Tem o Judiciário legitimação democrática?

18/05/2017

Por Phillip Gil França – 18/05/2017

O Judiciário é acusado de não representar os valores democráticos, pois o juízes não são escolhidos pelos cidadãos, mas são escolhidos dentre os cidadãos, num procedimento democrático aberto a todos os que cumprirem com a as condições mínimas exigidas para representação da justiça, conforme critérios constitucionais legitimamente estabelecidos. Entretanto, mesmo considerando essa realidade, será que, efetivamente, ocorre um déficit democrático na atuação do Estado-juiz?

Conforme sublinha Luís Roberto Barroso, no Brasil, “juízes e membros dos tribunais não são agentes públicos eleitos. Sua investidura não tem o batismo da vontade popular. Nada obstante isso, quando invalida atos do Legislativo ou do Executivo ou impõe-lhes deveres de atuação, o Judiciário desempenha um papel que é inequivocamente político”.[1]

Para o autor, “essa possibilidade de as instâncias judiciais sobreporem suas decisões às dos agentes políticos eleitos gera aquilo que em teoria constitucional foi denominado de dificuldade contramajoritária”.[2]

No entanto, “a jurisdição constitucional e a atuação expansiva do Judiciário têm recebido, historicamente, críticas de natureza política, que questionam sua legitimidade democrática e sua suposta maior eficiência na proteção dos direitos fundamentais”.[3]

De igual maneira, segundo Barroso, evidenciam-se as críticas de fundo ideológico, que percebem no Judiciário uma instância tradicionalmente conservadora das distribuições de poder e de riqueza na sociedade. Nessa dimensão, então, “a judicialização funcionaria como uma reação das elites tradicionais contra a democratização, um antídoto contra a participação popular e a política majoritária”.[4]

Entretanto, como exalta Oriana P. de Azevedo Magalhães Pinto,[5] é um equívoco afirmar que a jurisdição não conta com o apoio democrático. Para Luigi Ferrajoli, “a legitimação democrática do Poder Judiciário é estruturalmente diversa da dos demais poderes do Estado, não tendo nada que ver com a vontade nem com a opinião da maioria”.[6] Destaca, ainda, o mencionado autor, que as fontes de legitimação democrática do Poder Judiciário são duas: 1) legitimação formal, que fica assegurada pelo princípio da estrita legalidade; 2) legitimação substancial, que consiste na tutela, pela função jurisdicional, dos direitos fundamentais dos cidadãos.[7]

A raiz democrática que nutre a atuação jurisdicional é estabelecida por via de sua vinculação e realização dos preceitos constitucionais. A aplicação do sistema jurídico legitimamente estabelecido ao caso concreto, por meio de garantias de aplicação de suas resoluções, estabelece o fundamento democrático de que as normas indiretamente escolhidas pelo povo, como as ideias para promoção do seu desenvolvimento, serão interpretadas e indicadas como o melhor caminhos para a solução de eventuais questionamentos sobre como, quando e onde possam ser dirigidas.

Oriana Magalhães Pinto extrai da lições de Mauro Cappelletti que “os pressupostos constitucionais da independência dos juízes, em termos da Constituição, estão assentados na independência funcional, política, orgânica, na inamovibilidade, na responsabilidade e na imparcialidade. Com efeito, a essência da independência e da legitimação democrática da atividade judicial está na sujeição do juiz à Constituição e no seu papel de ‘garante’ dos direitos fundamentais”.[8]

Exalta Luis Roberto Barroso que “um dos traços mais marcantes do constitucionalismo contemporâneo é a ascensão institucional do Poder Judiciário”.[9] Disserta Barroso que tal fenômeno se manifesta na amplitude da jurisdição constitucional,[10] na judicialização[11] de questões sociais, morais e políticas, bem como em algum grau de ativismo judicial.[12]

Para o autor, “nada obstante isso, deve-se cuidar para que juízes e tribunais não se transformem em uma instância hegemônica, comprometendo a legitimidade democrática de sua atuação, exorbitando de suas capacidades institucionais e limitando impropriamente o debate público”.[13]

Nesse mesmo trilho, lembra que “quando não estejam em jogo os direitos fundamentais ou a preservação dos procedimentos democráticos, juízes e tribunais devem acatar as escolhas legítimas feitas pelo legislador, assim como ser deferentes com o exercício razoável de discricionariedade pelo administrador, abstendo-se de sobrepor a eles sua própria valoração política”.[14] E conclui ao afirmar que “a jurisdição constitucional não deve suprimir nem oprimir a voz das ruas, o movimento social e os canais de expressão da sociedade. Nunca é demais lembrar que o poder emana do povo, não dos juízes”.[15]

Assim, se alguma dúvida há sobre o critério democrático da atuação do Estado-juiz, certamente ocorre em função da (para alguns, em alguns momentos) “incômoda” realização de suas atividades primordiais de poder realizar o Direito ao caso concreto, mesmo se tal atividade encontrar barreiras executivas e legislativas, conforme escolha constitucional estabelecida no art. 5.º, XXXV, da CF/88.

