Subsídios para pensar a possibilidade de articular Direito e Psicanálise – Por Agostinho Ramalho Marques Neto

27/05/2015

“Os lugares pré-interpretam”

Lacan

Antes de tudo, quero dizer duas palavras sobre o título que dediquei a este trabalho, pois ele aponta para o plano teórico em que pretendo desenvolver a sua exposição. Subsídios traz a ideia de uma contribuição que se dá por baixo, um trabalho de subsolo, no nível das fundações daquilo que se está estudando. Quanto à articulação entre o Direito e a Psicanálise, trata-se para mim, acima de tudo, de uma questão cuja elaboração precisa encaminhar-se mais no sentido de sua abertura do que no de seu fechamento. Isto significa, entre outras coisas, que a fecundidade do trabalho que se possa realizar neste terreno – neste interregno, mais precisamente, inclusive no sentido etimológico deste termo: aquilo que medeia entre dois reinos –, pressupõe uma aposta na insistência da indagação, mais do que na dimensão do que daí possa advir como resposta. Resposta, nesta concepção, é um momento da pergunta, que não a resolve propriamente e muito menos a dissolve ou a esgota, mas a ela se acrescenta, redimensionando-a, transformando-a, provocando-lhe inflexões, abrindo-a, enfim. E dando, afinal de contas, mais trabalho ao sujeito que indaga, entendendo-se aqui que interrogar supõe “que aquele que interroga, enquanto tal, esteja implicado na questão, isto é, seja problematizado” [1]. Na medida em que não me proponho a comparar o Direito com a Psicanálise pondo-os, digamos assim, lado a lado, as afirmações que acabo de fazer indicam que quaisquer articulações entre os campos dessas disciplinas só existem na estrita medida em que sejam tecidas. Daí minha proposta de pensar a possibilidade de articular esses campos teóricos, que por si mesmos não comportam qualquer espécie de articulação prévia (o prévio, neste contexto, é uma decorrência lógica daquilo a que só-depois se acede). Pensar essa possibilidade já é de algum modo ir começando a empreender algumas articulações.

Relacionar entre si disciplinas teóricas supõe que se defina a partir de onde, isto é, de que recorte, de que visada epistemológica, tal relação se estabelecerá. No caso específico de que aqui se trata, as particularidades próprias dos estatutos do Direito e da Psicanálise tendem a promover deslocamentos de sentido na noção mesma de epistemologia, apontando para um além (ou para um aquém) de sua acepção habitual de crítica do conhecimento científico em seus princípios, hipóteses, métodos, objetos e resultados. Psicanálise e Direito, com efeito, não são, segundo penso, propriamente “ciências”, sobretudo se se toma este termo na acepção neopositivista, que parece ser, ainda, sua acepção dominante. Isso não quer dizer, todavia, que não sejam, ou não possam ser, discursos teóricos rigorosos. Um primeiro deslocamento da noção corrente de epistemologia já fica aqui mesmo operado, com sua referência ao terreno da teoria, embora não necessariamente teoria científica. Um segundo deslocamento, concernente ao lugar e ao estatuto do sujeito na tecedura dessa teoria, tomo-o da raiz mesma do termo grego episteme, tal como Lacan a resgata: “colocar-se em boa posição” [2].

O referencial até agora esboçado abre todo um leque de questões, remetendo-me à necessidade de apreciar, embora com a brevidade que a limitação do tempo de que disponho me impõe, os estatutos teóricos do Direito e da Psicanálise, bem como da ciência, ou seja, da concepção ou concepções de ciência que a abertura desse espaço interdisciplinar pode implicar. É necessário examinar, também, a noção de interdisciplinaridade, especificando em que sentido ela comparece nessas articulações. É por este exame, por sinal, que vou começar. Mas essas articulações de campos teóricos não se dão, por assim dizer, no vazio. Elas precisam de certas mediações para efetivar-se, as quais podem consistir, por exemplo, no recurso a conceitos e, mais genericamente, a significantes, que sejam “comuns” a essas disciplinas, isto é, que compareçam nos seus respectivos discursos teóricos, embora – é claro –, com acepções diferentes. Neste trabalho, essas articulações serão tecidas com a mediação principalmente dos significantes “sujeito”, “objeto” e “verdade”.

Como entender a noção de interdisciplinaridade no contexto teórico em que se move este trabalho? Essa noção remete, de saída, para um terreno epistemológico e filosófico um tanto quanto movediço. Procurarei falar a partir de um recorte ele próprio interdisciplinar. Não basta falar da interdisciplinaridade; é necessário realizá-la. Colocá-la em questão, assumir diante dela uma posição problematizadora pode ser um passo no sentido dessa realização. Essa posição pode ser instaurada desde diferentes pontos de partida. Pode-se começar, por exemplo, com as seguintes indagações: É possível a interdisciplinaridade? Em que condições? Que cuidados a sua efetivação requer?

Um dos mais importantes desses cuidados se refere ao perigo, sempre presente em todo e qualquer empreendimento interdisciplinar, dos reducionismos e transposições teóricas. Quando consideramos com atenção conceitos aparentemente comuns a duas ou mais disciplinas, verificamos que, a rigor, nunca é exatamente dos mesmos conceitos que se trata. Cada conceito se particulariza no âmbito desta ou daquela disciplina específica, e mesmo em diferentes correntes teóricas da mesma disciplina. O próprio conceito de “direito”, por exemplo, assume contornos bem diferenciados, às vezes até opostos, conforme seja enunciado por um jusnaturalista, ou por um marxista, ou por um normativista lógico de perfil kelseniano etc. Só isto já basta para tornar imperativa, em qualquer tentativa de articulação interdisciplinar, a vigilância epistemológica necessária à manutenção do respeito à especificidade dos campos e dos enfoques teóricos das disciplinas envolvidas, assim como das diversas correntes interiores a essas disciplinas. Pode-se, é claro, submeter tais campos e enfoques ao crivo de uma crítica rigorosa. Mas, justamente por ser rigorosa, essa crítica não deve mutilar ou distorcer o objeto sobre o qual recai, quer lhe seja favorável, quer lhe seja desfavorável.

