandando nos últimos anos via pactuações e coalizões – viram aí uma brecha para transformar o descontentamento em tentativa de reverter a agenda da sociedade brasileira. Haviam tentado isso em 2005/2006 e ainda não o tinham conseguido; tentaram novamente em 2014, eleitoralmente não o conseguiram, mesmo que politicamente tenham acumulado – e seria simplismo achar que se as personagens do segundo turno fossem outras o resultado seria melhor.

Agora, não o conseguirão eleitoralmente e nem politicamente, mas poderão consegui-lo institucionalmente – até porque parcialmente o tem conseguido pelas seletividades judiciais e midiáticas. Dizer que impeachment não é golpe porque está previsto na Constituição não é suficiente, já que a questão não é só de vício de formalidade, mas também de materialidade, dado que parece não ser sustentável a acusação de existência do crime pelo qual a mandatária é acusada, como nos repetem juristas sensatos e que, mesmo críticos do governo, seguem firmes na defesa da democracia e dizendo que há falta completa de sustentação jurídica para a proposta apreciada na Câmara. O golpe, dizem, e com eles concordamos, está exatamente em se apresentar de novo tipo, por dentro da institucionalidade, travestido.

Reclamar da seletividade e da parcialidade do sistema de justiça (Poder Judiciário, Ministério Público, Polícia e suas linhas auxiliares) e da grande mídia é necessário. Mas, em algum momento não foi? Sempre foi, sobretudo para os mais pobres e para aqueles/as que têm sua vida sacrificada no holocausto da injustiça e da violência.

No caso do sistema de justiça, os mais pobres conhecem a “condução coercitiva”, o desrespeito ao devido processo legal, a indisponibilidade da ampla defesa e vários outros desmandos como corriqueiros. Isso têm sido denunciado há décadas pelos movimentos de direitos humanos do Brasil e do mundo. Amarildo já é um ícone que, infelizmente, não é o único. A ausência do terceiro pé da justiça de transição, para além da memória e da verdade, fez com que boa parte dos operadores do sistema que atuaram na ditadura permanecessem, e alguns ainda permanecem, ativos na democracia, atuando por dentro das instituições contra sua democratização efetiva, contra a nova Constituição. Há exemplos de sobra do que isso tem significado efetivamente.

No caso da grande mídia, mais uma vez – isto porque foi assim em 1930 e em 1961 –, se forma uma articulação cuja opinião dos principais veículos é única, sem dissonâncias (se há alguma é parcial e não está entre os que compõem a grande mídia), mesmo que no caso atual haja boa parte de divergência dos principais veículos internacionais (vide manchetes de principais jornais do mundo sobre o que está ocorrendo no Brasil). A não democratização, por um lado, e a falta de fortalecimento de iniciativas alternativas e populares (rádios comunitárias, por exemplo), por outro, redundam num desamparo concreto da sociedade, que fica refém da ação massificada e massificadora da opinião única dos grandes veículos que há tempo deixaram de ser somente veículos para serem agentes do sistema econômico do qual são parte.

Abdicar de democratizar os últimos bastiões que sustentaram e fizeram a defesa da mais recente das ditaduras militares que vivemos (o sistema de justiça e a grande mídia) não poderia gerar outra consequência senão que manter neles o germe antidemocrático.

O máximo de democracia que conseguimos efetivar é do tipo double bind, aquela que só se invoca ou se defende quando convêm aos interesses sectários, seletivos e parciais: até se concorda com democracia, contanto que não tome o poder daqueles que sempre o tiveram; até se aceita direitos humanos, mas só para humanos direitos; até se invoca justiça, contanto que não tome propriedades; até se aceita igualdade entre homens e mulheres, mas querer que homens lavem louça e que mulheres ganhem o mesmo que homens, já é demais; não sé racista, mas negro na mesma turma da universidade ou no mesmo elevador não dá!

