Por Saíle Bárbara Barreto - 20/09/2015
Faz mais de 10 anos, mas eu nunca esqueci. Eu era estudante da Escola da Magistratura, morava no Kobrasol e voltava para casa muito tarde. A Suellen às vezes pegava o mesmo ônibus que eu. Sei o nome, porque quando ela entrava o motorista dizia: "e aí, Suellen!" E ela ia rindo e conversando com ele durante o trajeto.
Bom, naquele dia o "latão" estava cheio. Não tinha mais lugar atrás e resolvi ficar na frente. A Suellen entrou e sentou do meu lado. Ela estava triste, não riu, não brincou com o motorista como de costume. Olhou para mim e disse:
- Posso falar com você? Ninguém nunca conversa comigo...
Fiquei com pena e, admito, um pouco curiosa, então eu disse:
- Claro, pode falar.
E ela começou:
- Sabe, eu não sou daqui. Eu sou do Riiiio, mas como lá estava muito perigoso resolvi mudar para cá. Eu "sou da noite." Cê entende, né?
Para falar a verdade eu não entendi se ela já era "da noite" lá no Rio de Janeiro, ou se, estando a cidade muito violenta, resolveu largar o emprego na capital fluminense e vir para cá levar uma vida "tranquila" se prostituindo nas ruas da capital barriga verde. De qualquer modo, para Suellen não pensar que eu era burra, respondi apenas "entendo".
Ela continuou:
- Já vi um homem morrer na minha frente, blá blá blá... - E foi falando um monte de desgraças que lhe ocorreram durante a vida, até que soltou essa pérola:
- Antes eu era indiscreta, levantava a saia e dizia "vai tirar minha calcinha ou não vai?!"
Meu senhor! Não sei que cara eu fiz quando ela me contou isso, mas devo ter ficado muito assustada, porque ela segurou a minha mão e disse:
- Calma, colega! Eu não faço mais isso. Agora eu fico 'na minha,' parada, discreta e sensual. Os caras sabem que eu sou... "do ramo". Cê entende, né?
Eu me limitei a dizer "entendo" (e a soltar minha mão o mais rápido possível). A Suellen continuou falando. E a conversa descia ladeira a baixo. O cobrador interrompeu, para perguntar alguma coisa (que agora não lembro mais) e ela gritou com ele:
- Cala a boca aí e cuida da "roleta", antes que alguém passe sem pagar!
Ela era sensual discreta e "phyna". Virou para mim e disse:
- Viu, colega! Aprende comigo a dar um corte nesses caras! Imagina, um "trocador" achando que uma de nós duas vai dar "moral" para ele. É ruim, hein!
Não disse nada. Aquela porcaria de ônibus pelo jeito chegaria na China, mas não chegaria na minha rua. Aí ela falou:
- Sabe colega, faz uns 10 dias, um cara que "me pegou" no ano passado me encontrou de novo e disse "pô galega, que bom que eu te achei de novo! Tô desde aquele dia atrás de você". Fiquei tão feliz! Eu marquei na vida do cara, cê entende?
Me deu vontade de dizer "não, mas por favor, anote em um papelzinho que quero entender", mas resolvi não "dar confiança" e só falei "imagino." Aí ela continuou:
- Já faz 10 dias... e ele não ligou. Cê acha que ele vai ligar?
Ai Cristo, eu pensei "mulé" é bicho burro "mermo". Eis o motivo da tristeza dela: o cara não ligou! O que eu poderia dizer? Menti, como a gente mente para uma amiga que está nessa situação:
- Não deu tempo ainda. Ele vai ligar.
- Cê acha mesmo?
Pensei "ahammmm! E vai te levar para conhecer a mãe dele no almoço de domingo", hahaha! Só que ela estava tão arrasada. Resolvi mentir mais:
- Claro. Vai sim. De certo ele está trabalhando muito.
Ela sorriu e eu fiquei com pena. Bom, eu não podia parar o mundo, mas podia parar o ônibus! Puxei a cordinha e me despedi. Ela disse "tchau, colega. Foi bom desabafar contigo. Pessoas que andam com a bíblia embaixo do braço são sempre boas." E apontou para o meu código civil. Ela achava que era uma bíblia, coitada! Acabou o ano letivo e nunca mais peguei o mesmo ônibus que a Suellen. Tomara que o cara tenha ligado. Fim.

Saíle Bárbara Barreto é advogada em Florianópolis.
Email: sailebarreto@hotmail.com
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Imagem Ilustrativa do Post: the prostitute // Foto de: Joana Coccarelli // Sem alterações
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