A vigilância a que acima me referi ajuda a perceber que as diferentes disciplinas e suas correntes teóricas mantêm tanto relações de exterioridade quanto de interioridade umas com as outras, e que tais relações tanto podem ser de oposição como de complementaridade, como ocorre, por exemplo, entre o Direito e a Moral.

Um conhecimento interdisciplinar, como tal associado indissoluvelmente a uma prática interdisciplinar, não se reduz a uma simples multidisciplinaridade, à mera justaposição de especialidades, mas constitui um domínio ao mesmo tempo unitário e complexo, no qual as “fronteiras” entre as disciplinas, traçadas a partir sobretudo de uma visão positivista do saber, sejam, se não negadas, pelo menos postas entre parênteses. Isto implica, entre muitas outras coisas, a indissociabilidade entre teoria e prática; conhecimento e vida; ensino e pesquisa; ciência e Filosofia; e, enfim, qualquer espécie de conhecimento e suas condições de possibilidade sócio-históricas. Como observa Japiassu, “uma ciência não existe por si mesma, mas dentro de uma comunidade de saber, da qual depende” [3].

A interdisciplinaridade, como já observei, só existe na medida em que é construída. Por isso mesmo, é preciso não enxergá-la como uma panaceia científica, que pudesse de antemão garantir resultados. Ao contrário: do êxito de um empreendimento interdisciplinar somente a posteriori se pode falar. E nem sempre ele depende de cuidados prévios, embora estes possam ser importantes. Todo um poder de criatividade, de sensibilidade teórica, algo análogo, como disse Einstein, à criação artística, tem aí um lugar constitutivo. Vejo nisso, sobretudo, a marca do estilo de uma subjetividade, que joga um papel decisivo no contexto de toda criação. Quando falo da implicação do sujeito em sua prática teórica interdisciplinar, é propriamente do desejo que estou falando, de um desejo de transitar pelos interstícios, por assim dizer, “desejo em seu caráter processual, de invenção de possibilidades de vida” [4]. Uma articulação interdisciplinar se faz mediante recortes, e cada recorte abre a possibilidade de campos epistemológicos novos e muitas vezes imprevistos.

As considerações acima constituem uma resposta afirmativa à pergunta que antes formulei, sobre se é possível uma práxis interdisciplinar. Muitas especificações ainda precisariam ser articuladas – cujo alcance, todavia, ultrapassa de longe as limitações e as intenções deste trabalho –, para que essa resposta ficasse mais bem fundamentada. Diante da impossibilidade, no momento, de uma elaboração mais detalhada, vou privilegiar doravante um dos sentidos cruciais que a noção de interdisciplinaridade comporta: o de que o discurso e o campo de uma disciplina teórica podem afetar (e, consequentemente, ser afetados) pelo discurso e pelo campo de outras disciplinas [5]. Essa relação não deve ser entendida, porém, como sendo recíproca e simétrica.

Fazendo logo uma aplicação desse recorte da noção de interdisciplinaridade ao objeto específico deste trabalho, posso enunciar que para mim a atitude fundamental de investigação não consiste propriamente em colocar lado a lado a Psicanálise e o Direito para compará-los globalmente ou ponto a ponto. Não há sequer correspondência, nem simetria, entre esses “pontos”, cuja própria existência é uma questão. E uma disposição lado a lado do Direito e da Psicanálise desconsideraria, de saída, as diferenças não de lado, mas de nível, que possam estar implicadas, talvez numa perspectiva determinante, na tessitura de suas relações. Aquela atitude fundamental de investigação consiste antes em indagar da possibilidade de discursos, questões, enfoques, perspectivas, etc., oriundos do campo de uma dessas disciplinas, afetarem o campo da outra. Isso pode ser feito de várias maneiras. Através, por exemplo, do exame de conceitos mais ou menos “comuns”, ou pelo menos que tenham em comum o mesmo nome, como os conceitos de sujeito, objeto, lei, etc.

Pode-se também empreender articulações mais fundas. Em que medida, por exemplo, o que provém do campo psicanalítico – campo esse que, como se sabe, é instaurado a partir da postulação da falta radical e originária do objeto da pulsão e do objeto do desejo, bem como da falta, também radical e originária, de um significante primordial a partir do qual a ordem simbólica se estruturasse e ganhasse consistência –, até que ponto, repito, isso que provém do campo psicanalítico pode produzir efeitos de “esburacamento” no discurso jurídico ali mesmo onde este é enunciado segundo uma visão sistêmica totalizadora que desemboca na ficção da plenitude de um ordenamento jurídico sem lacunas? Ou então, por seu turno, que efeitos a incidência de noções originariamente jurídicas, como a de gozo [6], sobre o terreno teórico da Psicanálise pode aí provocar?

Um rápido exame de certos aspectos cruciais dos estatutos teóricos do Direito e da Psicanálise, empreendido com o cuidado de, ao falar de um desses campos, estar atento a possíveis ressonâncias no (ou do) outro campo, e procurando, também, discutir até que ponto se pode predicar a essas disciplinas o atributo de “científicas”, se faz agora necessário para uma elaboração mais rigorosa do objeto do presente trabalho.

