STF deve impor coerência ao Presidente da Câmara para impor instauração de impeachment de Temer – Por Paulo Roberto Iotti Vecchiatti

12/04/2016

Em artigo coescrito juntamente aos Professores Alexandre Bahia e Marcelo Cattoni[1], publicado no dia 23.03.16, defendemos que as condutas imputadas à Presidente Dilma Rousseff não configuram, nem em tese, crime de responsabilidade, razão pela qual o STF deve barrar ou anular o processo de impeachment instaurado contra ela pelo Presidente da Câmara dos Deputados, por ausência de justa causa justificadora do processo. Explicamos que, pela Súmula 722 do STF, crimes de responsabilidade são considerados matéria de competência legislativa da União em razão de serem considerados, pelos precedentes que geraram dita súmula, como crimes (“crimes penais”, não ilícitos atecnicamente descritos como “crimes” pela Constituição), razão pela qual aplica-se aqui a mesma lógica dos processos penais em geral, a saber, a possibilidade de trancamento da ação por atipicidade da conduta. Ou seja, quando a conduta é considerada atípica (não é descrita, abstratamente, como ilícita), não pode haver processo que vise a punição criminal de tal conduta. Assinalamos que, ainda que, contrariamente a tal súmula, se afirme que os “crimes de responsabilidade” não seriam “crimes [penais]” (o que nem tem razão de ser, pois a própria Lei do Impeachment aduz que aplica-se a ela subsidiariamente o Código de Processo Penal, a reforçar o caráter penal dos crimes de responsabilidade), mesmo assim o fato de o rol de crimes de responsabilidade ser evidentemente taxativo (não admitir extensões analógicas) exige que fatos não tipificados como crimes de responsabilidade não possam gerar o impeachment. E isso pela diferença basilar entre Presidencialismo e Parlamentarismo, a saber, impeachment não ser sinônimo de voto de desconfiança parlamentarista: neste, qualquer descontentamento político pode gerar a queda do(a) Chefe de Governo, mas naquele, somente crimes de responsabilidade podem isto ensejar. Logo, o próprio princípio presidencialista, constitucionalmente consagrado, justifica a nulidade de impeachment decretado por fato atípico.

Posteriormente, em artigo coescrito juntamente aos Professores Alexandre Bahia, Marcelo Cattoni e Diogo Bacha e Silva[2], publicado em 31.03.16, demonstramos que os argumentos apresentados pelo Conselho Federal da OAB para pedir o impeachment da Presidente da República também não se configuram como crimes de responsabilidade.

Feitos estes esclarecimentos, cabe analisar a decisão liminar do Ministro Marco Aurélio, que entendeu ilícita a decisão do Presidente da Câmara dos Deputados em não instaurar o processo de impeachment contra o Vice-Presidente da República pela prática dos mesmos atos que o Presidente da Câmara considerou configurarem crimes de responsabilidade relativamente à Presidente da República. Pretende-se demonstrar que a decisão do Ministro Marco Aurélio foi correta na sua parte dispositiva (ainda que falha em sua fundamentação) e que isso não é incompatível com a posição defendida nos dois artigos sintetizados nos parágrafos anteriores.

Antes disso, um esclarecimento. Os Ilustres Professores que coescreveram comigo os artigos citados no início deste texto escreveram um novo artigo, juntamente com Bernardo Gonçalves Fernandes, publicado em 06.04.16[3], no qual discordaram da decisão liminar do Ministro Marco Aurélio na Medida Cautelar no Mandado de Segurança n.º 34.087, entendendo, em síntese, que ele teria esvaziado a competência do Presidente da Câmara dos Deputados ao supostamente afirmar que a este caberia apenas a análise formal de denúncias de impeachment, não obstante reconheçam que faltou coerência ao Presidente da Câmara ao não instaurar o processo de impeachment contra o Vice-Presidente da República (por ato praticado enquanto Presidente em exercício), já que se trata da mesma conduta imputada à Presidente da República (embora afirmando que este não foi o fundamento do Ministro Marco Aurélio).

