1. Apresentação da coluna
O título da coluna, e também deste artigo, remete ao livro Stasis: la guerra civile come paradigma politico (Stasis: a guerra civil como paradigma político), volume II.2 do projeto homo sacer, do filósofo italiano Giorgio Agamben (1942...). Por stasis, Agamben se refere à guerra civil, termo a partir do qual elaborou uma teoria da guerra civil (stasiologia), a fim de preencher a lacuna existente entre as teorias da guerra (polemologia) e da paz (irenologia)[i].
Inicialmente, explicar-se-á aos leitores do que se trata a Stasis, de modo que, ao lerem as colunas subsequentes, tenham pistas que facilitam a compreensão do que se quer dizer e dos motivos pelos quais se afirma algo do modo como se afirmou em vez de fazê-lo de outro modo.
Essa lacuna fez com que a dicotomia amigo-inimigo, proposta por Carl Schmitt em Theorie des partisan[ii], apagasse o senso tradicional de guerra, de modo que várias guerras travadas sem a declaração estatal correspondente de guerra, não fossem reconhecidas como guerras. Isso levou alguns teóricos a chamar de guerras incivilizadas (incivil wars) aqueles conflitos cuja finalidade é maximizar a desordem, em vez de controlar e modificar o sistema político[iii].
Agamben aponta como arché da guerra civil a guerra familiar (oikos polemos), distinta da guerra em casa, essa arraigada na cidade (polis). Na análise da relação entre casa (oikos) e cidade (polis), Agamben traçou um paralelo com zoé e bios, as duas palavras gregas utilizadas para designar o que, em português, chama-se vida, a primeira como vida reduzida às condições biológicas da sobrevivência (vida nua) e a segunda como vida qualificada pela participação na polis. Desse modo, a zoé é associada à oikos e a bios à polis[iv].
Apesar de a oikos ser a origem da stasis, não há, para Agamben, uma conexão entre ambas, pois a guerra civil assimila irmão e inimigo, oikos e polis, o dentro e o fora, os tornando indecidíveis, isto é, confusos e implicados entre si a ponto de não ser possível separá-los[v]. Isso é assim porque na guerra civil são mortos tanto familiares, quanto inimigos, as fronteiras que os separam são apagadas, ou, pelo menos, colocadas em estado de suspensão. A casa deixa de ser o refúgio familiar, pois a insegurança e a insegurança tomam de assalto a todos, indistintamente.
Eis uma síntese do que se entende por Stasis, a partir da qual os leitores podem ter uma noção do que se tratará nesta nova coluna.
2. Por que uma coluna que correlaciona filosofia, política, economia, teologia e direito?
Esclarecido o que se entende por Stasis, talvez não tenha ficado suficientemente claro ao leitor a referência aos cinco campos de saber. Pode parecer que se está a propor uma coluna sobre geopolítica internacional, mas não é bem assim. Para elucidar, ou, pelo menos, explicar um pouco melhor a proposta, se fará uma breve incursão ao pensamento de Giorgio Agamben, pois é esse o marco teórico do qual se parte, embora sejam certas as referências a textos outros autores dos quais Agamben parte, com os quais dialoga, bem como que os autores desta coluna estudam.
Agamben trabalha a partir de muitos autores, continuando-os ou descontinuando-os. Uma síntese dos autores que o influenciaram foi elencada pelo filósofo brasileiro Selvino J. Assmann (1945-2017), um dos tradutores de Agamben para o português. Essa nota é imprescindível para compreender melhor a obra do filósofo:
Giorgio Agamben — um dos mais importantes e mais lidos pensadores europeus da atualidade — torna-se cada vez mais conhecido entre nós. Independentemente de como se queira classificá-lo — como continuador de Walter Benjamin e de Martin Heidegger, ou de Michel Foucault, Jacques Derrida, Émile Benveniste e de Guy Debord, ou como alternativa ao pensamento anglosaxonico de Richard Rorty Agamben é um intelectual instigante, exigente e intempestivo, em meio à tamanha produção bibliográfica contemporânea. Impressiona a qualquer leitor o fato de ele procurar chaves ou pistas de leitura da situação atual andando sinuosamente entre uma miríade de autores antigos (como Aristóteles), medievais, modernos e contemporâneos, e em vários campos de saber, da filologia ao direito, da filosofia (filosofia política, ética, estética e metafísica) à literatura e à teologia. Agamben vai consolidando em sua obra uma corajosa leitura do pensamento político contemporâneo, recorrendo a paradigmas extremos como o ‘campo de concentração’, o ‘estado de exceção’, e sobretudo falando da biopolítica como luta da vida e das formas da vida contra o poder, que procura submetê-las a seus fins por meios muitas vezes ilegítimos[vi].
A referência de Assmann aos paradigmas diz respeito ao método de Agamben, o paradigmático. O paradigma, para Agamben, não é apenas uma hipótese explicativa da modernidade, mas uma forma de tornar compreensíveis os fenômenos que escapam, ou que podem escapar, aos olhos dos historiadores. Continuador de Foucault, preocupa-se em compreender, com peculiaridades próprias, “a situação em que nos encontramos”[vii]. Para isso, toma um objeto singular, semelhante a outros de mesma classe (p. ex. os campos de concentração nazistas). A partir da suspensão do objeto singular, isto é, da retirada do uso, identifica as características centrais (estruturas) que o compõem (p. ex. tomar o campo de Buna-Monowitz, no qual Primo Levi ficou). A partir da análise da formação discursiva dessas estruturas, passa a ser possível compreender os demais, por meio de analogias da parte em relação a outra parte[viii].
No estudo da formação discursiva das estruturas, Agamben escava fontes da filosofia, da política, da economia, da teologia e do direito para melhor compreender o presente. Nesse sentido, não pode ser considerado um historiador, muito menos um positivista, na medida em que tanto não faz uma historiografia, quanto não se preocupa com datas específicas, mas como o que antecedeu a existência do objeto singular analisado, isto é, os discursos que deram origem ao objeto, as estruturas que o compõem, bem como a permanência dessas estruturas, ainda que com nova roupagem, na atualidade.
Na senda tortuosa aberta por Agamben, seguindo as pistas deixadas pelo filósofo, pretende-se trilhar um caminho próprio, tomando em conta o necessário cuidado com as peculiaridades do Brasil.
Convidamos os leitores a nos acompanhar nessa trajetória, com leitura e, de preferência, muitos debates, mantendo sempre o devido respeito.
Notas e Referências
[i] AGAMBEN, Giorgio. Stasis: la guerra civile come paradigma politico: homo sacer II, 2. Turim: Bollati Bolinghieri, 2015, p. 9-10.
[ii] Traduzido em Portugal como Teoria da guerrilha.
[iii] AGAMBEN, Giorgio. Stasis, p. 10-11.
[iv] AGAMBEN, Giorgio. Stasis, p. 15-20.
[v] AGAMBEN, Giorgio. Stasis, p. 22-23.
[vi] ASSMANN, Selvino J.. Apresentação. In: AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 6.
[vii] , COSTA, Flavia. Entrevista com Giorgio Agamben. Trad. Susana Scramim. Revista do Departamento de Psicologia - UFF, Niterói, v. 18, n. 1, p. 131-136, 2006, p. 132-133.
[viii] AGAMBEN, Giorgio. Signatura rerum. Sul metodo. Torino: Bollati Bolinghieri, 2008.
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