Vou tomar, inicialmente, o Direito em consideração. Parto do princípio de que não há nenhum Direito em si, nenhuma essência metafísica, que permanecesse sempre idêntica a si mesma (quer seja esta localizada na transcendência de uma razão suposta universal, quer na palavra dos textos sagrados, quer no “espírito” da lei ou na intenção do legislador...), na qual se contivesse toda a verdade do jurídico e à qual, em sua plenitude, talvez o conhecimento humano pudesse ter acesso um dia. Esse acesso, no entanto, é, como se sabe, o ideal de toda ciência. Um ideal totalitário, convenhamos. Não que se pense que ele seja realizável em sua plenitude. Erigir algo à condição de ideal já implica admitir implicitamente um elemento de irrealizabilidade. Mas, ainda assim, o ideal enquanto tal é mantido. Um importante fator que torna possível tal manutenção é a crença (parece-me que é propriamente de uma crença que se trata) dominante na mentalidade científica, de que as eventuais impossibilidades de atingir pelo conhecimento a plenitude da verdade do objeto são, se bem vistas as coisas, impossibilidades de fato, por assim dizer. Está contida nessa crença cientificista, como algo que lhe é constitutivo, a suposição de que, se o conhecimento científico ainda não é capaz de dar conta de modo exaustivo da verdade de seu objeto, isto se deve a determinações meramente contingentes, superáveis com o progresso desse mesmo conhecimento, com sua crescente depuração teórica, conceitual e metodológica. O desenvolvimento do conhecimento científico é concebido, nesta perspectiva, como uma aproximação, embora descontínua e sujeita a desvios, recuos e vicissitudes, no sentido da apreensão plena da essência do objeto e, nesse ato mesmo, da realização do ideal (positivista) de ciência. Não podemos atingi-lo por enquanto, e talvez nunca o possamos de fato. Mas, no limite, ele não apenas é concebido como se fosse possível, como também tal concepção anima poderosamente o trabalho teórico nos terrenos das ciências e da Filosofia.

A perspectiva de onde parto, no interior da qual vou elaborando pouco a pouco meus recortes teóricos, nega radicalmente a possibilidade de realização completa daquele ideal de ciência. Entendo que a impossibilidade dessa realização não é uma simples questão de fato, que pudesse ser superada pelo desenvolvimento do conhecimento científico, mesmo no limite. Aliás, é no limite mesmo que tal impossibilidade vigora. É porque é impossível, por definição, a qualquer discurso, científico ou não, filosófico ou não, dar conta da totalidade da verdade de seu objeto (verdade, por sinal, cujo caráter sempre fugidio e evanescente a própria história das ciências atesta passo a passo), que lhe é possível dar conta, parcialmente, desse objeto. Digo parcialmente, pondo ênfase nos dois sentidos principais que esse significante evoca. Verdade parcial, no sentido de não-toda. Mas verdade parcial, também, no sentido de não-isenta, ou seja, no sentido de ser o produto de uma escolha que desde o início privilegiou certos aspectos do objeto e certos enfoques teóricos em detrimento de outros, e os privilegiou justamente porque, sem isso, nem mesmo seria possível começar um trabalho teórico. A impossibilidade de uma neutralidade absoluta do assim chamado sujeito cognoscente na condução de sua prática fica assim patente, como algo inscrito nos pressupostos mesmos de qualquer indagação, de natureza teórica ou não. O sujeito está irremediavelmente implicado nas determinações de sua prática, tendo ou não consciência disso, querendo ou não assumir tal implicação. É por isso, inclusive, que lhe é possível conhecer. Penso, portanto, que a impossibilidade da realização do ideal de ciência é uma questão de direito, e não apenas de fato. O reconhecimento dessa impossibilidade aguça o desejo de trabalhar a partir dela, para aquém dela, por assim dizer, no sentido de ir abrindo perspectivas para o novo.

Bem sei que as assertivas formuladas nestes dois últimos parágrafos ainda carecem de uma fundamentação teórica mais rigorosa, mas isso demandaria um conjunto de elaborações excessivamente longo para esta ocasião. Limito-me, então, a apenas indicar o ponto nodal a partir do qual penso ser possível empreender aquela fundamentação teórica, no sentido não somente de reconhecer a impossibilidade da realização do ideal positivista de ciência, como também de compreender que esse reconhecimento pode ser importante para o labor científico.

Para situar melhor o que estou querendo dizer, cumpre observar que o ideal de ciência pressupõe determinadas condições cujo conjunto articulado tem que se fazer presente para que a realização desse ideal possa ser tomada como possível, ainda que no limite. Do sujeito esse ideal exige que se neutralize o suficiente para não projetar sobre o trabalho teórico seus valores, crenças, visões de mundo etc.; numa palavra, para que não interfira no objeto. Ao objeto atribui-se, além de uma relação de exterioridade para com o sujeito, suficiente transparência para que ele possa ser concebido como cognoscível, isto é, passível de apreensão racional e experimental pelo sujeito do conhecimento. Ao método científico, tomado às vezes, sobretudo por certas vertentes do positivismo, como método único, que se diversificaria somente quanto a aspectos periféricos para melhor dar conta da especificidade dos campos científicos a que estivesse sendo aplicado, mas idêntico a si mesmo no essencial e comum às várias disciplinas científicas, atribui-se não raro o poder de garantir por si mesmo a cientificidade dos conhecimentos produzidos em estrita observância para com ele. À linguagem da ciência, por sua vez, confere-se o atributo de ser purificável, isto é, passível de ser submetida com êxito a um trabalho de demarcação rigorosa do significado de seus termos conceituais, trabalho esse capaz de garantir que esses termos possam articular-se uns aos outros em proposições e estas possam articular-se a outras proposições em silogismos, e estes a outros silogismos numa demonstração, tudo isso dentro de uma perspectiva logicamente encadeada, sem desvios ou distorções, de tal modo que a verdade das conclusões fosse uma consequência lógica da verdade das premissas e do correto encaminhamento dos diversos passos do raciocínio que a elas conduziu. O que se pretende eliminar da linguagem científica, com tais procedimentos, é todo e qualquer traço de contradição e de ambiguidade, amarrando-se, por assim dizer, cada significante incorporado ao arcabouço teórico da ciência em questão àquilo que lhe é atribuído como o seu significado, e procurando-se definir com tamanha precisão cada conceito e termo teórico, que estes se esgotem inteiramente na dimensão de seus significados. Trata-se, em suma, de privilegiar a linguagem do enunciado, e não a da enunciação, como a linguagem própria da ciência. O preço a pagar, dentro desta concepção, é o estancamento da potencialidade de deslizamento significante do discurso. Só que é impossível realizar com suficiente êxito tal estancamento. E isto por razões interiores à natureza mesma da linguagem, como se pode depreender do que vem a seguir.