Todavia, respeitosamente, tenho entendimento divergente dos Ilustres Professores, três dos quais tive o prazer de coescrever os dois primeiros artigos citados. Temos plena concordância no que tange à necessidade de respeito à integridade no Direito e, assim, concordamos em absoluto que faltou coerência ao Presidente da Câmara dos Deputados em suas decisões contra a Presidente e contra o Vice-Presidente (enquanto Presidente em exercício). Concordamos, ainda, no fato de que a integridade no Direito e a coerência a ela subjacente demandam que, por esse entendimento do Presidente da Câmara sobre o Vice-Presidente, cabe reconhecer a absoluta improcedência da acusação formulada contra a Presidente da República (inclusive, reforçando o tema de nosso primeiro artigo, justificando a anulação de dito processo de impeachment pelo STF, por atipicidade da conduta). Mas, embora concordemos sobre a necessidade de se impor coerência ao Presidente da Câmara dos Deputados, discordamos sobre que forma de coerência pode ser dele exigida, pelo menos no caso do pedido de impeachment do Vice-Presidente da República (enquanto Presidente em exercício). Há aqui, como mencionado informalmente pelo Professor Marcelo Cattoni, uma concordância discordante, a meu ver porque concordarmos sobre o dever de coerência e discordarmos sobre a forma como ele pode ser imponível judicialmente neste caso (e só em parte, porque obviamente concordo em que se deva impor o princípio de que os fatos são atípicos para ambos e que ambos os processos de impeachment devem ser extintos, mas entendo que, enquanto isso não ocorre, deve impor a instauração do processo contra o Vice-Presidente da República, enquanto Presidente em exercício). Daí que, respeitosamente, apresento estas linhas para tentar explicar os motivos pelos quais entendo que a decisão do Ministro Marco Aurélio está correta em sua determinação (impor a instauração do pedido de impeachment do Vice-Presidente da República, enquanto Presidente em exercício), embora por uma fundamentação incompleta (por não mencionar o dever de coerência do Direito).

Inicialmente, cabe notar que o Vice-Presidente da República praticou tais atos enquanto Presidente em exercício, pela ausência da Presidente. Logo, não se trata de impeachment por ato praticado enquanto Vice-Presidente, mas impeachment por ato praticado enquanto Presidente. Logo, a polêmica inexplicavelmente suscitada pelo Ministro Gilmar Mendes, ao dizer que nunca teria ouvido falar em impeachment de Vice-Presidente, não tem a menor razão de ser aqui. Michel Temer agiu enquanto Presidente da República e por estes atos e em tal condição, ainda que momentânea, deve ser julgado. Nesse ponto, mais uma concordância com os Ilustres Professores supra citados.

A meu ver, a questão afigura-se muito simples. Não obstante reitere-se aqui que as condutas imputadas à Presidente da República e que ensejaram a instauração do seu processo de impeachment perante a Câmara dos Deputados não se configurem como crimes de responsabilidade e que, portanto, entenda-se que deve o Supremo Tribunal Federal extinguir referido processo (ou, no limite, nulificar decisão que o decrete), fato objetivo é aquele segundo o qual o Presidente da Câmara dos Deputados entendeu de modo diverso. Ele, supostamente por uma questão de princípio, afirmou entender que as condutas imputadas à Presidente da República configurariam, em tese, crime de responsabilidade. Logo, por uma questão de coerência (e, portanto, de integridade do Direito), não pode entender que os mesmos fatos não configurariam, em tese, crime de responsabilidade quando praticados por outra pessoa. Ou são crimes de responsabilidade e justificam a instauração do processo de impeachment com base neles ou não são crimes de responsabilidade e é ilegal e inconstitucional a instauração do referido processo.

