É inegável que a interação e a participação das pessoas em sociedade decorrem da própria natureza humana dos indivíduos. Pode-se dizer que a necessidade de interação por meio da troca de esforços, com a finalidade de se atingir um objetivo comum, é inerente à própria existência humana e faz parte da história da civilização.
Na medida da impossibilidade ou do elevado ônus do exercício individual de uma atividade econômica, as pessoas tendem a se unir, somando esforços, para concretizar objetivos comuns, ora em razão da impossibilidade dos objetivos serem atingidos individualmente, ora em razão da execução da atividade em grupo ser, na maioria das vezes, mais fácil e mais produtiva.
Em outras palavras, podemos dizer que a característica comum decorrente da união de pessoas que se juntam para um determinado fim ou para a realização de uma atividade resulta da ideia básica que está intimamente ligada com o contexto da formação das sociedades empresárias.
Nesse aspecto é possível afirmar que a estrutura e as características das sociedades empresárias decorrem das próprias necessidades de cada civilização, à medida que a sua formação observa as mais diversas condições existentes em cada ambiente social, histórico, legislativo, econômico, financeiro e, inclusive, político[i].
Sabe-se que a formação e a constituição de uma sociedade têm pleno alinhamento com a Análise Econômica do Direito (AED), na medida em que os riscos do negócio são diluídos, ou seja, compartilhados entre dois ou mais sócios ou com, pelo menos, a pessoa jurídica, no caso das sociedades unipessoais. O compartilhamento não se limita aos riscos, mas a tudo que envolve a gestão operacional da empresa e aos resultados econômicos derivados, que tendem ser mais relevantes. Ao lado disso, a escolha adequada do tipo societário segundo a realidade das atividades a serem desenvolvidas acarreta economia financeira e tributária. A redução de custos de transação, portanto, é evidente. Aliás, vários conceitos econômicos são atraídos para essa esfera organizacional, inclusive, o de eficiência.
É o ato constitutivo devidamente arquivado no registro público competente que cria a sociedade empresária.
Podemos afirmar que o principal efeito do contrato de sociedade é a constituição de um sujeito de direitos dotado de personalidade jurídica: a sociedade (pessoa jurídica, CC, artigo 44, II). Os contratantes, ao celebrarem o contrato de sociedade, com suas manifestações de vontade, têm o poder de criar uma pessoa jurídica que, ao mesmo tempo em que é criada pelos sócios, passa a ser a eles vinculada juridicamente e, em decorrência disso, titular de direitos e obrigações. Os sócios, tão logo celebram o contrato de sociedade, passam a ser devedores da principal obrigação de um sócio, isto é, a de integralizar o valor das suas quotas sociais, na forma contratada. A credora da integralização das quotas é a própria sociedade[ii].
Lembre-se, todavia, que uma estrutura jurídica societária bem-sucedida depende de pelo menos três instrumentos, qualitativamente organizados, a saber: a) o contrato ou estatuto social[iii]; b) os acordos parassociais; e c) o plano organizacional, de governança, compliance e LGPD[iv]. Esses são os alicerces de qualquer sociedade empresária, seja ela de pessoas ou de capital, cujos cuidados estão intimamente ligados com os postulados da AED, reduzindo-se, sobremaneira, os riscos de insucesso.
É a teoria contratualista que se aplica na formação do ato constitutivo. É, portanto, fundamental a negociação do conteúdo das cláusulas que deve estar em perfeita harmonia com o objeto-fim da sociedade. Uma das definições importantes é o capital social, que é estruturado e estabelecido mediante cláusula contratual específica no contrato social (sociedade de pessoas) e no boletim de subscrição e integralização (sociedade de capital).
O capital social da empresa é o patrimônio estabelecido em dinheiro ou bens que os sócios transferiram ou se obrigaram a transferir à sociedade no ato constitutivo e suas alterações subsequentes.
