40% dos registros policiais não envolvem crimes
Nos introdutórios estudos do Direito Penal, um dos mais basilares temas a serem discutidos academicamente – para que se possa cogitar caminhar e avançar naquilo que se chama de “teoria do delito” –, é a devida conceituação de crime.
Tal análise é, inclusive, indispensável para entender quando o Estado pode atribuir a alguém a devida responsabilização por um eventual ferimento à norma penal incriminadora. Em outras palavras, quando há um fato contrário ao que o ordenamento jurídico penal quis proteger.
Nessa senda, cumpre sopesar que, majoritariamente, a doutrina penal adota o “conceito analítico tripartite” de crime, o considerando como sendo todo fato típico, ilícito (ou antijurídico) e culpável. Nessa linha, Rogério Greco discorre que:
“Isso porque é uma teoria mais garantista, em que para caracterização de um crime deve ser analisado os requisitos de uma forma mais divisível, observando o máximo do interior do crime, para que assim ele possa ser caracterizado ou não. Além de que se tirar a culpabilidade como requisita do crime, haveria um pleonasmo conceitual, visto que todos os requisitos do crime também são pressupostos de pena, e não somente a culpabilidade.”[1]
Com isso, vale destacar que o denominado “fato típico” é originário de uma conduta humana indesejada pelas leis, pois carrega consigo um resultado que se amolda àquilo tido por “tipo penal” (que nada mais é do que uma definição estabelecida em lei acerca de comportamentos que violem o que deveria ser tutelado). Desta forma, o doutrinador Eugênio Raúl Zaffaroni pontua que:
“A tipicidade penal é uma característica da conduta que se averigua mediante os tipos. Mas, a lei constrói os tipos de diversas formas, havendo quatro estruturas fundamentais, verificando-se a conduta do agente: comissiva, omissiva, dolosa e culposa.”[2]
Assim, por óbvio, resta evidente que ante a ausência de um desses elementos não haverá crime! É o que se denomina, portanto, de fato atípico, atipicidade ou falta de tipicidade (quando a conduta humana não preencher algum daqueles elementos do tipo penal já apontados).
Feita essa rápida introdução, cabe um paralelo reflexivo concernente à função constitucional das Polícias Civis e, logo, seu impacto direto na segurança pública. Afinal, se conforme a Constituição Federal (artigo 144, §4°) tal atribuição é a de apurar as infrações penais (exceto as militares), qual a necessidade das Polícias Civis registrarem fatos atípicos (que não são crimes)?
Justamente ao encontro dessa reflexão, a brilhante equipe de inteligência do Núcleo de Estatística e Análise Criminal do Colegiado Superior de Segurança Pública e Perícia Oficial de Santa Catarina, apontou que 40% das ocorrências registradas pelas Polícias Civil e Militar em 2022 são de fatos atípicos!
São 429.210 registros policiais que não envolvem crimes! Por conseguinte, resta dizer que todo esse volume de narrativas levadas ao conhecimento policial não guarda competência jurídica às Polícias catarinenses, pois não diz respeito a qualquer tipo de infração penal!
Logo, é como imaginar um indivíduo se dirigindo a uma concessionária de veículos para comprar 1kg carne; ou por outro lado, alguém que deseje adquirir algum automóvel indo até um açougue. Com o perdão da infame ironia, o fato é que todo esse volume altíssimo de demandas atípicas ocupam um tempo valiosíssimo do efetivo policial. Uma verdadeira piada sem graça!
No ponto, a título de exemplificação, tem-se que os casos mais emblemáticos são aqueles envolvendo perda de documentos ou objetos e os acidentes de trânsito sem vítimas. Situações que não são de ordem penal e que, por isso, não competem às Polícias.
Notadamente, sublinha-se que todo esse tempo é gasto no atendimento “in loco”, nos registros de ocorrências presenciais em delegacias ou, ainda, nas análises, validações e despachos daquelas situações noticiadas on-line. E por falar em gastos, há os custos com energia elétrica, impressão de papel, combustível, desgaste de viaturas e, principalmente, de mal emprego humano qualificado.
Certamente, toda essa energia poderia ser destinada às investigações criminais e ocorrências que envolvessem, de fato, infrações penais. É como se o efetivo policial “aumentasse” em Santa Catarina, pois haveria maior eficácia e aproveitamento de toda essa força estatal tão importante para a mantença da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio, como aduz a Carta Magna.
Entretanto, não restam dúvidas que há casos graves que demandam registro e que, depois de uma investigação policial se revelam atípicos; a exemplo de suicídios ou acidentes envolvendo vítimas.
Todavia, como aqui exposto, bastaria um olhar acurado à gestão e o real desejo em aumentar a eficiência e a eficácia do serviço público policial para mudar esse cenário que, inclusive, ensejaria em melhor disposição de efetivo, realocação de unidades policiais conforme real demanda criminal das respectivas regiões e, por fim, geraria maior motivação e sentimento de utilidade, importância e pertencimento aos nobres policiais que desempenhariam suas reais funções: investigar crimes!
Notas e referências
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral, v.1. 12ª Ed. Niterói. Impetus, 2011.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; Alejandro Slokar; Alejandro Alagia. Manual de derecho penal, 2ª ed. – 4ª reimp. – Buenos Aires: Ediar, 2010, p. 355.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 05/01/2023.
[1] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral, v.1. 12ª Ed. Niterói. Impetus, 2011.
[2] ZAFFARONI, Eugênio Raúl; Alejandro Slokar; Alejandro Alagia. Manual de derecho penal, 2ª ed. – 4ª reimp. – Buenos Aires: Ediar, 2010, p. 355.
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