Aqui talvez esteja a principal discordância com os Ilustres Professores de quem ouso divergir neste artigo. Não me parece que eu esteja exigindo uma “coerência de fato”, de exigir que o Presidente da Câmara decida de uma forma apenas porque já decidiu dessa forma no passado, não obstante o erro de sua decisão anterior (e eu considero essa decisão anterior incorreta, consoante os artigos supra citados). Exijo dele coerência de princípio. A questão é que ele, agindo como verdadeiro juiz (função atipicamente exercida pela Presidência da Câmara nas decisão de admissibilidade/justa causa de impeachment, como aliás destacado pelo Ministro Marco Aurélio), ele, supostamente interpretando o ordenamento jurídico, entendeu que a conduta imputada à Presidente da República configuraria crime de responsabilidade. Até que o Judiciário anule tal decisão e imponha ao Legislativo que as condutas imputadas à Presidente da República não configuram crime de responsabilidade, o entendimento que prevalecerá será o de que, em tese, elas assim se configuram. Nesses termos, por uma questão de isonomia e, assim, de coerência, é intolerável que uma mesma conduta imputada a uma pessoa seja considerada como crime de responsabilidade, mas não seja assim considerada quando imputada a outra pessoa. Porque isso denota arbitrariedade, algo intolerável no Direito a decisões de princípio (decisões jurídicas). E aí entra a exigência de coerência (de princípio) que se deve exigir do Presidente da Câmara dos Deputados. Especialmente quando as duas decisões são praticadas pela mesma pessoa física, como no presente caso (teratológico termos decisões distintas em termos de justa causa, portanto). O contrário somente se poderia admitir validamente se tivessem sido apresentados pelo Presidente da Câmara novos argumentos a afastar a justa causa, ou seja, que ele admitisse que errou na primeira decisão. Mas não foi esse o caso. Ele continua afirmando acreditar que a conduta em questão configura-se, em tese, como crime de responsabilidade, relativamente à Presidente da República. Ao passo que a distinção que tentou apresentar sobre a conduta do Vice-Presidente da República (enquanto Presidente em exercício), sobre o momento em que assinou (aparentemente denotando ausência de dolo do Vice-Presidente em violar a lei orçamentária, que aparentemente ele acredita ter havido para a Presidente) refere-se a uma matéria de mérito, não uma matéria relativa à justa causa, como bem afirmado pela decisão do Ministro Marco Aurélio (retomarei este tema adiante). Justa causa esta que, segundo o STJ, só se encontra ausente quando demonstrada a absoluta ausência de provas de materialidade do crime (ou seja, da prática de fato tipificado como crime) e de indícios de autoria (de tal fato) (cf., v.g., RHC n.º 26.669/MS[4], Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, DJe de 31.03.16). Ou seja, feita a descrição do crime em tese que se entende praticado pela pessoa acusada, bem como das circunstâncias em que praticado e do tipo penal respectivo, presente a justa causa e, assim, inexistente inépcia da denúncia[5], ao passo que o ato imputado ao Vice-Presidente da República enquanto Presidente em exercício, que a denúncia considera como crime de responsabilidade foi incontroversamente por ele praticado (e, como crimes de responsabilidade são crimes, à luz dos precedentes que informam a Súmula 722 do STF, essa compreensão da processualística penal deve aplicar-se aqui, para fins do exame da justa causa: descrição de conduta típica e indícios de autoria e materialidade sobre a mesma, o que evidentemente há sobre os atos imputados ao Vice-Presidente da República, enquanto Presidente em exercício, por ele ter efetivamente e incontroversamente praticado os atos a ele imputados). Esse era o juízo que poderia ter feito o Presidente da Câmara dos Deputados, mas sua decisão transcendeu esse juízo, fazendo uma apreciação de mérito para rejeitar a denúncia, e isto ele não tem competência para fazer.

Embora repita-se ad nauseam nos últimos tempos que o impeachment é um processo de natureza jurídico-política (e realmente o é), é preciso entender o que é a parte jurídica e o que é a parte política do mesmo. Pressuposto lógico-jurídico indispensável ao impeachment é a presença de crime de responsabilidade. Apresentado pedido de impeachment, se a conduta imputada ao(à) Presidente da República configura, em tese, crime de responsabilidade, então há a obrigação legal e constitucional de instauração do processo de impeachment. Caso não se configure como tal, há a obrigação legal e constitucional de não se instaurar referido processo. Ou seja, a decisão do(a) Presidente da Câmara dos Deputados é técnico-jurídica, não política. Ele(a) não pode entrar no mérito do pedido, ou seja, não pode dizer se há ou não provas da prática do ato imputado ao(à) Presidente da República ou se haveria alguma justificativa fática que legitimaria a prática de tal ato pelo(a) Presidente de acordo com o contexto respectivo. Porque essa matéria de mérito é de competência exclusiva da Comissão instaurada para dar andamento no processo de impeachment e, posteriormente, pelo Plenário da Câmara dos Deputados (e, caso esta entenda pelo impeachment, posteriormente do Senado Federal). Não há competência do(a) Presidente da Câmara para fazer tal juízo de mérito.