Não consolidamos a democracia, nem mesmo aquela democracia consensualista, superficial e seletiva. Estamos longe de realizar uma democracia aberta a acolher os/as sem palavra, os/as sem lugar, o resto, os/as que só podem emergir em razão de poderem divergir, de ser possível o dissenso – até porque no simples ato de reconhecer o dissenso, já se tem que reconhecer que os que discordam são parte de um mundo comum, mesmo que o mundo e o que eles queiram para o mundo possa ser exatamente destruir este mundo comum, exatamente por mantê-los na condição dos sem palavra – porque sempre negados como existência no mundo dos que ocupam todos os lugares. Para estas maiorias, os “ninguém”, como diz Galeano, sempre sobram só as patranhas que os fazem simplesmente não existir, como o que aconteceu, por exemplo, aos trabalhadores rebelados em Cien años de soledad, de Garcia Marquez.

Não temos uma democracia representativa [não fizemos a reforma política necessária, só se remendou por alto] e o que temos é o pior parlamento das últimas décadas (segundo o Diap), financiado pelo setor privado, com dinheiro privado e com dinheiro público desviado através da corrupção. O financiamento empresarial e privado de campanhas não é outra coisa do que a institucionalização da corrupção como prática “democrática” de eleição. O que há de novo nisso: talvez a revelação das quantidades, dos agentes e das fontes – não todas, parte delas, aquelas que interessa mostrar e aqueles que “se quer pegar”.

Não avançamos na democracia direta, sequer cogitamos fazer plebiscitos e referendos sobre questões cruciais. Quando propostos pela sociedade civil num exercício cidadão e informal, como no caso da reforma política, saltam os “donos do poder” assustados com os rumos do que os “sem poder” poderiam dar e logo recolhem soluções parciais e resultantes de acordos “por cima”. Logo vêm os “formadores da opinião” para dizer que propor este tipo de participação é bolivarianismo – pobres dos genebrinos, teriam eles virado bolivarianos há séculos, mesmo que rousseunianamente nem soubessem disso.

A democracia deliberativa comum nos espaços de participação crítica e de controle social, dos conselhos, conferências e outros, se revelou um grande ganho, mas também mostra o “cansaço” da irresolutividade, do ouvir que não escuta, da protelação em nome da pactuação, entre outros aspectos. Não basta fazer mais de cinquenta conferências nacionais com milhares de participantes: o que se fez com o que nelas foi “deliberado”?.

Para os “donos do poder”, os de sempre e os de ocasião, a nossa democracia ainda precisa continuar sendo como na Grécia, onde começou: só pode servir aos iguais, nunca para os/as que “não têm títulos para governar”, o povão, os que não participam porque não podem ser entendidos no que dizem, não têm o logos, a palavra, ou ao menos uma palavra que exceda o ruído e possa ser entendida pelos que estão acomodados no mundo dos que falam sempre a mesma língua, monótona, monocultural.

Para os que há pouco “chegaram ao poder” parece ter sido melhor acomodar-se ao disponível, sem inovar, sem conclamar aos/às que nunca nele estiveram a se apoderar dele, não como lugar, mas como relação, tensão, conflito, como afirmação, como disputa. Na linguagem de Rancière (2006), preferiu-se fazer “polícia” a fazer “política”. Ou seja, preferiu-se acomodar a distribuição do poder a criar as condições para que os sem palavra emergissem na cena política como sujeitos. E quando assim se fez, foi mais para incorporá-los à lógica da manutenção de sua não inclusão efetiva do que, por tê-los incorporado, produzir uma mudança substancial da lógica excludente e seletiva de sempre. Até foram chamados à participação, contanto que fosse contida e que não viesse para “atrapalhar”. Ter ampliado o poder de compra, ter aberto a universidade, ter ampliado o acesso à casa própria, ter mantido o poder de compra do salário mínimo, as aposentadorias – a lista de ações inclusivas é ótima, colaborou por demais –, incomodou muito aos que a acham excessiva. Mas, a questão é: esta inclusão serviu para tornar a sociedade consciente do imenso fosso que separa a milhões dos direitos e da dignidade ou serviu para torná-los funcionais ao próprio sistema de exclusão – estes já não estariam entre os excluídos, que seguem sendo os outros/as –, despotenciando-os em sua condição de sujeitos políticos.