Atende, ao que parece, à legitimidade democrática exigida para qualquer manifestação estatal a atividade jurisdicional que aplica a lei e os preceitos constitucionais no cumprimento do seu legítimo mister, bem como que oportunize aos isonomicamente qualificados para tanto a possibilidade de participar de seus quadros para, assim, atuar em nome da Constituição e do povo que a representa.

Logo, é questão crucial para existência, manutenção e evolução do sistema estatal estabelecido o constante incremento de mecanismos que promovam sua justificação e legitimação. Isto é, o Estado tem dever de apresentar ao cidadão quais são as razões para que a confiança nele depositada continue sendo renovada, pois reflete a chave de concessão de energia popular para que a máquina estatal continue a bem servir. Inclusive, o Estado Juiz.

Do contrário, caso o agente concedente de tal energia não mais acredite no bem que o Estado possa eventualmente gerar para a sua vida, simplesmente esvaziará o seu poder, tomando de volta seu maquinário de realização de tarefas públicas e retirará a propulsão mínima que justifica e que faz a máquina pública funcionar.

Logo, o Judiciário tem, sim, legitimidade democrática constitucional para atuar para o bem e para o desenvolvimento intersubjetivo do Estado, tendo o cidadão/jurisdicionado como protagonista de sua atividade.


Notas e Referências:

[1]. Barroso, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. p. 12. Disponível em: [http://www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/constituicaodemocracia_e_supremacia_judicial_11032010.pdf]. Acesso em: 04.01.2012.

[2]. Idem.

[3]. Idem.

[4]. Idem.

[5]. Pinto, Oriana Piske de Azevedo Magalhães. A essência da independência e da legitimação democrática da atividade judicial. p. 2. Disponível em: [http://www.idcb.org.br/pdfs/Aessencia_ daIndependencia.pdf]. Acesso em: 04.12.2012.

[6]. Ferrajoli, Luigi. Justicia penal y democracia. Jueces para la Democracia, n. 4. Madrid, set. 1988, p. 5 apud Pinto, op. cit.

[7]. Idem.

[8]. Pinto, Oriana Piske de Azevedo Magalhães. A essência da independência e da legitimação democrática da atividade judicial. Cf. Cappelletti, Mauro. Dimensioni della giustizia nelle società contemporanee. Bolonha: II Mulino, 1994. p. 66 e ss.

[9]. Barroso, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial..., p. 45.

[10]. “A expressão jurisdição constitucional designa a interpretação e aplicação da Constituição por órgãos judiciais. No caso brasileiro, essa competência é exercida por todos os juízes e tribunais, situando-se o Supremo Tribunal Federal no topo do sistema. A jurisdição constitucional compreende duas atuações particulares. A primeira, de aplicação direta da Constituição às situações nela contempladas. Por exemplo, o reconhecimento de que determinada competência é do Estado, não da União; ou do direito do contribuinte a uma imunidade tributária; ou do direito à liberdade de expressão, sem censura ou licença prévia. A segundo atuação envolve a aplicação indireta da Constituição, que se dá quando o intérprete a utiliza como parâmetro para aferir a validade de uma norma infraconstitucional (controle de constitucionalidade) ou para atribuir a ela o melhor sentido, em meio a diferentes possibilidades (interpretação conforme a Constituição). Em suma: a jurisdição constitucional compreende o poder exercido por juízes e tribunais na aplicação direta da Constituição, no desempenho do controle de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público em geral e na interpretação do ordenamento infraconstitucional conforme a Constituição” (idem, p. 5).