Foi exatamente isso que, corretamente, afirmou o Ministro Marco Aurélio na decisão liminar da Medida Cautelar em Mandado de Segurança n.º 34.087. Afirmou Sua Excelência que não estava afirmando que o Vice-Presidente da República teria cometido crime de responsabilidade, mas que a valoração realizada pelo Presidente da Câmara dos Deputados configura-se como matéria de mérito, de competência exclusiva de Comissão a ser instaurada após a decretação da admissibilidade do impeachment. E isso pelo teor das razões apresentadas pelo Presidente da Câmara para negar a instauração: ele não se limitou a afirmar que, em tese, as condutas imputadas ao Vice-Presidente da República (então Presidente em exercício) não configurariam crime de responsabilidade: ele afirmou que, naquele contexto, as condutas assim não se caracterizariam. Só que afirmações sobre o contexto em que o ato foi praticado afiguram-se como razões de mérito, não razões de existência ou não, em tese, de crime de responsabilidade. Ou seja, o Presidente da Câmara dos Deputados absolveu, no mérito, o Vice-Presidente da República (por ato praticado enquanto Presidente em exercício), algo que não tem competência legal e constitucional a fazer. Daí o acerto da decisão do Ministro Marco Aurélio. E irrelevante a possibilidade de recurso da decisão do Presidente da Câmara nos termos do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Isso não é impeditivo para a impetração do mandado de segurança, pela ausência de efeito suspensivo a um tal recurso.

Vejamos trecho da decisão do Ministro[6]:

“Tendo em vista a disciplina dos artigos 14, 15 e 19 a 22 da Lei nº 1.079/1950, cabe ao Presidente a análise formal da denúncia-requerimento. A ele não incumbe, substituindo-se ao Colegiado, o exame de fundo. Entender-se em sentido contrário implica validar nefasta concentração de poder, em prejuízo do papel do colegiado, formado por agremiações políticas diversas. Como fiz ver ao votar na ação de descumprimento de preceito fundamental nº 378/DF, não se pode desconsiderar a ênfase dada pela Constituição Federal aos partidos políticos, a refletir na composição da Comissão Especial referida no citado diploma legislativo e no § 2º do artigo 218 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. 

Os documentos que instruem a peça primeira permitem concluir, no campo precário e efêmero, pelo desrespeito aos parâmetros relativos à atuação do Presidente da Casa Legislativa, pois, embora tenha reconhecido, de maneira expressa, a regularidade formal da denúncia, procedeu a verdadeiro julgamento singular de mérito, no que assentou a ausência de crime de responsabilidade praticado pelo Vice-Presidente da República, desbordando, até mesmo, de simples exame de justa causa

[...]

Esse figurino legal não foi respeitado. O Presidente da Câmara dos Deputados, após proclamar o atendimento dos requisitos formais da denúncia, a apreciou quanto ao mérito – a procedência ou improcedência –, queimando etapas que, em última análise, consubstanciam questões de essencialidade maior. A concentração verificada, considerada pena única, ato monocrático, surge conflitante com a disciplina prevista na Lei 1.079/1950. (grifos nossos)

Como se vê, o Ministro Marco Aurélio foi expresso ao aduzir que a decisão do Presidente da Câmara dos Deputados desbordou do simples exame da justa causa para instauração do processo de impeachment contra o Vice-Presidente da República (enquanto Presidente em exercício). Parece, ademais, haver uma incompreensão sobre a fala do Ministro relativamente à “regularidade formal” do pedido. O Ministro Marco Aurélio não afirmou que, presente a regularidade formal, toda e qualquer denúncia deve gerar a instauração de processo de impeachment. Ele aduziu que, além da questão da regularidade formal, o Presidente da Câmara procedeu a julgamento singular de mérito – e julgamentos de mérito não podem ser feitos pelo(a) Presidente da Câmara dos Deputados quando da análise de pedidos de impeachment. Daí ser profundamente descabida (manifestamente equivocada) a fala do Presidente da Câmara de que referida decisão o obrigaria a proceder à instauração de todos os pedidos de impeachment pendentes: o Ministro não afirmou isso e é, data venia, indefensável atribuir-lhe uma tal afirmação. Ele apenas disse que o(a) Presidente da Câmara dos Deputados fez um juízo de mérito e que isso é inadmissível nessa fase de análise da admissibilidade de pedidos de impeachment. Disso se deve concluir que não há obrigação de instaurar qualquer pedido de impeachment que atenda a requisitos formais, mas apenas os que, além disto, atendam ao requisito material de comprovação da justa causa, ou seja, da constatação que os fatos imputados configuram, em tese, crime de responsabilidade. Nada além disso.

