Subjetivação dos direitos dos animais como armadilha antropomórfica

24/10/2015

Por Paulo Roberto Pegoraro Junior - 24/10/2015

A visão jusnaturalista relativamente aos direitos dos animais, sustentada por Tom Reagan (2004), é centrada na ideia de que não há diferença substancial entre as espécies que autorize, só por ela, a redução do valor intrínseco dos não-humanos e, com ela, a recusa de reconhecimento de um estatuto jurídico pleno. Habitualmente, a concepção se molda à figura dos interesses como fundamento do direito, a partir do silogismo formulado por Raymond Frey (1980, p. 5): só os seres com interesses têm direitos; os animais não humanos têm interesses; logo, os animais não humanos têm direitos.

A preocupação com a demonstração de que os animais têm interesses, no sentido de que são capazes de apreciar bens por eles mesmos, de evidenciar preferências, de experimentar sofrimento, e de atuar no sentido de miminizar esse sofrimento, cumprindo funções, portanto, essenciais à sobrevivência e perpetuação, nos permite a compreensão de que são sujeitos de uma vida, e que tem, além de uma vida, uma verdadeira existência. Mas, para Fernando Araújo (2003, p. 284), a asserção de que os animais têm interesses nos conduzem à uma posição aparentemente problemática, pois, se o que se quer sustentar é que “ter um interesse” equivale a sustentar que existem bens objetivamente favoráveis a uma entidade, que há coisas que objetivamente a favorecem ou desfavorecem. Em sentido contrário, se a compreensão do interesse implica na existência de uma consciência reflexiva, a percepção que propicia a comparação valorativa entre o estado subjetivo que antecede e aquele que sucede à satisfação ou frustração desses interesses, a operação se revela mais complexa na medida em que ausente uma linguagem partilhada apta a demonstrar a existência dessa percepção nos animais.

Assim é que a outorga da titularidade de um direito subjetivo em alguém implica na centralidade da imputação de prerrogativas de defesa, admitindo em outrem uma “legitimidade reactiva” (ARAÚJO, ibidem), que tenha a ver com a vontade comum de conceder uma defesa mais intensa e institucional de interesses, e não tem a ver com o reconhecimento de quaisquer propriedades naturais. O sofisma se compadece do fato de que nada nem ninguém partilha com a espécie humana a atribuição cultural pela concepção dos direitos, pelos critérios da sua atribuição ou negação.

Fernanda Medeiros (2013, p. 268), logrou apontar o desafio, para além de um dever estatal de proteção dos animais não humanos e dos deveres fundamentais com os animais não humanos, de se cogitar uma dimensão subjetiva do direito fundamental de proteção dos animais não humanos. E, a partir da perspectiva da existência de uma dimensão objetiva e de uma dimensão subjetiva traçada para o direito fundamental de proteção ao meio ambiente, “assume-se o desafio de uma busca necessária do reconhecimento de uma dupla dimensão do direito fundamental da proteção do animal não humano” (idem, p. 272).

Para Ingo Wolfgang Sarlet, embora o direito constitucional positivo não reconheça direta e expressamente direitos fundamentais como direitos subjetivos aos animais, no sentido de serem estes titulares de direitos desta natureza, “o reconhecimento de que a vida não humana possui uma dignidade, portanto, um valor intrínseco, e não meramente instrumental em relação ao Homem, já tem sido objeto de chancela pelo Direito, e isto em vários momentos” (2015, p. 232/233), identificando-os tanto com os mecanismos para vedação de práticas cruéis e causadoras de sofrimento desnecessário, como também naquelas que vedam a prática de atos que levem à extinção das espécies. Para Sarlet, ainda que prevaleça a tese de que não há como atribuir aos seres vivos não humanos, especialmente aos animais, na condição de seres sensitivos, a titularidade dos direitos humanos, o reconhecimento da fundamentalidade da vida para além da humana implica pelos menos a existência de deveres de tutela desta vida e desta dignidade.

A armadilha que se coloca, como já logrou identificar Fernando Araújo (2003, p. 38) ao tratar da “ilusão antropomórfica” que projeta sobre os animais as nossas perspectivas humanas, investindo-os de qualidades na nossa espécie, é que aponta para um indício ambivalente da nossa arrogância especista (pois projeta em alguns animais virtudes cuja amplitude é sempre dependente de uma consciência reflexiva do mérito e de uma capacidade volitiva de transgressão, por outro lado toma os animais humanos como ícones de uma “moralidade sem mácula, por manifestações (epifanias?) de uma animalidade impoluta que torna os próprios seres humanos naturalmente bons”. O trilhar da subjetivação dos direitos dos animais, assim, envolve um sério resquício da arrogância especista, de tomar a espécie humana não apenas como única, mas também incomensurável, ao se adotar um critério pragmático quanto à ética envolvida entre espécies, subordinando a um “juízo de eficiência existencial” (idem, p. 39) na promoção de fins tangíveis e intelectualmente insofismáveis.