Volto então àquele ponto nodal que mencionei mais acima como sendo extremamente fecundo para fundamentar teoricamente a impossibilidade da realização plena do ideal de ciência e, por isso mesmo, fecundo também para o fazer científico concreto. Trata-se de algo que já mencionei de passagem, quando abri a questão da possibilidade de os campos do Direito e da Psicanálise afetarem um ao outro, produzindo e recebendo efeitos um do outro. Naquela altura, fiz uma referência ao campo da Psicanálise como sendo instaurado a partir da suposição da falta radical e originária do objeto da pulsão e do objeto do desejo, assim como da falta, também radical e originária, de um significante primordial a partir do qual a ordem simbólica se estruturasse, no qual repousasse e encontrasse o princípio de sua consistência e do qual, em última instância, todo critério de verdade se deduzisse e a ele pudesse ser reduzido. Esse significante, entretanto, não existe, ou melhor, só existe enquanto falta radical que, por definição, jamais pode ser suprida. Por isso, é impossível de direito a qualquer discurso, científico ou não, dar conta da totalidade de seu objeto, na qual está implicado, inclusive, o devir desse objeto. Isso não significa que não se possa conhecer rigorosamente um objeto. Mas entre conhecimento rigoroso e conhecimento absoluto há uma distância intransponível.

Mas por que a falta radical de um significante primordial acarreta necessariamente a inconsistência da ordem da linguagem, da qual deriva a impossibilidade de o discurso, qualquer que seja, dizer a palavra final sobre seu objeto? A causa disso, como ensina Lacan, reside na natureza mesma do significante. Lacan desatrela o significante do significado, invertendo a relação entre ambos, que, desde que Saussure lançara as bases da linguística moderna, conferia primazia ao significado. Para Lacan, a primazia é do significante. Mas como ele próprio esclarece, o significante, em si mesmo, não significa absolutamente nada. O significante só significa na referência a outro significante. Daí ter dito Lacan que o mínimo do significante é dois. E na verdade, três, porque no intervalo entre dois significantes, como efeito de significação, é que se presentifica aquilo que ele nomeia como o sujeito, segundo sua conhecida fórmula que define o significante como aquilo que representa o sujeito para outro significante. Ora, se significante algum tem um sentido que lhe seja próprio, se qualquer possibilidade de sentido, aí, só pode ocorrer à medida que o significante se articula em cadeia com outros significantes, disso resulta que é intrínseca e ineliminável, em qualquer prática linguageira, inclusive no discurso científico por mais purificado de ambiguidades que se pretenda, a incidência de deslizamentos de sentido, que se dão conforme modalidades de que a metáfora e a metonímia são as expressões por excelência. Por mais que se tente amarrar um significante a um significado que tenha a pretensão de esgotar-lhe toda a potencialidade de significância, a inconsistência da ordem simbólica e o caráter de ser vazio de conteúdo próprio, que é inerente a todo significante, fazem incidir ali sentidos novos, inesperados, às vezes desconcertantes, indicando que a verdade, por mais que se procure demarcá-la e enclausurá-la no interior de uma articulação fechada de significantes, sempre pode estar em outro lugar... No contexto desta articulação teórica, pode ser instrutivo invocar o seguinte ensinamento de Lacan, que é um dos pilares de sustentação de sua tese segundo a qual não existe metalinguagem: nenhuma linguagem poderia dizer “o verdadeiro sobre o verdadeiro” [7].

Fui levado a todo um conjunto de digressões sobre a impossibilidade, para mim “de direito”, da realização plena do ideal de ciência (que procurei fundamentar na inconsistência da ordem da linguagem, decorrente desse furo impreenchível que é a inexistência radical de um significante primordial, articulada à condição de ser vazio de qualquer sentido próprio, que, como vimos, é da natureza de todo significante), fui levado a essas digressões, repito, a partir do momento em que enunciei minha recusa de qualquer hipótese que afirmasse a existência de um Direito em si, de uma essência em si mesma verdadeira do Direito, e de uma ciência que pudesse ser a expressão fiel, sem distorções, de tal essência. Tais digressões me pareceram necessárias, não somente para situar com certo rigor as principais razões teóricas determinantes daquela recusa, como também porque podem lançar alguma luz sobre questões a serem ainda consideradas neste trabalho. Vou retomar, então, um ou dois pontos concernentes ao estatuto teórico do Direito, que me parecem fecundos na análise de suas possíveis relações com a Psicanálise.

A recusa de uma concepção metafísica do Direito não se faz sem problemas. O mesmo ocorre, aliás, com a afirmação dessa concepção. Crer que há uma essência verdadeira em si mesma do Direito – como que à espera de ser captada em sua inteireza pelo sujeito do conhecimento, seja mediante um trabalho estritamente racional de índole dedutiva, em que as normas do Direito racional, isto é, as chamadas leis de natureza, seriam apreendidas como autênticos corolários a que se acederia pelo raciocínio a partir de princípios autoevidentes estabelecidos a priori; seja captando essa essência na dinâmica da vida social, através da investigação sociológica do fenômeno jurídico; seja buscando-a na exegese dos textos legais –, crer nisso, não deixa de ser confortável. Dá ao estudioso do Direito a impressão de que dispõe de um ponto de partida unitário, simples e seguro (um significante primordial, digamos assim) que garantiria de antemão ao terreno jurídico uma solidez suficientemente confiável para que ele por aí enveredasse sem maiores riscos, ou seja, sem o risco de vir a contradizer o seu ponto de partida. Quanto mais o discurso jurídico caminha nesse sentido, tanto mais conservador de suas premissas vai-se tornando e mais fechado em si mesmo vai ficando.