[11]. “Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo. Essa expansão da jurisdição e do discurso jurídico constitui uma mudança drástica no modo de se pensar e de se praticar o direito no mundo romano-germânico. Fruto da conjugação de circunstâncias diversas, o fenômeno é mundial, alcançando até mesmo países que tradicionalmente seguiram o modelo inglês – a chamada democracia ao estilo de Westminster –, com soberania parlamentar e ausência de controle de constitucionalidade. (...) Há causas de naturezas diversas para o fenômeno. A primeira delas é o reconhecimento da importância de um Judiciário forte e independente, como elemento essencial para as democracias modernas. Como consequência, operou-se uma vertiginosa ascensão institucional de juízes e tribunais, assim na Europa como em países da América Latina, particularmente no Brasil. A segunda causa envolve certa desilusão com a política majoritária, em razão da crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral. Há uma terceira: atores políticos, muitas vezes, preferem que o Judiciário seja a instância decisória de certas questões polêmicas, em relação às quais exista desacordo moral razoável na sociedade. Com isso, evitam o próprio desgaste na deliberação de temas divisivos, como uniões homoafotetivas, interrupção de gestação ou demarcação de terras indígenas. No Brasil, o fenômeno assumiu proporção ainda maior, em razão da constitucionalização abrangente e analítica – constitucionalizar é, em última análise, retirar um tema do debate político e trazê-lo para o universo das pretensões judicializáveis – e do sistema de controle de constitucionalidade vigente entre nós, em que é amplo o acesso ao Supremo Tribunal Federal por via de ações diretas” (Barroso, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial..., p. 5).

[12]. Ativismo judicial é uma expressão cunhada nos Estados Unidos e que foi empregada, sobretudo, como rótulo para qualificar a atuação da Suprema Corte durante os anos em que foi presidida por Earl Warren, entre 1954 e 1969. Ao longo desse período, ocorreu uma revolução profunda e silenciosa em relação a inúmeras práticas políticas nos Estados Unidos, conduzida por uma jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais. Todas essas transformações foram efetivadas sem qualquer ato do Congresso ou decreto presidencial. A partir daí, por força de uma intensa reação conservadora, a expressão ativismo judicial assumiu, nos Estados Unidos, uma conotação negativa, depreciativa, equiparada ao exercício impróprio do poder judicial. Todavia, depurada dessa crítica ideológica – até porque pode ser progressista ou conservadora – a ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. Em muitas situações, sequer há confronto, mas mera ocupação de espaços vazios. No Brasil, há diversos precedentes de postura ativista do STF, manifestada por diferentes linhas de decisão. Dentre elas se incluem: (a) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário, como se passou em casos como o da imposição de fidelidade partidária e o da vedação do nepotismo; (b) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição, de que são exemplos as decisões referentes à verticalização das coligações partidárias e à cláusula de barreira; (c) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, tanto em caso de inércia do legislador – como no precedente sobre greve no serviço público ou sobre criação de município – como no de políticas públicas insuficientes, de que têm sido exemplo as decisões sobre direito à saúde. Todas essas hipóteses distanciam juízes e tribunais de sua função típica de aplicação do direito vigente e os aproximam de uma função que mais se assemelha à de criação do próprio direito. A judicialização, como demonstrado acima, é um fato, uma circunstância do desenho institucional brasileiro. Já o ativismo é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente, ele se instala – e este é o caso do Brasil – em situações de retração do Poder Legislativo, de certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que determinadas demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. O oposto do ativismo é a autocontenção judicial, conduta pela qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes. A principal diferença metodológica entre as duas posições está em que, em princípio, o ativismo judicial legitimamente exercido procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, inclusive e especialmente construindo regras específicas de conduta a partir de enunciados vagos (princípios, conceitos jurídicos indeterminados). Por sua vez, a autocontenção se caracteriza justamente por abrir mais espaço à atuação dos Poderes políticos, tendo por nota fundamental a forte deferência em relação às ações e omissões desses últimos (idem, p. 9-11).

[13]. Idem, p. 45.

[14]. Barroso, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial..., p. 45.

[15]. Idem.


PhililipPhillip Gil França é Pós-doutor (CAPES_PNPD), Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUC/RS, com pesquisas em doutorado sanduíche - CAPES na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Bacellar. Pós-Graduado em Direito Civil pelo Instituto de Direito Romeu Bacellar. Membro do Instituto dos Advogados do Paraná. Autor dos livros Controle da Administração Pública, 4° Ed. (Saraiva, 2016) e Ato Administrativo e Interesse Público, 3° Ed. (RT, 2016). Tradutor da obra The Principle of Sustainability Transforming Law and Governance de Klaus Bosselmann (RT, 2015). Diretor do Núcleo de Pesquisas Avançadas da Escola da Magistratura do Paraná, Membro do Grupo de Pesquisas de Constituição e Direitos Fundamentais (Cnpq) liderado pelo Professor Doutor Ingo W. Sarlet. Professor da Escola da Magistratura do Paraná. Professor dos cursos de Especialização em Direito IDP (Brasília), Abdconst (Curitiba) e Unibrasil (Curitiba). Vencedor do prêmio Jorge Miranda - TJ/TO de melhor tese de 2014. Árbitro da Câmara de Arbitragem e Mediação da Federação das Indústrias do Estado do Paraná; Membro da Comissão de Estágio e Exame de Ordem da OAB/PR. Advogado e Consultor Jurídico.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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