Ao nos afastarmos da propensão antropomórfica, no entanto, podemos reconhecer que legislação atribui já, um pouco por toda a parte, direitos aos animais, especialmente quando impõe normas de conduta contra a afetação dos interesses subjetivas dos animais não humanos, que se revela o modo mais eficiente com o qual se pode atuar na proteção dos direitos dos animais, daí porque a subjetivação pode ser pragmaticamente irrelevante para promoção dos interesses dos seus titulares não humanos, como já logrou defender Cass R. Sustein (2008, p. 452/453).

A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, da UNESCO (Bruxelas, Bélgica, 1978), não hesita em dar por fundamental a ideia de que “todo o animal possui direitos”. Já o Protocolo sobre o Bem-Estar Animal da União Europeia (aditamento ao Tratado de Amsterdam, 1999), com sua referência à condição de “seres sensíveis” dos animais, não os reduzindo a meros bens ou produtos agrícolas, implica claramente na opção da consideração autônoma, personalizada e universalmente oponível, de interesses e problemas indivíduos não humanos. Em recente decisão, o Parlamento Francês alterou o Código Civil (art. 515-14) e passou a reconhecer os animais como seres sencientes, modernizando o Código Civil a partir de um projeto idealizado pela ONG Fondation 30 Million Amis. Idêntica proposição tramita perante o Senado Federal do Brasil (PLS 351/2015), alterando o Código Civil brasileiro para determinar que os animais não sejam considerados como coisas, tendo a proposta recebido parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça, aproximando a compreensão internacional que já vem sendo dada, como por exemplo o Código Civil da Suíça (art. 614, alterado em 2002) e o Código Civil Austríaco ABGB (art. 285ª).

Na Alemanha, desde 1990 o BGB deixou de considerar os animais como coisas (§ 90a), e onde, a partir de maio de 2002, a Constituição passou a consagrar o dever estadual de proteção e respeito pelos direitos dos animais, funcionalizando-os, juntamente com as “bases naturais da vida”, ao interesse das gerações vindouras (art. 20a), “havendo o propósito de forçar uma reponderação, a nível constitucional, dos estatutos relativos dos direitos de humanos e não-humanos, e, para já, a prevalência de alguns direitos dos animais sobre interesses religiosos e científicos dos humanos” (Araújo, 2003, p. 287).

Notavelmente pioneiro, o Decreto-Lei nº 24.645/1934, do Brasil, que vigorou até o ano de 1991 (revogado pelo Decreto nº 11/1991), estabelecia que “todos os animais existentes no País são tutelados do Estado” (art. 1º), que “os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras de animais” (§ 3º, art. 2º) e que “as autoridades federais, estaduais e municipais prestarão aos membros das sociedades protetoras de animais a cooperação necessária para fazer cumprir a presente lei” (art. 16). A sofisticação conceitual do Decreto-Lei nº 24.645/1934 pode ainda ser evidenciada pela consideração na categoria de “maus-tratos” a omissão de eutanásia ativa a animais em sofrimento prolongado (art. 3º, VI), não se fazendo ressalva para a situação da predação natural, a qual é prevenida pela proibição de trabalho em conjunto com animais de espécies diversas (art. 3º, VIII), de encerramento de animais com outros que os aterrorizem ou molestem (art. 3º, XXII), de entrega de animais vivos à alimentação de outros (art. 3º, XXVI) e da engorda mecânica de aves (art. 3º, XXV). O nobre exemplo foi continuado pela Constituição Federal do Brasil, que estabelece, em seu art. 225, § 1º, VII, que incumbe ao Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.

É bem verdade que iniciativas pontuais da jurisprudência, com ou sem sucesso, vem trabalhando a questão da subjetivação e da representação dos interesses dos animais. Em 2014, por iniciativa da Associação de Funcionários e Advogados pelo Direito dos Animais, de Buenos Aires, a orangotango Sandra, que vivia há 20 anos no zoológico portenho, foi reconhecida como pessoa jurídica, abrindo caminho para que seja levada a um santuário brasileiro onde poderia viver em semiliberdade. A medida foi deferida em sede de habeas corpus, no qual o tribunal de cassação considerou que se tratava de um "confinamento injustificado de um animal com provada capacidade cognitiva", e que estava sofrendo com o cativeiro e por ser exibida às pessoas que visitam o zoológico de Palermo. Para eles, Sandra não só demonstrava essas características em várias fotografias como, além disso, estava "privada de liberdade" de forma ilegal, ou seja, estava presa. Por essa razão ela deveria ter os mesmos direitos que um ser humano (vide http://www.clarin.com/br/Habeas-orangotango-Zoologico-Buenos-Aires_0_1272472911.html).