Parece que ainda estamos longe de aprender que democracia não é consenso, pacto, conciliação. Entender a democracia assim é tomá-la somente como parte, parcial, aquela que interessa àqueles/as que sempre a manipularam descarregando-a da força política, despolitizando-a. A política e a democracia se fazem nas divergências, conflitos, lutas, num permanente processo de deslegitimação e de desinstitucionalização do que se faz justo por injustiça, do que se faz legal por exceção ou ilegalidade, do que se faz democrático sem participação. A política e a democracia que fazem sentido desarmam o poder como dominação e como legitimidade da dominação, qualquer tipo, todo tipo, de dominação. Uma democracia que não é capaz de desarmar as potências dominadoras e as legitimidades naturalizadas facilmente se converte no seu contrário, na legitimação da dominação, sem que esta legitimação seja legítima, fazendo com que a dominação siga, mesmo que ilegítima: seguem-se artimanhas e produzem-se processos e produtos para que tudo pareça transcorrer na naturalidade, na normalidade, na moralidade, na legalidade.

O estado democrático de direito e a legalidade, tão defendidos e invocados num contexto de completo desrespeito ao mínimo de sua vigência, pode também ser uma possibilidade funcional à manutenção da dominação e da violência, como bem lembra o jovem W. Benjamin de Para uma crítica da violência (2011). Não basta ser de direito para que seja justo e que seja democrático. Muito do Direito serve exatamente para legitimar a dominação e a manutenção da violência e da exclusão; muito do Direito é instituído à base da força e da violência. Claro que sem ele as garantias estariam ainda mais distantes e de difícil realização. Todavia não dá para confiar-lhe a democracia, nem mesmo a justiça. Elas, se puderem ser obra, o serão dos sujeitos políticos em ação e em movimento – mesmo quando sua ação seja a inação, a negação de toda a ação possível, a recusa a agir, o negar-se a fazer o que é injusto –, não serão obra de instituições, por melhores que sejam. A rede concreta, forte e vivaz que se constituiu pela base em diferentes coletivos, organizações e espaços que dá vazão a uma perspectiva contra-hegemônica e, mais do que isso, instituinte de uma nova institucionalidade que requer uma nova democracia, uma nova legalidade, paradoxalmente livre da ilegalidade nela presente, é que abre ao novo. As centenas de manifestações e de articulações que se desenharam nos últimos tempos é que podem ensejar o novo neste campo.

Há uma questão que merece uma reflexão de fundo e que diz respeito ao crescimento do poder econômico que vai atravessando o conjunto da vida social e política. A lógica do capital e sua “jaula de ferro” (Löwy, 2015) enredam o conjunto dos processos e os apequenam, fazendo-os restringir-se à compra-venda, sacrifício no altar de Moloch. Fora disso, morte. Benjamin, em O Capitalismo como Religião (2013), diz que o “capitalismo deve ser visto como uma religião” que gera “uma monstruosa consciência de culpa que não sabe como expiar, lança mão do culto, não para expiar essa culpa, mas par torná-la universal, para martelá-la na consciência e, por fim e acima de tudo, envolver o próprio Deus nessa culpa, para que ele se interesse pela expiação”, sendo que o próprio “deus” dessa religião “[...] precisa ser ocultado e só pode ser invocado no zênite de sua culpabilização”. A financeirização força para transformar toda a realidade em dinheiro, ou melhor, somente o que pode ser convertido em dinheiro tem sentido. Em artigo Determinismo y autoconstitución del sujeto: las leyes que se imponen a espaldas de los actores y el orden por el desorden (1996), Franz Hinkelammert diz que no capitalismo a competição entre os vários interesses é coordenada pela dinâmica do mercado, seguindo “forças compulsivas de fatos” (Sachzwänge) ou “leis compulsivas”, exteriores e inexoráveis, que, à luz de Marx (O Capital), são impostas “pelas costas” dos agentes, produzindo sobre eles um “efeito compulsivo” (1996, p. 31-32) que produz “uma ética que força a aceitar a ordem econômico-social das relações mercantis como necessária”. O capital só concentra, dinheiro e poder, como revelou Oxfam (2016), em “economia para o 1%”, sem alternativas e, para que possa se manter, controla de forma draconiana os Estados, cuja soberania está profundamente ameaçada pela ação dos grandes grupos internacionais que não se submetem a jurisdição alguma, exceto suas próprias leis de expropriação. No Brasil isso se revela de forma contundente nos resultados dos grandes projetos entre os quais Belo Monte é, seguramente o mais contraditoriamente exemplar de como a associação do Estado com o grande capital produzem morte e exclusão, violação de direitos humanos e tudo o que a velha ideia de “progresso” denunciada por Benjamim em Sobre o Conceito de História (1940) significa.