Toda concepção metafísica do Direito, de inspiração jusnaturalista, ou juspositivista, é também, sempre, uma concepção reducionista. Identifica, de saída, o Direito com uma das dimensões que o habitam, ou com um conjunto bastante restrito de dimensões, e exclui todo o resto para fora do campo jurídico. É o que faz, por exemplo, Kelsen, quando, tendo identificado previamente o Direito com o Direito Positivo, como tal estabelecido ou reconhecido pelo Estado, demarca o terreno de sua ciência jurídica, identificando-a, em essência, com a descrição das condições de possibilidade de um ordenamento jurídico, de seu escalonamento hierárquico e da forma lógica da norma de Direito. Tudo o que não está aí contido é expurgado para fora do terreno jurídico, podendo constituir, quando muito, o objeto de outras disciplinas, como a Sociologia Jurídica, a Filosofia do Direito etc. A estas caberia como que recolher aquelas sobras. E assim fica erigido um monumental sistema jurídico-formal, possuidor de alto grau de coerência lógica interna, e sem deixar qualquer resto, visto que Kelsen, em conformidade com o seu “princípio metodológico fundamental”, já realizou todo um trabalho prévio de depuração com a finalidade de “garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto se não possa, rigorosamente, determinar como Direito”. O autor acrescenta que pretende, com tais cuidados, “libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos” [8].

Pode-se contrapor, contudo, a tal concepção a objeção de que o significado da norma jurídica, por mais que o legislador se empenhe nesse sentido, jamais é unívoco, mas sim plurívoco e equívoco, de modo que a interpretação não reproduz ou descobre o “verdadeiro” sentido da lei, mas cria o sentido que mais convém a seu interesse teórico às vezes também político. Neste contexto, sentidos contraditórios podem, não obstante, ser verdadeiros. Em outras palavras, o significado do texto da lei não é autônomo, mas heterônomo. Ele vem de fora e é atribuído pelo intérprete [9].

Pode-se perguntar agora, por oportuno, diante de que texto se encontram tanto o jurista quanto o psicanalista. Em ambos os casos, fala-se de uma interpretação, com uma conotação de restituição de um sentido oculto no texto legal ou no discurso do analisante. Essa restituição, esse desvelamento de sentidos ocultos num texto parece estar suposto em qualquer interpretação, jurídica, psicanalítica ou não. É necessário esclarecer, todavia, embora não me seja possível neste trabalho especificar melhor o que a seguir vou afirmar, que o texto ao qual o analista empresta aquilo que Freud designou como sua “atenção flutuante”, não é tanto o discurso que o analisando enuncia expressamente durante a sessão, mas aquilo que fura esse discurso, que o atravessa, que lhe provoca giros de sentido totalmente inesperados e independentes de toda intencionalidade (vale dizer: de toda resistência) que o eu do analisante possa aí ter posto, sentidos que irrompem, por assim dizer, à revelia do analisante, e se presentificam como lapsos, atos falhos, troca de nomes, formações do inconsciente enfim. É este o discurso que efetivamente importa numa sessão de análise, discurso esse onde a “literalidade” da Psicanálise fica evidenciada. Não é sem propósito que Lacan recomenda que esse discurso seja tomado ao pé da letra: “Temos sempre que saber aproveitar os equívocos literais” [10].

Recusar uma concepção metafísica do Direito, por outro lado, implica em lançar-se numa certa indeterminação teórica. Perde-se, de saída, a segurança que um ponto de partida unívoco garante pelo menos aparentemente. Mas corre-se, em compensação, menos riscos de reducionismos. Partir do pressuposto de que não há nenhum estatuto epistemológico do Direito em si, objetivamente existente e já dado, no qual se esgotasse, em última instância, todo o âmbito possível da verdade sobre o “ser” do Direito, pode conduzir à asserção, que já formulei em outro lugar, de que “o estatuto do Direito não é independente das leituras que sobre ele se façam” [11]. Tal asserção, se verdadeira, traz inúmeras consequências.

Uma dessas consequências, das mais importantes, merece ser brevemente considerada aqui. Trata-se da incidência, sobre a noção mesma de verdade – no nosso caso, de como essa noção se particulariza no âmbito do Direito –, de um conjunto de efeitos que uma visão plurívoca do que seja o Direito, colocada como premissa do pensamento jusfilosófico, pode proporcionar. A articulação de pontos de partida teóricos complexos e diferenciados com uma concepção pluralista do Direito na sua realidade histórica, tal como se verifica, por exemplo, nesse movimento designado, talvez um tanto impropriamente, como Direito Alternativo, tem rebatimentos na concepção mesma da verdade a que é possível ter acesso por essa via. A diferentes concepções de Direito correspondem diferentes concepções de verdade e, por conseguinte, uma produção de critérios de verdade também diferentes. Para uns, por exemplo, o critério decisivo é o da “objetividade”, da “correspondência aos fatos”, critério esse que privilegia a verificabilidade empírica e o método que a ela conduz. Para outros, o âmbito da verdade se localiza na dimensão do discurso, sendo verdadeiro o discurso que não comporta contradição de linguagem. “O verdadeiro e o falso são atributos da linguagem, e não das coisas. E onde não houver linguagem, não há nem verdade nem falsidade”, diz, por exemplo, Hobbes, e acrescenta: “A verdade consiste na adequada ordenação de nomes em nossas afirmações” [12]. A diversidade de concepções sobre os critérios de verdade não deixa de deslocar um pouco o conceito de verdade de um eixo apenas lógico e teórico. Nessa perspectiva, pode-se dizer que a verdade, no campo do Direito, não é apenas uma questão lógica, teórica e epistemológica. É também uma questão ética e política. Lacan observa, diga-se de passagem, que o termo “verdade”, em todos os seus usos, tem origem jurídica [13].

