Supremo ativismo como contrapoder desconstituinte: o caso do foro “privilegiado”

21/05/2018

Coluna Empório Descolonial/Coordenador: Márcio Berclaz

No último dia 3 de maio o STF julgou a Ação Penal n. 937, relatada pelo Min. Luís Roberto Barroso. O processo ganhou destaque no noticiário por tratar da viabilidade de se estabelecer interpretação restritiva ao art. 102, I, b, c, da Constituição Federal sobre o cabimento e alcance do foro por prerrogativa de função - erroneamente denominado de “foro privilegiado” - conferido aos deputados federais e senadores.

Até o julgamento da AP n. 937, prevalecia na Corte a interpretação ampliativa no sentido que qualquer crime praticado por parlamentares, antes ou durante o mandato, era de competência originária do STF, nos termos do art. 103, I, a, da CF. Entretanto, a partir da sessão plenária do dia 3 de maio, o entendimento, firmado por unanimidade de votos, passa a ser o de que parlamentares federais só terão direito ao foro por prerrogativa de função nos crimes praticados durante o mandato e em correlação com o cargo.

O relator de cada processo no STF definirá se o crime investigado tem ou não relação com o mandato, e todos os outros casos não abrangidos por essas hipóteses serão processados e julgados pelos juízos de 1ª instância. Assim já procedeu o ministro Dias Toffoli, no dia seguinte ao julgamento, ao declinar da competência de seis ações penais e de um inquérito envolvendo parlamentares federais que estavam sob sua relatoria.

O instituto do foro por prerrogativa de função tem o objetivo de proteger cargos públicos, eletivos ou não. No caso da AP 937, o mandato parlamentar. Não se trata de privilégio, mas de prerrogativa inerente a diversos casos públicos, inclusive os de magistrados e membros do Ministério Público. O Estado decide proteger a atividade exercida, não a pessoa. Tanto é que apenas cabe prisão quando houver condenação final ou em casos de flagrante em crimes inafiançáveis. Por não contemplar prisão preventiva ou temporária, o foro por prerrogativa de função recebeu a alcunha de "foro privilegiado". Um dos motivos do equívoco na adjetivação é o de que nesses casos há supressão de instâncias recursais. Um cidadão com essa prerrogativa, por exemplo, tem o processo iniciado no STF e fica destituído da garantia fundamental do duplo grau de jurisdição (art. 5ª, LV, da CF).

Não obstante as discussões sobre as vantagens e desvantagens do foro por prerrogativa, fato é que a interpretação restritiva conferida a esse instituto por meio de "mutação constitucional" caracteriza um problemático ativismo judicial. O STF desprezou a competência privativa do Parlamento para realizar mudanças formais na Constituição Federal através de processo legislativo diferenciado de Emendas Constitucionais. A propósito, foi aprovada em 2017 no Senado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 333, que visa a alterar os artigos 5º, 37, 96, 102, 105, 108 e 125 da CF, para extinguir o foro por prerrogativa de função no caso dos crimes comuns, e para revogar o inciso X do art. 29 e o § 1º do art. 53 da CF.

A PEC 333 atinge os objetivos restritivos discutidos na AP n. 937, embora a proposta do voto do Min. Luís Roberto Barroso tenha delimitado que o STF conhecerá apenas os crimes cometidos durante o mandato e em razão dele. Porém, entre a atuação legislativa do constituinte e a tentativa do Judiciário em reescrever a Constituição, deve prevalecer a primeira, em respeito à soberania popular e ao princípio democrático, pilares da CF/88.

Por que a discussão no STF sobre o foro envolveu apenas membros do Congresso Nacional? É curioso que apenas dois ministros (Dias Toffoli e Gilmar Mendes) tenham levantado essa questão, que fora vencida. Essa mudança na interpretação constitucional atinge os casos de crimes praticados por membros do Ministério Público, do Judiciário e demais agentes públicos contemplados por essa prerrogativa.

No dia 7 de maio, o ministro do STJ, Luiz Felipe Salomão invocou o famigerado "princípio da simetria” e declinou da sua competência para julgar processo que tem como réu o atual governador do Estado da Paraíba, Ricardo Vieira Coutinho. O que farão os outros milhares de juízes pelo Brasil? Haverá uniformidade de entendimentos e isonomia de tratamento entre os cidadãos investigados e processados?

O cenário é de completa insegurança jurídica, mas algo é certo: a decisão do STF reforça a necessidade de se problematizar a pirotécnica exacerbação de poder do Judiciário, que intensifica sua interferência ilegítima e descabida no sistema político ao descaracterizar  engrenagens basilares da Constituição. E o faz se atribuindo de uma função alegadamente democrática representativa, desconsiderando caber ao povo, por meio de seus representantes eleitos (legisladores), realizar mudanças constitucionais, não havendo ambiguidades a respeito no texto constitucional elaborado pelo constituinte originário.

O quadro é tão surreal que primeiro os ministros resolvem um caso concreto em decisão com efeitos erga omnes e depois fazem “recomendações” para o Congresso Nacional legislar sobre o assunto com prioridade. Fazendo inveja a Salvador Dali, o ministro Dias Toffoli enverga o instituto dos precedentes ao propor a edição de súmula com base em uma única decisão e sem haver controvérsia sobre o tema entre órgãos judiciários ou entre esses e a Administração Pública. Além do imaginário supremo, onde estão as condições para a criação de súmula?

Trata-se de um esdrúxulo arremedo de diálogo institucional. Por mais que a proposta da ampliação de diálogo seja vendida como coerente, o ponto em questão não é esse, mas o de quem deveria fazê-la.

Haveria um diálogo institucional se a articulação ocorresse de outra forma, como se o STF fizesse uma autocrítica para se reformular o sistema da Justiça Criminal quanto ao cumprimento das competências, por exemplo. Deixando a cargo do Congresso a decisão sobre a mudança constitucional.

Contudo, por mais que se mova daqui em diante, o Congresso não avançará muito no assunto, ante a vigência de intervenção federal-militar na cidade do Rio de Janeiro. Os efeitos da decisão do STF transbordam em dúvidas e insegurança, e uma delas se refere à situação de parlamentares que poderiam ficar inelegíveis pela Lei da Ficha Limpa se condenados no STF, que agora serão favorecidos por usufruírem do duplo grau de jurisdição e da morosidade processual. O “povo" deverá perder, novamente, com essa atuação sorrateira do Judiciário ao se passar por legislador, atuando como um contrapoder desconstituinte.

As mudanças estratégicas constantemente realizadas pelo STF na Constituição e suas justificativas pragmático-panfletárias trazem um alerta: a atuação política de magistrados, uma elite de cidadãos não eleitos pelo povo, avança a passos largos e deve ser contida, sob pena de se consolidar um governo de juízes conduzido por um Partido do Judiciário. Mais que institucional, trata-se de questão de legitimidade democrática.

Imagem Ilustrativa do Post:Supremo Tribunal Federal // Foto de: Eduardo Coutinho // Sem alterações

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