Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo/Coordenação: Marcos Catalan
Em uma semana conturbada como a presente, na qual nossas necessidades de consumo são postas em relevo frente à possibilidade de escassez, a reflexão sobre o modo como consumimos bem como sobre as ferramentas de proteção e formas de humanização do Direito do Consumidor tornam-se assuntos em voga. Aproveitando um gap de um debate iniciado no Evento Sociology of Law – entre caos e desconstrução, evento realizado 24 a 26 de maio na Universidade LaSalle, em Canoas-RS, pergunta-se: como chegamos a depender tanto dos itens de consumo para nossa sobrevivência? Ainda, quais são as previsões da dialética reflexiva entre Direito e Consumo na pós/trans/hiper-modernidade? Como deve o Direito se portar frente às tecnologias emergentes? Uma breve passagem pela filosofia da técnica, unida a reflexões sobre a sociologia do consumo ajudam a compreendermos um pouco melhor sobre a nossa sociedade hoje e, principalmente, sobre nós mesmos. Para o Direito, este tipo de visão é fundamental para questionar o modo que a produção jurídica é realizada, procurando-se sempre ver o Direito como ciência que faz pontes com muitas outras ciências/disciplinas, expandindo a reflexão a outros campos mais fecundos e com maior sensibilidade humana.
A história do homem pode ser delineada a partir de sua epistemologia (psichè), forma de conhecer o mundo, e a partir das técnicas (technè) que emprega para sobreviver junto à natureza. Quanto à epistemologia, a história delineia-se sobre uma série de sucessiva de interpretações que o homem realiza (viver é interpretar), a técnica, por sua vez, expressa-se como o agir em conformidade com os objetivos de uma sociedade, como cálculo de adequação dos meios empregados para o fim, na forma de relacionar-se com o ambiente. A técnica corresponde à insuficiência própria da dotação natural humana, como natural modo de compensar a sua carência biológica e estabelecer bases para a sociedade, pois o homem não somente vive, ele se projeta de determinadas formas no mundo. O Direito é, por excelência, uma técnica, criado culturalmente como artifício para propiciar a convivência e sua estabilidade junto aos meios adaptativos.
Noutra época, a descrição de mundo era metafísica, onde a instrumentação técnica era disponível e suficiente como meio, cujo significado era absorvido pelo fim, numa relação de desvelamento; porém, a técnica aumenta como eficácia, e se torna disponível para realizar qualquer fim, dado a conjunção de fatores como o aumento demográfico, a situação do meio econômico, uma maior plasticidade da sociedade. Transformando-se de meio em fim, a técnica se torna autônoma de toda a finalidade subjetiva, impondo sua lei objetiva no edifício da razão instrumental, cujo princípio regulador é a eficiência. O divórcio entre os homens e os deuses dá início a uma história proeminentemente humana, de maneira que os homens passam a dispor do saber instrumental, capaz de adequar os meios aos fins; porém, como escolher os fins? A técnica transforma-se em dominação da natureza, como expansão e controle planetário, dissolvendo a verdade como desvelamento, em favor da verdade como efetividade: o homem não mais é antecipador, pois não mais consegue controlar a própria técnica que criou e é nesta inadequação que reside o maior risco, pois ela é capaz mesmo de se auto aniquilar.
As coisas ao nosso redor perdem o significado, dado a eles pelo lugar que ocupam na hierarquia de ser ao longo do tempo fixado por culturas, religiões e filosofias, tornando-se uma simples matéria-prima ou um instrumento do aparato técnico que não tenha outra finalidade senão o próprio fortalecimento. O que hoje se produz não se fabrica em função do respetivo valor de uso ou da possível duração, mas antes em função da sua morte. No fundo, começamos a viver menos na proximidade dos outros homens, na sua presença e no seu discurso; e mais sob o olhar mudo dos objetos. Assim, a técnica se transforma de meio em fim (alienação), não porque a técnica se proponha a algo, mas porque todos os objetivos e fins que os homens se propõem não podem ser atingidos a não ser pela mediação técnica, tornando-se torna a “produção do supérfluo”, por ser uma técnica vendida e compreendida como forma e necessidade para que o humano viva cada vez melhor, aderidas e convertidas para o homem como verdades. A sociedade do consumo, destaca-se, tem como base a promessa de satisfazer os desejos humanos em um grau que nenhuma sociedade do passado pode alcançar, ou mesmo sonhar. O lugar do consumo é a vida quotidiana, tornando-se, fundamentalmente, o sistema de interpretação no qual vivemos; o sistema pelo qual delineamos nossas ações e reflexões.
A ampliação do campo da psichè junto à technè faz com que essa técnica se desenrole sem sequer o homem notar. Esta racionalidade, por não ser ideológica, mas hipotética, aceita ser desmentida e mudada pela história, sendo eterna, e muito bem correspondendo aos anseios do capitalismo e da lógica da produção, transformando-se em transferência simbólico de uma carência para toda uma cadeia de objetos, investidos sucessivamente como objetos parciais. Nesse cenário, a tecnologia é a crença acerca de um futuro melhor e confortável ao humano, fruto desta atomização social e da cientificidade objetificadora, por ser, definitivamente a base da técnica atual. O consumo enquanto conceito da nossa atual sociedade é que a circulação, a compra, a venda e a apropriação de bens e objetos diferenciados constituem a nossa linguagem e o nosso código, por intermédio do qual toda a sociedade se comunica e fala.