A racionalidade que se faz urgente para dar conta de uma realidade tão dinâmica, complexa e paradoxal já não pode ser a que se contenta com a validade objetiva simplesmente, nem mesmo a da interpretação aberta ao tudo vale, menos ainda a do binarismo que só vê extremos maniqueístas. Também não basta uma racionalidade que acomode tudo e a tudo reconcilie na neutralidade e que, tão logo o exagero passe, tudo queira ver apaziguado – mesmo que numa paz fúnebre. Também não se trata de buscar certezas inabaláveis que rapidamente se convertem em fundamentalismos fascistas, totalitários e excludentes. A racionalidade que se desenha como potência é uma que vá ao fundo, escave bem, mas que também esteja à superfície, sejam multidirecional, que seja capaz de acolher a palavra dos que não são ouvidos, a existência daqueles que jazem na invisibilidade da morte ou da mera vida, que afirme a primazia do resto como daqueles/as geradores/as de um chamado à responsabilidade que está na base de toda a vida em comum, de toda a vida política. Trata-se de uma nova racionalidade que se faz experiência da presença do outro não como inimigo, não como ameaça, não como negação, mas como alteridade que irrompe corporeidade diversa e outra, dignidade irredutível, subjetividade constitutiva. Esta racionalidade é suja, é confusa, é híbrida, é ruído para os padrões hegemônicos. Uma outra racionalidade: racionalidade do outro. Por isso, irredutível ao mesmo e à mesmice...

No “instante de perigo” é que emerge a responsabilidade. Ela não se faz parcialmente, pelo contrário, faz-se sempre total, porque não se pode considerar apenas parcialmente quem está na condição de vítima, não se é responsável por ela apenas em parte. Por outro lado, é responsabilidade com uma parte, com aquela parte da humanidade que está em perigo para “frear” a linearidade do progresso gerador de opressão e de vitimização, como lembra W. Benjamim em Sobre o conceito de história (2005). Não dá para concordar com o percurso e nem mesmo com o desenho de progresso hegemônicos, pois são geradores de mais exclusão. Trata-se de assumir posição, nisso consiste a responsabilidade. Uma posição para reverter o processo que faz da exceção a regra, numa perspectiva a “contrapelo”. Há uma responsabilidade com a efetivação de condições que venham para interromper a marcha triunfal do progresso a fim de fazer cessar a produção de exclusões e de não-existência como inevitavelmente naturais ao progresso. Trata-se de produzir saídas para escapar da “gaiola de aço” do sistema opressor que se converte em religião e em adoração do dinheiro contra a vida e a convivência.

Assim, formular retratos que podem se constituir em “lampejos” de alternativa considerando as possibilidades desta nova racionalidade e deste novo sujeito político e ético que se desenha como potência é o desafio nesta travessia.

A travessia é constitutiva da vida humana como experiência de convivência intensa, nômade, peregrina. Ela impõe a solidariedade como condição substantiva de continuidade e até de sobrevivência; a gratuidade do estar com o/a outro/a, do sentir-se bem no convívio e na comunidade. No abandono do caminho que se faz ao caminhar, a presença do/a outro/a, seu apoio e cuidado, é condição para não soçobrar, não sucumbir, não parar de caminhar. Por isso, lampejos aparecem como retratos, como rostos, como sujeitos. Neles está a potência ética e política. É sua movimentação o que preservará aberta a busca de alternativas que efetivamente sejam transformadoras das realidades, geradoras de novos tempos, de novos espaços.

Para isso há condições que são intransponíveis não porque consensuais, mas exatamente porque revelam as tensões e as contradições mais profundas que ainda persistem e que por isso alimentam a vida política e a luta política. A primeira das condições é a afirmação da vida para todos/as, o que inclui paradoxalmente a vida dos/as que historicamente foram inscritos entre aqueles/as que não podem viver, aqueles/as que não poderiam mais do que vida nua, aqueles/as declarados/as sacer. Trata-se de afirmar a vida em abundância, o bem viver.