Como visto, a integralização do capital pode se dar em bens e dinheiro. Caso ocorra em bens, o valor deles dar-se-á por estimativa em relação às sociedades de pessoas, atraindo a responsabilidade solidária de todos os sócios pela afirmação (CC, art. 1.055, parágrafo 1º), enquanto nas sociedades de capital serão avaliados por três peritos ou por empresa especializada nos moldes do artigo 8º, caput da LSA.
Deliberadamente foi dado destaque ao capital social, pois interessa sobremodo ao tema em apreço. O texto aqui construído aplica-se tanto para as sociedades de pessoas como para as de capital, mas com limitações. Adere mais, portanto, as sociedades limitadas (plurais ou unipessoais) e as sociedades anônimas de capital fechado, pois, em que pese a estrutura jurídica estar estabelecida por diferentes instrumentos, as premissas e os objetivos levam em conta as pessoas dos sócios, e relativamente, a affectio societatis.
Pelo princípio da realidade do capital, o valor estimado para os bens deve ser autêntico, representando efetivamente os valores declarados. A superavaliação, com a intenção de simular ou fraudar a realidade, objetivando acesso fácil a créditos ou mesmo negociar contratos de forma mais atrativa, pode dar ensejo a questionamentos pelo credor, com a consequente responsabilidade pessoal dos sócios, a fim de se obter a respectiva suplementação de valor.
O patrimônio da sociedade é o conjunto de valores de que esta dispõe, existindo valores ativos, quer seja, tudo o que a empresa dispõe e valores passivos, que corresponde ao que a sociedade deve, como por exemplo, impostos, títulos de crédito de fornecedores, folha de pagamento dos funcionários, dentre outros[v].
Importante frisar que o valor do capital social integralizado pelos sócios no momento da constituição da sociedade é estático e formal (chamado de patrimônio inicial), mas na medida da evolução dos negócios, da majoração do faturamento e do sucesso das atividades econômicas desenvolvidas, o patrimônio sofre variações, não necessariamente repercutindo em aumento de capital, decisão essa que compete aos sócios. Não há aqui, nenhuma fraude, simulação ou violação à lei, pois se trata de uma situação natural da prática societária.
Deste modo, e em regra, o patrimônio inicial da empresa corresponde ao valor do capital social efetivamente integralizado pelos sócios. No decorrer da atividade empresária e a depender de fatores internos, como a administração e externos, como situação econômica do país, o patrimônio líquido pode exceder o valor do capital como também, na hipótese de prejuízos, ficar aquém.
Nos casos em que o capital social superar o valor do patrimônio líquido, eventual distribuição de lucros aos sócios poderá ser questionada, inclusive, com a reposição dos valores em prol da sociedade, pois o patrimônio líquido da sociedade se constitui do acervo a ser perseguido pelos credores no caso de dívidas sociais, sem descuidar, aqui, do princípio basilar da intangibilidade do capital social, que serve de bloqueio à distribuição de dividendos/lucros em prejuízo do capital.
Nesse sentido dispõe o artigo 1.059 do Código Civil: “Os sócios serão obrigados à reposição dos lucros e das quantias retiradas, a qualquer título, ainda que autorizados pelo contrato, quando tais lucros ou quantia se distribuírem com prejuízo do capital”.
É fato de que o valor contábil da empresa não se mede pelo valor do seu capital social, mas sim pelo seu patrimônio líquido, pois, conforme já mencionado, a partir do momento em que a sociedade começa a operar, o capital pode se manter estático e o patrimônio líquido, por ser dinâmico, sofre variações.
A priori, a legislação societária brasileira não estabelece limites mínimos de capital social para a formação de sociedades empresárias, exigindo apenas a declaração do respectivo montante nos atos constitutivos da sociedade (CC, art. 997, III e LSA (Lei 6.404/76), art. 5º). Uma das exceções é a empresa individual de responsabilidade limitada – EIRELI – em relação a quem o art. 980-A do Código Civil exige capital social mínimo de “100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País”, e outras decorrem de exigências legais e ou regulatórias, para o exercício de atividades econômicas específicas.