A noção de ciência, por seu turno, depende de todo um conjunto de pressupostos, variando conforme os conteúdos e as articulações desses pressupostos também variem. Ciência, para um positivista lógico, não é o mesmo que para um materialista dialético, ou para um estruturalista, e assim por diante. Conforme o enfoque teórico seja este ou aquele, não apenas a noção de ciência vai mudando, como também se modificam, mesmo que em pequeno grau, noções que lhe são correlatas, como as de conhecimento, método, sujeito, objeto, realidade, verdade etc. O até aqui exposto permite depreender que o fato de o Direito ser ou não ser uma ciência depende estritamente do que se entenda por ciência e do que se entenda por Direito. Tanto é assim que, no panorama geral do pensamento jurídico, são justamente as correntes de cunho positivista ou neopositivista (isto é, aquelas correntes que mais valorizam o conhecimento científico, considerando-o um conhecimento de ordem superior), tanto em suas vertentes normativistas (que quase sempre reduzem o Direito ao conjunto das normas positivas vigentes), quanto em suas vertentes sociológicas (que o identificam ao fenômeno jurídico e vêem na ciência do Direito uma disciplina destinada a investigar e descrever esse objeto tal qual ele é na realidade), são essas correntes positivistas, enfim, as que mais se empenham na afirmação de que o Direito é uma ciência, embora cada uma tenha uma concepção diferente, e mesmo oposta sob vários aspectos, do que seja Direito e do que seja ciência.

O Direito, mais que uma disciplina, pode ser pensado como uma interdisciplina, como um foco de convergência interdisciplinar, como “síntese de múltiplas determinações”, na conhecida expressão de Marx. Isso não pode deixar de trazer problemas quando se quer demarcar o campo teórico do Direito. Mas problemas também surgem, como vimos, quando se parte de uma concepção unívoca do Direito. O melhor meio de lidar com eles consiste em enfrentá-los.

Vou agora tentar sintetizar, já encaminhando este trabalho a um desfecho provisório, duas ou três questões pertinentes ao estatuto da Psicanálise, que possam ser relevantes no contexto das articulações que até aqui venho tecendo.

Em primeiro lugar, convém reafirmar que qualquer inserção interdisciplinar da teoria psicanalítica envolve imensas dificuldades, em razão do estatuto peculiar dessa teoria. Não se trata somente da vigilância epistemológica necessária para evitar os riscos de reducionismo, sempre presentes em toda aproximação interdisciplinar. Trata-se, sim, de diferenças mais profundas. O campo da Psicanálise é o campo da palavra, não em sua dimensão de enunciado, que é a dimensão própria dos discursos científicos e filosóficos, mas em sua dimensão de enunciação, onde se manifesta a emergência do sujeito do desejo como efeito inconsciente da cadeia simbólica.

Num outro trabalho, elaborei um conjunto de considerações a partir dessa dimensão de enunciação própria do discurso psicanalítico, articulando-a a questões cruciais no que tange à posição do sujeito, do objeto e da verdade. Retomo aqui uma passagem desse trabalho que me parece elucidativa em relação aos fins, que agora me proponho, de pensar a possibilidade de articular Psicanálise e Direito:

“Uma ineliminável presença de subjetividade é um traço constitutivo da experiência psicanalítica, na indissociabilidade de sua teoria e de sua prática. E não se trata de mero acréscimo acidental: não pode haver Psicanálise sem sujeito. Essa presença de subjetividade como fator necessariamente intrínseco a seu campo e a sua estrutura é também um importante fator de diferenciação do campo da Psicanálise em relação aos campos das disciplinas científicas e filosóficas. O critério por excelência dessa diferenciação é a posição do sujeito definida pelas relações que mantém com a própria estrutura do discurso, [...] com seus enunciados, com seu objeto. Com efeito, enquanto nessas disciplinas o sujeito é identificado ao eu consciente e racional, exterior por definição à estrutura discursiva por ele produzida – exterioridade essa, aliás, que lhe possibilita ‘neutralizar-se’ pelo menos o suficiente para ter o controle necessário para garantir ‘objetividade’ ao seu discurso –, enquanto nessas disciplinas o sujeito é ‘cognoscente’ e a ele corresponde, mais ou menos simetricamente, um objeto referido à realidade e designado como ‘cognoscível’, sendo que a verdade a que se acede no discurso se constitui na relação entre esses termos e tem função de significado; enquanto isso, no discurso psicanalítico o sujeito é sujeito do desejo (onde nenhuma ‘neutralidade’ é possível), sujeito do inconsciente na medida em que assujeitado à ordem simbólica inconsciente que lhe é logicamente anterior e o constitui como efeito (e não como causa) de significação, ordem simbólica essa à qual o sujeito é necessariamente interior e sobre a qual, por isso mesmo, não possui controle, não podendo, portanto, ocupar o lugar de fundamento. Esse sujeito, tal como a Psicanálise o entende, é um sujeito cindido, clivado, intervalar (seu locus na estrutura é entre significantes) e distinto do eu, cuja função, aliás, não é cognoscente, mas a de oferecer resistência, de resistir a toda verdade, e de portar um desconhecimento fundamental que lhe é constitutivo, um desconhecimento ativo, visto que ‘a atividade do eu é desconhecer’, como diz Ogilvie [14] [...]. A ‘tomada de consciência’ não elimina o desconhecimento. Pelo contrário, faz parte dele. A alienação é constitutiva do sujeito em Psicanálise e, nessa condição, ineliminável. A esse sujeito não corresponde simetricamente nenhum objeto, a não ser enquanto falta radical de objeto, falta essa que é a própria condição de possibilidade da estruturação do campo psicanalítico” [15].

A questão da clivagem do sujeito, da pressuposição de um corte radical e constitutivo entre o eu consciente e racional e o sujeito inconsciente e desejante, é de uma importância tão crucial, que se pode dizer sem exagero que ela se encontra na fundação da própria possibilidade de inauguração do campo de algo assim como a teoria psicanalítica. E, nessa perspectiva, essa clivagem (Spaltung) do sujeito é nuclear no que concerne ao questionamento de toda atribuição de “cientificidade” à Psicanálise, assim como à diferenciação do estatuto teórico da Psicanálise em relação às disciplinas científicas e filosóficas. “Com efeito” – observa Dor –, “não parece muito possível experimentar a interrogação colocada pelo status epistemológico da teoria analítica e, em consequência, toda a problemática que subentende seu argumento, fora da divisão do sujeito. Somente essa dimensão crucial da subjetividade permite compreender em que o campo psicanalítico se mostra refratário aos critérios de cientificidade habituais; em que o discurso analítico se submete radicalmente à autoridade epistemológica familiar e às teorias do conhecimento que essa autoridade requer ou supõe e cujo princípio deve-se até mesmo concordar que ele subverte” [16].