Mais uma condição é a conscientização através de uma práxis pedagógica e ético-política de participação dialógica, como ensina o patrono, Paulo Freire. Não se nasce democrata, não se nasce tolerante, não se nasce justo; pode-se fazer-se democrático, tolerante, justo, pela ação democrática, pela ação tolerante, pela ação justa. Aprende-se a ser democrático, tolerante, justo; aprende-se pela participação dialógica geradora de consciência – que é multidimensional, nunca meramente conceitual ou cognitiva – e, portanto. politizadora por excelência. Esta participação é incômoda e paradoxal pois cobra lugar em espaços nos quais nunca se deu espaço para aqueles/as que sempre ficaram de fora das decisões históricas, que as “assistiram bestializados”. Diálogo, neste sentido, nunca será somente convergência. Será, acima de tudo, provocação, deslocamento e, especialmente, encontro de diferentes, busca do comum, que não impõe e nem hierarquiza.

A terceira condição é a organização e a luta daqueles/as que foram historicamente excluídos/as para enfrentar as realidades que os/as geraram, provocando paradoxalmente a desestabilização da ordem “democrática” excludente, resistindo a todas as formas de “extinção”, transgredindo as margens estreitas do sistema gerador de vítimas e reprodutor de lógicas e de realidades vitimárias, como sugere Enrique Dussel em Ética da Libertação na Idade da Globalização e da Exclusão (2000). Mesmo que aqueles/as que se funcionalizaram à política policial não gostem, que digam que a ação destes/as é ilegítima, que os chame de bárbaros e violentos, somente sua luta é que faz a humanidade perceber que aquelas que nasceram demandas particulares e até singulares podem ganhar status de direitos humanos se reconhecidas como bens comuns e necessários a todos/as. Os/as oprimidos/as, os/as excluídos/as, se fazem sujeitos de transformação na medida em que lutam, na medida em que se fazem agentes de superação da condição de vitimização na qual foram colocados/as pela ordem vigente/excludente: em suas mãos está a possibilidade de explodir o “contínuo da história” e a história como continuidade.

Assim se poderá criar condições para que se afirme, se reconheça, se proteja, se respeite, a corporeidade viva de cada singularidade. A singularidade afirmada é que pode construir pluridiversidades que não são somente convergentes e unificadoras/ uniformizadoras, mas aberturas e potências em puro estado de potência. Estas aberturas é que fazem da dignidade uma experiência histórica cotidiana e efetiva que, ao se realizar, sempre se mantém como promessa, reserva de utopia, de possibilidade de ser outro, do ser outro, do estar com os outros, do estar noutro. Isso tudo revela novas exigências históricas, pedagógicas e políticas que, no fundo, também se convertem em exigências éticas.

Se não oferecemos luzes com força para dissipar as sombras, talvez tenhamos indicado “lampejos”. Ainda assim, sigamos de Mãos dadas, como quer Carlos Drummond de Andrade, em Sentimento do Mundo (1940), quando diz “Não serei o poeta de um mundo caduco / Também não cantarei o mundo futuro / Estou preso à vida e olho meus companheiros / Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças / Entre eles, considero a enorme realidade / O presente é tão grande, não nos afastemos / Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”. Ainda assim, sigamos animados pelo que diz Guimarães Rosa: “A vida é ingrata no macio de si, mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero” (Grande Sertão: Veredas, 1988, p. 192). Ainda assim, com Mercedes Sosa, em Eu só peço a Deus, pedimos “Que o engano não me seja indiferente / Se um traidor pode mais que uns muitos / Que estes muitos não o esqueçam facilmente”.


Texto finalizado em 16/04/2016, revisado em 17/04/2016, depois da votação vergonhosa na Câmara, atualizado em 25/04/2016 depois de sugestões de vários colegas aos quais agradeço a generosidade.


Paulo César Carbonari. . Paulo César Carbonari  é Doutor e professor de filosofia e militante de direitos humanos.. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Spring Sun, Time to clean Windows // Foto de: Georgie Pauwels // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/frosch50/13003350103

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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