A troca orgânica entre o homem e a natureza que uma vez predominava na técnica é substituída pelo primado do mercado, interrompendo-se o finalismo imanente ao trabalho. Separando-se do fruir, o produzir não ressalta mais o valor de uso, mas sim o valor de troca, cujo valor reside na capacidade de permutar com outros bens, segundo leis que substituitem as leis da natureza. O ato de comprar e vender, a capacidade de trabalho, dota o homem de um valor de mercado, transformando a própria pessoa em mercadoria; porém o homem na idade da tecnologia não está sem alma, mas sim está com a alma sobrecarregada, porque inundada de mercadorias opiniões sentimentos atitudes, que, como potencias homologantes, inundam sua alma, que a essa altura se torna com extensiva ao mundo, o que obsta sua individualidade. O mundo inorgânico, desse modo, corresponde à nova realidade da técnica atual, e da própria alma humana, por ser mais acessível à natureza analítica do conhecimento racional e à correspondente práxis experimental do que em comparação com a esfera vitalista ou a esfera psíquica, que, fugindo da metódica analítica própria do intelecto, cai no irracional. Os objetos de consumo corrente tornam-se cada vez menos significativos da categoria social, e até mesmo os rendimentos, diminuindo o critério distintivo, e criando, sucessivamente, novas formas de diferenciação, uma vez que nunca se consome o objeto em si, mas manipula-se sempre como signo de distinção tomado como referência.
Para o consumo, esta relação ganha especial velocidade com a modernidade líquida. A abundância delineia tudo o que está presente em nossa existência, refletida principalmente em nossas angústias “compro, logo sou...”, na medida em que o tempo gasto em compras se torna mais longo do que a própria reflexão. A nossa relação com os objetos deixa de ter significado e valor. A mídia muda a maneira de fazer a experiência: não mais em contato com o mundo, mas com a representação midiática do mundo, que torna próximo o longínquo, presente o ausente, disponível aquilo que, de outra forma, estaria indisponível. A publicidade realiza o prodígio de um orçamento considerável gasto com o único fim, não de acrescentar, mas de tirar o valor de uso dos objetos, de diminuir seu valor/tempo, sujeitando-se ao valor/moda e à renovação acelerada. Na cultura da informação rápida e abundante, fundamento exigido pela própria epistemologia técnica delineada na razão humana, a felicidade é conectada com o poder da compra, em uma economia orientada ao consumo, criando a variedade líquido-moderna da infelicidade: a sociedade do consumo prospera enquanto torna perpétuo a não-satisfação dos seus membros. A revolução do bem estar é herdeira das revoluções que erigem em principio a igualdade dos homens, fundada em princípios individualistas que denotam o Direito à felicidade e autorealização. A necessidade humana é objetivada (progresso-crescimento é abundância, que, por sua vez, é democracia), generalizando-se a lógica de mercadorias, que hoje regula não somente as produtos materiais, mas a cultura inteira, a sexualidade, as relações humanas e as pulsões individuais.
A velocidade com que as novas técnicas evoluem, dando vazão a um sem número de novas tecnologias, correm em uma velocidade jamais vista em razão do consumo em escala que necessita cada vez mais de novas e fugazes diferenciações, conforme buscou-se delinear. Volta-se a questão: qual lugar ocupa o Direito nessa sociedade? O que mais grita, na Teoria do Direito atual, é vivermos de um Direito pouco atento ás preocupações da época, pois nascida no pensamento linear. De outro lado, o que a filosofia da técnica evidencia é que o Direito é também uma técnica entre as outras, mas não uma técnica semelhante as outras. O Direito, por muitas vezes, permitiu tornar humanamente vivível o maquinismo industrial e usar técnicas novas sem ser destruído por elas. Ao se interpor entre o homem e a máquina, protegeu o homem das fantasias de onipotência gera das pela potência das máquinas. Pode-se afirmar, deste modo, que o Direito cumpre assim uma função de interposição e de proibição, conferindo-lhe um lugar singular no mundo das técnicas: a de uma técnica de humanização da técnica.
Dito isto, observar o Direito como forma de humanização da técnica permite que seja vista na produção jurídica um campo fecundo para a proteção humana, excedendo-se o caráter eminentemente atomístico que até então é concebida a Ciência Jurídica. Em uma sociedade onde não existe mais técnica como meio, mas somente como fim, onde já não existem limites humanos, ainda se busca, em meio ao caos, a possibilidade de povoar o mundo com gente mais afetuosa e induzir as pessoas a terem mais afeto, o que não está presente nos panoramas de uma utopia consumista, pois o espaço que os consumidores atuais necessitam só pode ser conquistado expulsando uns aos outros. Uma das formas para que o Direito, como técnica humanizadora, ocupe hoje seu posto, acentua-se para a reflexão, é pela desterritorialização do Estado-nação como produtor do Direito, criando novos centros de criação do direito novas fontes/ transformam as relações sociais, que são complexas por si mesmas em uma sociedade complexa de rede rompendo as barreiras do que é local ou regional.
No espaço global atual os Direitos se multiplicam e se reduzem, se espaçam e se contraem, redistribuem poderes e são submetidos a sujeições – principalmente a imperativos baseados na segurança e na prepotência do mercado - a maior emergência correlaciona-se com a tendência negá-lo ou reduzi-lo, sobretudo com a prepotente complexidade e multiplicação das necessidades materiais comuns proveniente da influência da inovação científica e tecnológica. Considera-se importante ter-se em mente que não existem limites para as necessidades do homem enquanto ser social, o que cria uma fundamental preocupação no que tange ao consumo e seus limites, importante acercamento para reflexão e para delinear o campo de atuação e de proteção do Direito como adaptação social e protetor do humano.
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