Logo, não vejo confusão entre justa causa e mérito na decisão do Ministro Marco Aurélio. A diferença entre justa causa e mérito neste caso é a seguinte: fala-se que a assinatura dos decretos não numerados configura crime de responsabilidade por supostamente violar a Lei Orçamentária. Dizer se o decreto não-numerado viola ou não em tese a lei orçamentária é o juízo de justa causa, de admissibilidade da denúncia de impeachment. Mas afirmar, como o Presidente da Câmara afirmou, que o Vice-Presidente da República (enquanto Presidente em exercício) assinou os decretos antes do Governo Federal reconhecer formalmente que a meta fiscal seria descumprida para com isso justificar o não-cabimento do processo de impeachment contra ele configura-se como um juízo de mérito porque isso é uma causa justificadora da licitude ou uma causa excludente de culpabilidade, a despeito de, em tese, a conduta ser (para a denúncia e para ele, Presidente da Câmara) crime de responsabilidade – o Presidente da Câmara quis dizer que Vice-Presidente (enquanto Presidente em exercício) não teve dolo de violar a lei orçamentária porque assinou antes da revisão da meta pelo Governo. Só que isso é uma justificação de mérito, que transcende a análise da justa causa. O exame de justa causa deve limitar-se a averiguar se os decretos não-numerados em questão supostamente violam ou não a lei orçamentária, por supostamente em contradição com os limites desta. Pelo pedido de impeachment, isso teria ocorrido, os créditos extraordinários dos decretos não-numerados teriam violado a lei orçamentária (discordo desse entendimento, consoante os artigos que coescrevi, supra citados). A decisão do Presidente da Câmara, por ser de admissibilidade, só pode decidir se, uma vez comprovada posteriormente a alegação de que tais decretos não-numerados violam a lei orçamentária, se isso configura ou não crime de responsabilidade. Mas ele foi além disso. Ele disse que não há crime pelas circunstâncias em que assinados os decretos em questão pelo Vice-Presidente, enquanto Presidente em exercício. Só que isso é um juízo de mérito, por se referir a suposta ausência de dolo de Temer. Daí eu entender correta a afirmação do Ministro Marco Aurélio sobre o tema.

Nem se diga que a posição defendida neste artigo seria contraditória com aquela dos dois artigos que coescrevi, descritos no início deste. O que aqui se exige é coerência de princípio da Câmara dos Deputados em decisões de princípio, ou seja, decisões jurídicas. Obviamente que continuo entendendo aqui que as condutas imputadas tanto à Presidente da República quanto ao Vice-Presidente (este enquanto Presidente em exercício) configuram-se como fatos atípicos que, justamente por não se configurarem como crimes de responsabilidade, não podem gerar o impeachment (consoante as razões expostas nos citados artigos, aos quais remeto o leitor que ainda não os tenha lido). Mas o Presidente da Câmara manifestou entendimento supostamente jurídico em contrário quando determinou a instauração de processo de impeachment contra a Presidente da República – logo, por coerência (e, assim, pela cláusula constitucional da isonomia) não pode decidir de forma diversa quando a pessoa acusada é outra... Especialmente porque trata-se da mesma pessoa que proferiu as duas decisões. É profundamente teratológico (monstruoso, flagrantemente absurdo, intolerável em um Estado de Direito) admitir que a mesma pessoa profira dois juízos distintos sobre as mesmas condutas apenas porque praticadas por pessoas diferentes. Ao passo que até as pedras sabem que isso se deu pela atual Presidente da República ser adversária política de dito Presidente da Câmara e o Vice-Presidente da República não sê-lo. Só que, a despeito de absurdamente o STF ter afirmado (na ADPF 378) que causas de impedimento e suspeição da legislação processual não serem aplicáveis a julgamentos políticos do Congresso Nacional, a questão é que aqui, no juízo de admissibilidade da decisão de instauração ou não do processo de impeachment, temos uma decisão que deve ser técnica, de princípio, e não discricionária, de política. E isso porque, do contrário, teremos uma verdadeira erosão da diferença entre Presidencialismo e Parlamentarismo, a saber, a nulificação da diferença entre impeachment (que supõe fato tipificado como crime de responsabilidade) de voto de desconfiança parlamentarista (que não supõe previsão legal que o justifique) – como “não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa” (cf. Gadamer e Streck), não se pode admitir que um fato que seja atípico seja afirmado como se fato típico fosse e, por idênticas razões, não se pode afirmar que um fato seja típico quando praticado por uma pessoa e seja atípico quando praticado por outra (ao menos no juízo preliminar de justa causa, abstraídas eventuais provas apresentadas durante a fase instrutória a justificar eventuais juízos de mérito distintos – mas se há causas justificantes para uma pessoa e não para outra, então as condutas não são idênticas ou equivalentes, o que justificaria uma decisão distinta; mas isso, reitere-se, é um juízo de mérito, não um juízo preliminar, de justa causa, que era o único juízo que o Presidente da Câmara poderia ter feito).