A verdade a que se pode aceder no discurso analítico “não é definida mediante nenhum critério de ‘objetividade’, mas referida intimamente ao desejo, e tem função de significante: é promessa de significação [...]. A Psicanálise implica uma posição particular do sujeito em relação ao lugar da verdade. Verdade, em Psicanálise, é a presença do inconsciente na fala, que se dá por uma brecha no discurso do sujeito. A palavra tem sempre uma dimensão de equivocação: ‘a verdade surge da equivocação’ [17], diz Lacan. [...] Na análise, o que mais importa é que aquilo que está sendo dito pode significar outra coisa. Algo do gênero daquilo que Alcibíades enuncia a certa altura do Banquete, de Platão: ‘A lembrança de uma coisa me faz dizer outra’ [18]. O espaço de emergência da verdade do sujeito é também o espaço da ética da Psicanálise. Não é um lugar de normatização, mas de des-organização; não é algo derivado, e sim algo já presente e constitutivo” [19]. Nesse contexto, pode ser fecundo invocar a afirmação de Lacan segundo a qual “a ética se situa para além do mandamento” [20].

Sendo a referência fundamental da verdade o desejo inconsciente, a verdade em Psicanálise é menos uma questão epistemológica do que uma questão ética. Ela não se presentifica como o resultado de um raciocínio, ou de uma demonstração, mas sim nos lapsos, nos atos falhos, nos sonhos, nos chistes, naquilo que Lacan designou como formações do inconsciente, naquilo que escapa ao controle e a toda intencionalidade que o eu possa colocar em sua busca de um conhecimento verdadeiro. Sendo referente à história de um sujeito, a verdade de que aí se trata não é geral e universal, como no conhecimento científico e filosófico, mas uma verdade singular. Esse estatuto singular da verdade, articulado àquilo que, na análise, é da ordem do desejo inconsciente de um sujeito, é um dos critérios pelos quais a Psicanálise se define como “ciência do particular”.

“A concepção psicanalítica de sujeito apresenta profundas diferenças estruturais com relação à concepção que do sujeito costumam ter os discursos científicos e filosóficos. Não é do mesmo sujeito que se trata. [...] Essa dimensão de diferença não está sendo entendida no sentido de uma exclusão de outras concepções de sujeito vigentes em teorias e práticas distintas das da Psicanálise. O fato de a Psicanálise ter operado uma verdadeira subversão na noção de sujeito não implica necessariamente uma refutação das noções filosófica, científica e jurídica de sujeito: trata-se de campos teóricos e de experiências diferentes, o que não inviabiliza, porém, a tentativa de estabelecer, com os devidos cuidados, relações entre eles. Mas para isso é preciso entender, como sugere Ogilvie, que a problemática da Psicanálise ‘não incide sobre a possibilidade do conhecimento, mas sobre a posição do sujeito com relação a este conhecimento, que, aliás, se elabora prescindindo dele’ [21]. A “subversão” da noção de sujeito, operada pela Psicanálise, consiste fundamentalmente no descentramento do eu consciente e racional que o pensamento moderno, a partir de Descartes, colocara como a própria sede do mundo psíquico, identificando o psíquico ao consciente. ‘Existo onde não penso’, retruca Lacan a tal concepção” [22]. Esse descentramento tem, como um de seus efeitos capitais, a impossibilidade de o sujeito falante operar a linguagem como seu instrumento, como algo que lhe fosse exterior e pudesse ser por ele manipulado sob seu controle e segundo sua intencionalidade. No discurso analítico, o sujeito não é o artífice [intencional] de sua própria verdade. Isso decorre da implicação mesma da subjetividade – ou seja, do fato de haver desejo – nas determinações de todo discurso. “Não é por haver sujeito que há verdade, mas, pelo contrário, porque há verdade, há sujeito” [23].

A radicalidade da especificidade do campo psicanalítico, sobretudo no que se refere à posição que aí ocupam o sujeito, o objeto e a noção de verdade, não impede a articulação desse campo com o de disciplinas científicas e filosóficas, articulação essa que constitui aquilo que Lacan nomeia como psicanálise em extensão. Uma questão importante que a Psicanálise pode colocar aqui é a de saber de que modo se constitui a própria possibilidade de um discurso científico e filosófico, isto é, como se determina um campo de saber. Lacan diz que essa determinação se opera por uma exclusão. Por um lado, uma ciência se constitui mediante a exclusão (mediante o recalque, no sentido que este termo tem na teoria psicanalítica) do fato de haver uma clivagem constitutiva do sujeito. Supor uma unidade do sujeito é uma condição necessária à instauração do campo de um discurso científico. Por outro lado, o ato mesmo de delimitar o campo de uma disciplina teórica já implica no estabelecimento de uma “cerca”, na imposição de uma “clausura”, em deixar do lado de fora algo de que essa disciplina nada quer saber, sendo esse “nada-querer-saber” do que foi excluído a condição mesma da constituição daquela disciplina. Vimos mais acima, a propósito, como Kelsen procede exatamente dessa maneira na demarcação que faz do campo do Direito e de sua ciência. Isto lembra a noção psicanalítica do recalcado e de seu retorno. O recalcado é insuprimível, sua insistência é imperecível. Daí a identidade, de que fala Freud, entre o recalcado e seu retorno. O que significa que o que foi excluído para que o campo de uma disciplina teórica pudesse ser constituído, retorna (isto é, nunca deixou de estar aí) no interior mesmo do campo constituído a esse preço. “O inconsciente se impõe à ciência como um fato”, diz Lacan [24].