A justificativa para a previsão legal de capital mínimo está ancorada na intenção de minorar os riscos próprios da subcapitalização e conferir maior segurança jurídica ao mercado e aos credores. A regra geral, porém, é a da inexistência de capital mínimo para a constituição de sociedades empresárias no Brasil, de modo que os sócios possuem liberdade para defini-lo em função das necessidades do caso concreto, devendo ser em um valor suficiente para a realização do objeto social, sob pena de sua inexequibilidade[vi].
A subcapitalização diz respeito à inadequação entre o capital nominal e o capital real necessário para que a empresa seja exercida, e isso independentemente de haver ou não empréstimos de sócios à sociedade.
Para fins societários, portanto, a subcapitalização poderá ocorrer mesmo nas situações em que não haja desproporção entre capital próprio e capital de terceiros, desde que se verifique desproporção entre o volume de recursos que a sociedade tem, à sua disposição, e a proporção da atividade empresarial por ela desenvolvida[vii].
Portanto, ocorrendo a subcapitalização do capital social da empresa (a referida desconexão plena) nos termos acima mencionados, caberia a desconsideração da personalidade jurídica?
Antes de tudo, importante elucidar que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica foi criado para que se retire episodicamente o véu da
pessoa jurídica devedora no caso concreto a fim de atingir os bens dos sócios, para que
seja cumprida a obrigação originariamente empresária. Isto sobrevém quando a empresa devedora incorre em abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial (CC, art. 50).
Nesse contexto, discute-se a hipótese de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária nas situações em que a desproporção entre o valor do capital social e dos recursos efetivos da empresa for evidente, cabendo, então, indagar se seria o caso de abuso da personalidade jurídica pelo desvio de finalidade ou mesmo pela confusão patrimonial.
Ainda em 2007 Hübrt, a partir de estudos acadêmicos, disse ser possível firmar posicionamento pela existência de abuso da personalidade jurídica, na modalidade de desvio de finalidade, com a consequente responsabilização dos sócios pela subscrição de capital social absolutamente irrisório, bastante inferior às necessidades da empresa, apropriando-a com outras formas de capitalização e propositalmente com capital próprio reduzido. Menciona hipóteses de celebração de mútuos entre os sócios e a sociedade, em que estes se cercam de garantias reais para a execução desses contratos. A caracterização do abuso decorreria da evidência do desvio de finalidade, manifestado na absoluta incongruência entre capital social e dimensão do objeto social[viii].
O art. 1.082 do Código Civil prevê a possibilidade de redução do capital da sociedade quando, depois de integralizado, houver perdas irreparáveis (inciso I) ou quando for excessivo em relação ao objeto da sociedade (inciso II). Observam-se, aqui, duas situações-hipóteses em que se permite a redução do capital social, legitimamente, evitando-se a subcapitalização, pois segundo a regra legal é possível a readequação do capital segundo a realidade das atividades econômicas empresariais. Na contramão dessa regra, então, estariam, a retirada de lucros/dividendos em prejuízo do capital e a subversão decorrente de mútuos a encargos abusivos e garantias privilegiadas aos próprios sócios, com a intenção de se esvaziar o patrimônio da empresa e deixar os credores a mercê da própria sorte, obstaculizada pelo manto da personalidade jurídica.
Assim, apesar de não haver uma regra clara no sentido de exigir que o sócio custeie as atividades da sociedade pela subscrição de capital social, e não por meio de empréstimos, é preciso reconhecer que todo o regime jurídico do capital social e da limitação de responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais depende da adequada capitalização da sociedade, sob pena de se inverter o risco empresarial dos sócios para os credores da sociedade e de se esvaziar as funções externas do capital social.
A obviedade dessa desproporção poderá ser verificada sempre que o capital social declarado nos atos constitutivos da sociedade for absolutamente irrisório ou quando o custeio das atividades empresariais da sociedade estiver sendo majoritariamente financiado à custa de empréstimos provenientes dos sócios, especialmente, mas não somente, quando o mútuo tiver sido celebrado em condições não equitativas[ix].