Ou seja, entende-se que, se provocado pela Presidente ou pelo Vice-Presidente em mandado de segurança, o STF deve barrar ambos os processos de impeachment em questão, por inexistência de fato que se configure, nem em tese, como crime de responsabilidade (e as razões para isto estão nos dois artigos sintetizados nos dois primeiros parágrafos, com links ali disponibilizados, aos quais se remete o leitor que não os conheça ou queira rememorá-los). Mas entende-se igualmente que, considerando que o Presidente da Câmara dos Deputados já entendeu que os fatos imputados tanto à Presidente da República quanto ao Vice-Presidente da República configuram-se, em tese, como crimes de responsabilidade, então ele tem a obrigação de instaurar o processo de impeachment também contra o Vice. Porque as razões por ele apresentadas para não fazê-lo são razões de mérito que, como tais, não são de sua competência valorar, mas apenas da Comissão e depois do Plenário da Câmara dos Deputados. Pois é teratológico e, assim, intolerável em um Estado de Direito que se considere que as mesmas condutas configurem, em tese, crime de responsabilidade quando praticadas por uma pessoa e não se configurem como tais quando praticadas por outra pessoa...

Logo, não há contradição nenhuma com a tese aqui esposada relativamente à tese esposada nos artigos anteriores pelo simples motivo segundo o qual enquanto o Supremo Tribunal Federal não declara que os fatos imputados tanto à Presidente quanto ao Vice não podem gerar processo de impeachment, então a instauração do processo contra a Presidente torna obrigatório, por coerência de princípio, que haja a instauração do processo contra o Vice-Presidente, enquanto Presidente em exercício... E isso especialmente se, por absurdo, o STF decidir que “não poderia” analisar a presença ou não de “justa causa” para a instauração ou não de processo de impeachment. Uma tal decisão seria teratológica, na medida em que tornaria inócua a taxatividade das hipóteses caracterizadoras de impeachment. Pois, para parafrasear Streck e Gadamer, isso permitiria que se dissesse qualquer coisa sobre qualquer coisa, ou seja, permitiria que se afirmasse como crime de responsabilidade uma conduta que não se enquadra em nenhuma hipótese tipificada como crime de responsabilidade, algo manifestamente incompatível com o princípio presidencialista e com o art. 85, par. único, da Constituição Federal, este ao aduzir que a lei definirá as hipóteses caracterizadoras de crimes de responsabilidade (daí, data maxima venia, discordar-se veementemente da consideração de tal matéria como “interna corporis” do Legislativo). Contudo, se o STF eventualmente adotar uma tal tese (de suposta incognoscibilidade da presença ou não de justa causa para a instauração de processos de impeachment no que tange a alegações de atipicidade da conduta), então o mínimo que deverá fazer é exigir coerência de princípio na decisão de princípio do(a) Presidente da Câmara dos Deputados na instauração do processo de impeachment. Do contrário, estar-se-á admitindo a existência de um “parlamentarismo à brasileira”, ou seja, um pseudo “presidencialismo” que admitiria a queda do(a) Chefe de Governo mesmo inexistente fundamento legal para tanto, algo que só se admite no Parlamentarismo. Uma tal desnaturação da natureza jurídica do Presidencialismo só seria admissível se norma constitucional expressamente o admitisse e não há uma tal norma (expressa ou implícita) em nosso texto constitucional.