Em Nova Iorque, também em 2015, uma juíza do Estado acolheu a tramitação inicial de um pedido de habeas corpus, para realização de audiência inicial, envolvendo dois chimpanzés, Hercules e Leo, que vivem em cativeiro em Long Island. No pedido, os advogados do Projeto de Direitos para Não-Humanos alegaram que os chimpanzés são tratados em condições análogas à escravidão, o que autorizaria o uso do remédio, sobretudo ante a condição de equiparação de espécies para fins de reconhecimento dos direitos fundamentais (disponível em http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/the-new-york-times/2015/05/31/advogado-luta-para-que-chimpanzes-tenham-direito-a-habeas-corpus-nos-eua.htm). O tribunal ainda não se pronunciou quanto ao mérito do pedido, mas só pelo acolhimento do processamento do pedidos as entidades defensoras dos animais já vem comemorando a medida. Em outro caso em Nova Iorque, em 2014, o tribunal havia negado o direito ao uso do habeas corpus para outro chimpanzé, Tommy, que vivia sozinho em uma jaula no interior do condado de Fulton (disponível em http://g1.globo.com/natureza/noticia/2014/12/corte-de-nova-york-nega-direitos-de-seres-humanos-chimpanzes.html). Na ocasião, o tribunal entendeu que Jimmy não teria personalidade jurídica própria, sobretudo ante a ausência de reciprocidade dos direitos e deveres e da ausência da dimensão da convencionalidade na admissão do ordenamento jurídico: “Considerando a teoria legal, uma pessoa é um ser que a lei considera como capaz de direitos e deveres (...) é desnecessário dizer que, diferentemente dos seres humanos, os chimpanzés não podem suportar quaisquer deveres legais, submeter-se a responsabilidades sociais ou ser legalmente responsáveis por suas ações”.

Por outro lado, no Brasil, em 2011, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro negou habeas corpus impetrado em favor do chimpanzé Jimmy, que ficou conhecido pelo gosto de pintar telas de arte, que já foram inclusive expostas. A decisão da 2ª Câmara Criminal entendeu que o habeas corpus somente se aplica para seres humanos (vide http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/04/justica-nao-concede-habeas-corpus-chimpanze-morador-de-zoo-no-rj.html).

O trilhar do reconhecimento da subjetivação dos direitos dos animais envolve a superação da condição de supremacia ou arrogância entre espécies, dada a convencionalidade e a própria manifestação cultural envolvida na produção e efetivação do Direito. Afora o óbice da manifestação dos interesses por meio da linguagem (coisa, que ademais, é identificada também em alguns seres humanos desprovidos da capacidade de manifestação, mas que, ainda assim, tem seus direitos reconhecidos), parece bem que a busca da eficiência nas regras de proteção dos direitos dos animais pode se contentar, por ora, com a construção normativa e jurisprudencial que assegure de modo pleno a imposição de deveres dos seres humanos para com os animais.


Notas e Referências:

ARAÚJO, Fernando. A hora dos direitos dos animais. Coimbra: Livraria Almedina, 2003.

AVANCINI, Alex. Em decisão histórica França altera Código Civil e reconhece animais como seres sencientes. Disponível em <http://www.anda.jor.br/03/02/2015/decisao-historica-franca-altera-codigo-civil-reconhece-animais-seres-sencientes>, acesso em 31/08/2015.

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto-Lei nº 24.645/1934. DOU 13/07/1948. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D24645.htm>, acesso em 31/08/2015.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.856, Relator Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 26/05/2011, DJe-198 divulg. 13/10/2011, publ. 14/10/2011; Ement. Vol. 2607-02, p. 275; RTJ 220/18; RT v. 101, n. 915, 2012, p. 379-413.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 153531, Relator Min. FRANCISCO REZEK, Relator p/ Acórdão Min. MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 03/06/1997, DJU 13/03/1998, p. 13; Ement. Vol. 1902-02, p. 388.

FREY, Raymond G. Interests and rights: the case against animals. Oxford: Clarendon, 1980.

LEITE, Júlia Teresa Sousa; FERNANDES, Mariana Januário Guedes. Farra do Boi: proibição e criminalização. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3005, 23 set. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/20059>. Acesso em: 30 ago. 2015.

MARTINS, Natália Luiza Alves. A proteção jurídica dos animais no direito brasileiro: por uma nova percepção do antropocentrismo. Dissertação (mestrado). Universidade de Fortaleza, 2011. Orientação: Profa. Dra. Ana Maria D'Ávila Lopes. 134 f.

MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Direito dos animais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.

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SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015.

SINGER, Peter. Libertação animal. Trad. Marly Winckler, Marcelo Brandão Cipolla; rev. téc. Rita Paixão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

SUNSTEIN, Cass R. Os animais podem processar? In MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 451-472.


Painel apresentado na IIª Jornada Latinoamericana de Derechos Fundamentales, na Faculdad de Derecho de la Pontificia Universidad Católica del Perú, em outubro de 2015.


Paulo Roberto Pegoraro Junior

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Paulo Roberto Pegoraro Junior é Doutorando em Direito pela PUC/RS. Mestre em Direito pela Unipar. Professor de Direito da Univel. Advogado. Email: paulopegorarojr@hotmail.com

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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