Lembre-se, por oportuno, que a legislação societária possui um objetivo claro ao limitar a responsabilidade dos sócios pelas dívidas da sociedade, pois do contrário não é possível fomentar a iniciativa privada. Ao assim fazer, o legislador distribui os riscos do negócio entre os sócios e os credores da sociedade tomando como referencial a adequada formação do capital social[x].
Sobre o tema e por fim, cabem as seguintes premissas: a) entende-se que a subcapitalização intencional deriva para a desconsideração da personalidade jurídica da empresa, desde que caracterizadas manobras que visem prejudicar credores, hipótese em que, em razão do abuso da personalidade, seja pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial, justifica-se a responsabilidade pessoal dos sócios, obviamente, por meio do incidente processual específico, onde se permita o exercício pleno do contraditório; b) apenas a desconexão entre o capital nominal e o capital real (subcapitalização) não dá ensejo à desconsideração da personalidade jurídica, quando não foi intencionalmente arquitetada, especialmente nas sociedades de responsabilidade limitada, onde estão presentes os princípios da limitação, da não afetação do patrimônio pessoal dos sócios e da livre disposição nominal do capital social, que em conjunto, dão sustentação ao empreendedorismo na medida da redução dos riscos inerentes às atividades econômicas da empresa.
Notas e Referências
[i] RODRIGUES DE CARVALHO, Marcos Vinícius. Constituição da sociedade limitada: o contrato social. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. Revista dos Tribunais. Vol. 75/2017, p. 185 – 218. Jan. – Mar./2017. Arquivo digital pág. 02.
[ii]CALÇAS, Manoel de Queiroz Pereira. Sociedade limitada no novo código civil. São Paulo: Atlas, 2003, p. 43 apud RODRIGUES DE CARVALHO, Marcos Vinícius. Op. Cit., p. 14 (arquivo digital).
[iii]Os requisitos legais formadores do ato constitutivo, tal como nos contratos em geral, são: agente capaz; objeto lícito, possível e determinado ou determinável; forma prescrita ou não defesa em lei e, como requisitos específicos à constituição de qualquer sociedade, a pluralidade de sócios; a constituição de capital social; affectio societatis e coparticipação nos lucros e perdas (NEGRÃO, Ricardo. Direito empresarial: estudo unificado. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 9-10). Quanto aos requisitos, pluralidade de sócios, ressalvam-se as sociedades unipessoais, e a dispensa da affectio societatis para as companhias abertas.
[iv]ZOLANDECK, João Carlos Adalberto. Empório do Direito. Disponível em < https://emporiododireito.com.br/leitura/acordo-societario-quotista-acionista-mecanismo-indispensavel-para-preservacao-da-harmonia-e-do-sucesso-empresarial>Acesso em 25 maio 2021.
[v] BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. 14ª edição – São Paulo: Atlas, 2015, pág. 71.
[vi] CUSTÓDIO DOURADO, Maurício. Consequências da subcapitalização no direito empresarial. Revista de Direito Privado. Revista dos Tribunais. Vol. 95/2018, p. 131 – 154. Nov. 2018. Arquivo digital pág. 07.
[vii] CUSTÓDIO DOURADO, Maurício. Op. Cit., pág. 09 (arquivo digital).
[viii] HÜBERT, Ivens Henrique. O capital social e suas funções na sociedade empresária. Dissertação (Mestrado em Direito Comercial) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2007, p. 106 - 107 apud CUSTÓDIO DOURADO, Maurício. Op. Cit., pág. 18 (arquivo digital).
[ix] CUSTÓDIO DOURADO, Maurício. Op. Cit., pág. 18 (arquivo digital).
[x] CUSTÓDIO DOURADO, Maurício. Op. Cit., pág. 19 (arquivo digital).
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