Entendo descaber oposição à tese aqui defendida por não se admitir “coerência no erro”. A questão não é essa. Sabe-se que todo aquele que perde uma disputa judicial considera que “a Justiça errou”. Ocorre que, dada a palavra final no Judiciário sobre uma tese jurídica, os princípios da igualdade e da segurança jurídica demandam que a tese vencedora no Judiciário seja aplicável a todos(as) os(as) jurisdicionados(as). Integridade do Direito, que supõe a coerência, significa que o princípio tido como vinculante pelo Judiciário o seja para todas as pessoas, não só para algumas (concorde-se com ele ou não: caso se discorde, que se defenda sua superação em julgamento posterior, mas até lá, o princípio deve ser aplicado indistintamente a todos que se enquadrem em seu âmbito de incidência). Ou seja, se o STF entender que as condutas imputadas à Presidente da República configuram-se, em tese, como crime de responsabilidade, então deverá impor que o(a) Presidente da Câmara dos Deputados, que instaurou processo de impeachment contra ela, também instaure tal processo contra o Vice-Presidente, pelas condutas a ele imputadas serem as mesmas que as condutas a ela imputadas. E isso porque, para a Justiça, estaria presente crime de responsabilidade. A mesma conclusão se aplica caso o STF entenda, absurdamente, que não poderia conhecer alegações de atipicidade da conduta: o mínimo que se pode exigir de uma decisão de princípio é que seja a mesma a todas as pessoas que se encontrem em seu âmbito de incidência, donde no mínimo um controle de coerência deve ser imposto pela Suprema Corte. E, reitere-se, fato objetivo até o momento é aquele segundo o qual o atual Presidente da Câmara dos Deputados considera, supostamente por razões de princípio, que as condutas imputadas à Presidente da República configuram-se, em tese, como crime de responsabilidade. Não obstante eu discorde disso, esse é o entendimento que a Presidência da Câmara dos Deputados externou até o momento, em atípica função judicante a si constitucionalmente atribuída. Logo, este princípio precisa ser aplicado a casos idênticos/equivalentes (enfim, a casos semelhantes no essencial) – e essa identidade/equivalência deve se dar no juízo de justa causa, não de mérito. E parece-me tratar-se uma questão de mérito a questão da culpabilidade do ato ou não do Vice-Presidente da República, enquanto Presidente em exercício.

Em suma, correta a decisão do Ministro Marco Aurélio na Medida Cautelar em Mandado de Segurança n.º 34.087, embora por fundamentação falha, por não entrar em um aspecto indispensável, a saber, o da exigência de coerência. A coerência é inafastável em decisões de princípio, como a decisão de admissibilidade sobre a instauração ou não do processo de impeachment. Como as condutas imputadas ao Vice-Presidente, enquanto Presidente em exercício, são as mesmas imputadas à Presidente da República e contra esta foi instaurado processo de impeachment, afronta diretamente o princípio da igualdade e sua exigência de coerência de princípio não se instaurar processo de impeachment pela presença da mesma justa causa contra o Vice-Presidente da República. Evidentemente, por não se considerar que tais condutas geram crime de responsabilidade, o que se acha correto e constitucionalmente obrigatório é a extinção do processo de impeachment contra a Presidente da República, o que obviamente vale para a denúncia contra o Vice-Presidente. O que aqui se apresenta é uma tese subsidiária: caso não se extingua o da Presidente por se afirmar, pelo menos oficialmente, que ali haveria crime de responsabilidade, então há obrigação legal e constitucional de se instaurar processo contra o Vice-Presidente, já que os fatos são os mesmos. Repugna a qualquer noção de Estado de Direito admitir-se que a conduta é crime quando praticada por uma pessoa e não quando praticada por outra (e o juízo de distinção apresentado pelo Presidente da Câmara para não instaurar o processo contra o Vice-Presidente, por ato praticado enquanto Presidente em exercício, é um juízo de mérito, que ele não tinha competência para realizar). É apenas essa a questão deste artigo ao defender a correção, legalidade e constitucionalidade da citada decisão do Ministro Marco Aurélio.