No que tange mais especificamente à articulação da Psicanálise com o Direito, encontramo-la expressamente admitida em várias passagens da obra de Lacan. Ele fala, por exemplo, de conceitos originariamente jurídicos, como o de gozo, que ele próprio introduz, ou os conceitos freudianos de denegação (Verneinung) e de forclusão (Verwerfung), que foram mais tarde incorporados ao vocabulário conceitual da Psicanálise, assumindo acepções novas e inesperadas, mas conservando algo de sua conotação jurídica original.

E fala também da possibilidade de relações mais profundas entre os campos dessas duas disciplinas. Encerro o presente trabalho citando uma passagem em que Lacan menciona expressamente essa possibilidade. Ela pode ser encontrada na abertura do Seminário 17, proferido, entre os anos de 1969 e 1970, nas dependências de uma Faculdade de Direito, em Paris:

“Naturalmente, não se sabe o que vai acontecer aqui. Não sei se virão estudantes de Direito, mas, na verdade, isto seria capital para a interpretação, [...] pois trata-se este ano de pegar a Psicanálise pelo avesso, e talvez, justamente dar-lhe seu estatuto no sentido chamado jurídico do termo. Isto, em todo caso, sempre teve a ver, e no grau mais elevado, com a estrutura do discurso. Se o Direito não é isso, se não é aí que percebemos como o discurso estrutura o mundo real, onde então será? É por isto que não estamos aqui pior em nosso lugar do que em outra parte” [25].

Como entender a formulação de que é aí, no âmbito do Direito, que se pode perceber como o discurso estrutura o mundo real, é uma questão muito instigante, mas que terá de ser deixada para outra ocasião...


Versão ligeiramente modificada de conferência proferida no painel Derecho y Psicoanálisis, por ocasião do I Coloquio Internacional de Filosofía del Derecho, Ética y Política, promovido pelo Instituto de Investigaciones Jurídicas de la Universidad Nacional Autónoma de México. México, D.F., 04 de março de 1996.

Publicado em: INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS JURÍDICOS. Direito e Neoliberalismo: Elementos para uma Leitura Interdisciplinar. Curitiba: Editora do Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos, 1996, p. 17-38.

Publicado em: ESCOLA DE PSICANÁLISE DO MARANHÃO. Revista da Escola de Psicanálise do Maranhão, nº 1. São Luís: Escola de Psicanálise do Maranhão, 1997, p. 27-50.

Publicado em: RODRIGUES, Horácio Wanderlei (organizador). O Direito no Terceiro Milênio. Canoas: Editora da ULBRA, 2000, p. 76-87.


Notas e Referências:

[1] HEIDEGGER, Martin. Que é Metafísica? Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973, coleção “Os Pensadores”, v. XLV, p. 233.

[2] LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 17: O Avesso da Psicanálise (1969-1970). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Ari Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 19 (Grifos do autor).

[3] JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e Patologia do Saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

[4] ROLNIK, Sueli. “As Asas do Desejo, o Cinema-Vôo”. IN: Folhetim. Jornal Folha de São Paulo, 11 de março de 1989.

[5] Cf. LEITE, Nina Virgínia de Araujo. Psicanálise e Análise do Discurso: o Acontecimento na Estrutura. Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 1994.

[6] “No fundo, o Direito fala do [...] gozo. [...] É nisso mesmo que está a essência do Direito – repartir, distribuir, retribuir, o que diz respeito ao gozo. O que é o gozo? Aqui ele se reduz a ser apenas uma instância negativa. O gozo é aquilo que não serve para nada. Aí eu aponto a reserva que implica o campo do direito-ao-gozo. O direito não é o dever. Nada força ninguém a gozar, senão o superego. O superego é o imperativo do gozo – Goza!”. LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 20: Mais, Ainda (1972-1973). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 10, 11 (Grifo do autor).

[7] LACAN, Jacques. “A Ciência e a Verdade”. IN: LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 882.

[8] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. Coimbra: Arménio Amado, 1974, p. 17.

[9] Cf. COELHO, Luiz Fernando. Teoria Crítica do Direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

[10] LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 17: O Avesso da Psicanálise. Op. cit., p. 15.

[11] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A Importância do Direito no Brasil de Hoje. Aula Inaugural dos Cursos da Universidade Federal do Maranhão no ano de 1993. São Luís: EDUFMA, 1993, p. 8.

[12] HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil [1651]. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974, coleção “Os Pensadores”, v. XIV, p. 27.

[13] LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 20: Mais, Ainda. Op. cit., p. 123-124.

[14] OGILVIE, Bertrand. Lacan: a Formação do Conceito de Sujeito (1932-1949). Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 129.

[15] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. “Para a Compreensão do Sujeito Jurídico: uma Leitura Transdisciplinar”. IN: INSTITUTO DOS ADVOGADOS BRASILEIROS. Seminário Nacional sobre o Uso Alternativo do Direito. Rio de Janeiro: Instituto dos Advogados Brasileiros, 1993, p. 23-24 (Os grifos constam do original).

[16] DOR, Joël. A-Cientificidade da Psicanálise. Tomo 1: A Alienação da Psicanálise. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993, p. 18-19.

[17] LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 1: Os Escritos Técnicos de Freud (1953-1954). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Betty Milan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986, p. 297.

[18] PLATÃO. O Banquete, 215 a.

[19] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Para a Compreensão do Sujeito Jurídico: uma Leitura Transdisciplinar. Op. cit., p. 24 (Os grifos constam do original).

[20] LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 7: A Ética da Psicanálise (1959-1960). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Antônio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 11.

[21] OGILVIE, Bertrand. Op. cit., p. 131.

[22] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Para a Compreensão do Sujeito Jurídico: uma Leitura Transdisciplinar. Op. cit., p. 24 (Os grifos constam do original).

[23] BADIOU, Alain. Para uma Nova Teoria do Sujeito: Conferências Brasileiras. Tradução de Emerson Xavier da Silva e Gilda Sodré. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 43.

[24] LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 17: O Avesso da Psicanálise. Op. cit., p. 85.

[25] Id. Ibid., p. 15.      


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