No entendimento marxista, ideologia é uma construção ideal (formulação explicativa do mundo ou projeto de mundo) na qual o próprio autor não é capaz de reconhecer os condicionamentos históricos que a produziram; o idealizador não compreende tudo o que o levou a produzir as ideias que explicita.
Ainda conforme Karl Marx, na totalidade das formas de consciência social está contido o sistema geral de ideias que legitima as relações de poder existentes, levando a que não se perceba – devido às falsificações de percepção que a ideologia provoca – o estado de desvantagem em que se está nessas relações de poder.
Conforme penso, ideologia é um sistema de ideias historicamente produzidas, as quais são assumidas e sustentadas por grupos sociais; essas ideias explicam e justificam ao sujeito o mundo e o seu próprio lugar nele. Não há, pois, possibilidade de compreender o mundo senão por meio de uma ideologia.
Simplificando: de tudo o que acontece ao meu redor (conjunto de eventos que me envolvem, ideias, inclusive), vem a matéria com a qual é “montada” e “calibrada” a minha consciência (produzida historicamente). Com aquilo que me veio do mundo, então, eu penso o mundo, justifico-o e o reproduzo.
Tornando a Marx, outra palavra significante: crítica. Criticar é tomar consciência dos fundamentos dos fenômenos, da relação entre eles, das suas origens, dos seus efeitos; é compreender as subjacências de uma ideia ou de um evento histórico; é estudar o “por trás” dos acontecimentos do mundo e explicitá-lo.
Quem não sabe criticar a inserção da própria vida nos laços de poder que a envolvem é alienado. O alienado está no mundo sem conhecer e, logo, sem compreender os fatores sociais, políticos, econômicos, culturais (midiáticos, inclusive), que o condicionam e o levam a comportar-se da maneira que se comporta.
Aqui, um interrogante de possibilidade: alguém consegue fazer crítica de si mesmo, tendo em vista que ao criticar-se esse alguém usará a matéria de seu já constituído pensamento, o qual, evidentemente, está “contaminado” ideologicamente? Noutras palavras: alguém consegue atuar com imparcialidade na autocrítica?
Não creio. Ninguém se vai examinar e avaliar, nem com as minúcias necessárias, nem com a neutralidade “honesta”, nem com os valores que não sejam os já internalizados. A única coisa possível, nesse aspecto, é ter consciência de que jamais teremos total consciência dos motivos que nos afetam a consciência.
Em certa medida, pois, embora a palavra nos seja desagradável de aplicá-la a nós mesmos, das teorias ou práticas que nos concernem, alguma alienação incide no nosso pensar ou agir. Não damos conta do todo. Em algum grau somos envolvidos por afetos que nos dificultam ou até impedem de nos sabermos por inteiro.
Na linguagem jurídica há um termo: suspeição. Trata-se do receio motivado, suscetível de se opor a alguém que atue em um processo, de quem, pois, se deve esperar imparcialidade, mas que não pode garanti-la, em razão de conjunturas ou interesses intercorrentes que o prive de exação no exercício de suas funções.
Quer dizer, a pessoa pode ser honesta, mas, para avaliar algo que lhe seja atinente, está sob suspeição. Ademais, como todos estamos tocados por ideologia, o indivíduo honesto também o estará. Por fim, o sujeito pode se ter sob crítica, mas esta crítica será feita com conteúdos subjetivados, logo, suspeição. E tudo se repete.
Sobre tudo isso, as mídias sociais e seus algoritmos. Algoritmo: “conjunto de regras e procedimentos lógicos perfeitamente definidos que levam à solução de um problema em um número finito de etapas” (Houaiss). Traduzindo: as mídias sociais aproximam os iguais, formando grupos com interesses próximos denominados bolhas.
Os membros de uma bolha pensam que o todo do mundo midiático é a bolha dele. Só que não. O que sucede é que o “pensador” de uma bolha tem interface, com incentivo algorítmico, com outros partícipes da mesma bolha, então ele generaliza a “lógica” da sua bolha. Pare ele, fora da bolha vivem estranhos, suspeitos, inimigos.
Formam-se isolamentos ideológicos, resultando extremismo e paradoxos. Extremismo porque as ideias de um grupo não são ponderadas, referendando-se a si próprias de forma tautológica (reverberação de um conceito). Num contexto intelectual assim, o que não coincide com a reserva mental da bolha é desqualificado.
Paradoxo porque as bases que sustentam um fato por uma bolha não são aplicadas em fato equivalente se ele for do interesse de outra bolha. Então, o discurso contra a corrupção, por exemplo, é o mesmo em qualquer bolha, contudo, se o corrupto for da “minha” bolha, ele será menos corrupto do que o corrupto da bolha alheia.
Nisso, se justifica qualquer absurdo. Se o absurdo não tem alicerce, criam-se fake news. Bolhas não solicitam provas, não recomendam sensatez. Bolhas requerem viseiras, ou seletividade no olhar os acontecimentos. Eis o nosso momento político. Cada bolha se assegura com a sua bolha que a outra bolha não presta.
Sugiro: bota-te a ti e à tua bolha em suspeição. Critica a tua formatação ideológica. Há tu e as tuas idealizações. Há, contudo, outras concepções da vida. Sai da bolha, de qualquer bolha e vai para rua persuadir pessoas, legitimar ideias, catar votos para as futuras eleições. Karl Marx avaliza a sugestão.
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