Notas e Referências:

[1] Cf. http://emporiododireito.com.br/supremo-tribunal-federal-deve-barrar/ (último acesso em 09.04.16).

[2] Cf. http://emporiododireito.com.br/afinal-a-quem-esta-oab-representa/ (último acesso em 09.04.16).

[3] Cf. http://emporiododireito.com.br/o-pedido-de-impeachment/ (acesso em 06.04.16).

[4] Eis trecho fundamental de seu inteiro teor: Nas palavras de Eugênio Pacelli e Douglas Fisher (Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência, 5. ed., São Paulo: Atlas, 2013, p. 104), "o essencial em qualquer peça acusatória, seja ela denúncia, seja queixa, é a imputação". Esclarecem os autores: ‘[...] com a precisa atribuição a alguém do cometimento ou da prática de um fato bem especificado. Esse, ou esses, os fatos, devem ser descritos com rigor de detalhes, para que sobre eles se desenvolva a atividade probatória. A exigência de delimitação precisa do fato imputado encontra-se na linha de aplicação do princípio constitucional da ampla defesa. Para que seja ampla a defesa é necessário, então, que se saiba, com precisão, qual o fato que se diz ser o réu o autor, para que ele possa, na maior medida possível, definir os meios de prova que se ajustarão à espécie segundo os seus interesses, bem como possa também dar a ele (fato) a definição de direito que favoreça aos interesses defensivos.[...]’. Logo, a denúncia deve ser recebida se, atendido seu aspecto formal (art. 41, c/c o art. 395, I, do CPP) e identificada a presença tanto dos pressupostos de existência e validade da relação processual quanto das condições para o exercício da ação penal (art. 395, II, do CPP), a peça vier acompanhada de lastro probatório mínimo a amparar a acusação (art. 395, III, do CPP)”. A decisão do Presidente da Câmara claramente ultrapassou a análise do “lastro probatório mínimo”, adentrando em juízo de mérito na análise das circunstâncias em que praticado o ato. Feita a imputação de ato que se considera como crime de responsabilidade e tal ato configurando-se, em tese, como crime de responsabilidade, deve ser aceita a denúncia (e o ato em questão é a assinatura de decretos não-numerados relativamente a liberação de créditos, o que de forma incontroversa foi praticado pelo Vice-Presidente da República, enquanto Presidente em exercício).

[5] Da obra de Guilherme de Souza Nucci, extraem-se os seguintes julgados do STF e do STJ: STF. ‘Não é inepta a denúncia que, como no caso, narra, articuladamente, a ocorrência de crime em tese, bem como descreve as suas circunstâncias e indica o respectivo tipo penal, viabilizando, assim, o exercício do contraditório e da ampla defesa’ (HC 95761-PE, 2.ª T., rel. Joaquim Barbosa, 04.08.2009, v.u). STJ. ‘Não há que se falar em inépcia da denúncia que descreve suficientemente os fatos, com a indicação da data, o local, o modo de execução do crime e a sua capitulação jurídica, de modo a permitir o pleno exercício do direito à ampla defesa e ao contraditório, não se exigindo, a depender da natureza do crime e, em especial, quando se trata de crime praticado em concurso de pessoas, a descrição minuciosa de todos os atos que teriam sido efetivamente praticados pelos denunciados’ (AgRg no REsp 681149-SE, 6.ª T., rel. Celso Limongi, 23.03.2010, v.u)”. NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2010, p. 295.

[6] Disponível em: politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2016/04/MS-34087.pdf (último acesso em 09.04.16). Para uma boa síntese da decisão, vide http://ambito-juridico.jusbrasil.com.br/noticias/320922377/liminar-determina-seguimento-de-denuncia-contra-vice-presidente-por-crime-de-responsabilidade (acesso em 09.04.16).


 

Imagem Ilustrativa do Post: Michel Temer// Foto de: Aluízio Gomes // Sem alterações

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