Por Leonardo Isaac Yarochewsky – 30/01/2016
“Em cada patamar, diante da porta do elevador, o cartaz da cara enorme o fitava da parede. Era uma dessas figuras cujos olhos seguem a gente por toda parte. O Grande Irmão zela por ti, dizia a legenda [...]”
(George Orwell, “1984”).
“Sorria, sorria, sorria você está sendo filmado Não faça nada errado Celulares me tornaram, uma espécie de soldado Que espera sempre o caos pra usar como cenário”
(Maneva)
ZYGMUNT BAUMAN[1] recorreu ao Wikipédia (versão inglesa de 08 de março de 2009) para definir o significado de privacidade, onde se lia que:
“Privacidade é a capacidade de uma pessoa ou grupo de controlar a exposição e a disponibilidade de informações a seu respeito, e dessa forma revelar-se de maneira seletiva. Ela se relaciona às vezes com a capacidade de existir anonimamente na sociedade, com o desejo de não ser notado ou identificado na esfera pública. Quando algo pertence a uma pessoa de modo privado, isso em geral significa que há nele algo que se considera inteiramente especial ou pessoal. [...]”.
Para BAUMAN, “privado” e “público” são conceitos antagônicos que estão separados por fronteiras demarcadas e intransponíveis, “de preferência fechadas com rigidez e pesadamente fortificadas de ambos os lados para impedir transgressões”[2]. Durante a maior parte da era moderna, observa o sociólogo polonês, “há uma suspeita geral sobre a tendência endêmica das instituições públicas a bisbilhotar e ouvir atrás das portas; um inextinguível impulso para invadir e conquistar a esfera do privado a fim de colocá-lo sob sua administração, recobrindo-se de uma densa rede de fortalezas, mecanismos de espionagem e escuta, e privando os indivíduos e grupos da proteção oferecida por um espaço privado intransponível; da mesma forma, sua segurança pessoal ou de grupo”.[3]
Hodiernamente, dúvida não há de que nossas vidas não nos pertencem mais. Apesar da Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamar que “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a proteção da lei” (art. 12) e de igual modo a nossa Constituição da República (art. 5º, X), a vida privada e a intimidade se perderam ao longo do tempo e sofrem a cada dia, com o constante avanço tecnológico, uma nova forma de intromissão.
Uma dessas inovações tecnológicas é o telefone celular. Os telefones celulares, diz BAUMAN, “são o fundamento técnico da suposição de constante acessibilidade e disponibilidade. A suposição de que a condição humana em geral da modernidade líquida, a condição de ‘lobos solitários sempre em contato’, já foi viabilizada e se converteu em ‘norma’, tanto no segundo quanto no primeiro aspecto”. [4]
Mais adiante BAUMAN assevera que: “Entre as imagens das formas de união que a prática da telefonia celular substituiu ou eliminou, o conceito de ‘rede’ sobressai principalmente por sua flexibilidade e pela ilusória adaptabilidade ao rígido manejo e monitoramento, bem como pelo rápido e indolor ajuste e pela reformulação. Caracteriza-se ainda pela portabilidade: ao contrário de outros grupos de pessoas, as ‘redes’ registradas nos aparelhos de seus donos os acompanham a todo momento, como a concha de um caracol, onde quer que eles vão ou parem. As redes lhes dão a ilusão de que ‘estão no controle’ de modo permanente e contínuo”.
Os mecanismos de vigilância aperfeiçoaram-se e passaram de um caráter institucional para o de uma vigilância geral. A multiplicação de câmeras de vídeo em espaços sociais (públicos e privados), o uso de transponders, de aparelhos celulares, de cartões de crédito e da Internet, facilitaram o exercício de mecanismos de vigilância e controle cada vez mais eficientes.[5]
Em tempo de globalização, na era do mundo digital e virtual, da “sociedade do espetáculo” [6] e de outra, denominada “sociedade do risco” [7], a vida privada foi atropelada pela tecnologia e pelas formas de controles impostas pelo Estado em nome de um ilusório combate ao crime e do pretexto de nos dar mais segurança.
Nota-se que em substituição às “sociedades disciplinares” vieram as chamadas “sociedades do controle”. MICHEL FOUCAULT situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX, alcançando seu auge no início do século XX. No entanto, FOUCAULT observa que “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior dos poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações”. Não se trata, diz FOUCAULT, “de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente; exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica – movimentos, gestos atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em seguido do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento ou da linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação se faz mais sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do exercício. A modalidade enfim: implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos”.[8]
FOUCAULT, em “Vigiar e Punir”, demonstra como age o sistema de poder através do modo estritamente econômico, de modo a reduzir ao máximo os custos sem reduzir o sistema de vigilância e de controle sobre os “corpos”. “Vigilância panóptica, sanção normalizadora vão articular-se em seguida a uma nova modalidade de poder, o poder sobre a vida, que FOUCAULT chama de biopoder. Este se aplica aos vivos, à população e à vida e se articula ao discurso racista e à luta das raças”. [9]
No que diz respeito ao “Panóptico” de BENTHAM, FOUCAULT aponta como o mais importante efeito o de “induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder”.
O “Panóptico”, diz MICHEL FOUCAULT em seu “Surveiller et punir”, “funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento do homem”. Mais adiante, FOUCAULT afirma que o esquema panóptico “é um intensificador para qualquer aparelho de poder: assegura sua economia (em material, em pessoal, em tempo); assegura sua eficácia por seu caráter preventivo, seu funcionamento continuo e seus mecanismos automáticos. É uma maneira de obter poder”. [10]
ZYGMUNT BAUMAN[11] nos trás a diferença entre o “Panóptico” de JEREMY BENTHAM - retratado por MICHEL FOUCAULT – e o sistema de “banco de dados”. Segundo BAUMAN, no seu “tipo ideal, o Panóptico não permitia qualquer espaço privado”, ou seja, nenhum espaço vazio, sem vigilância e não passível de supervisão. “Na cidade de Orwell em 1984, todo mundo tinha um aparelho de TV particular, mas ninguém jamais tinha permissão para desligá-lo e ninguém podia saber em que momento o aparelho era usado como câmara pela emissora...”[12] A principal função do “Panóptico” era, de acordo com BAUMAN, que ninguém pudesse escapar do espaço vigiado; a principal função do “banco de dados” é garantir que nenhum intruso entre aí sob falsas alegações e sem credenciais adequadas.
Referindo-se ao trabalho de MARK POSTER sobre os “bancos de dados eletrônicos”, para BAUMAN uma versão ciberespacial atualizada do “Panóptico”. De acordo com POSTER - aqui através de BAUMAN - “nossos corpos são fisgados dentro das redes, dos bancos de dados, nas autoestradas da informação”.[13]
Ainda sobre a distinção entre o “Panóptico” e o “banco de dados”, BAUMAN diz que “ao contrário do Panóptico, o bando de dados é um veículo de mobilidade, não grilhões a imobilizar as pessoas”.
Na linha de THOMAS MATHIESEN, para quem a introdução do “panóptico” representou uma transformação fundamental, “de uma situação em que muitos vigiam poucos para uma situação em que poucos vigiam muitos”, BAUMAN se refere à ascensão dos meios de comunicação de massa – especialmente a TV – que leva à criação do outro mecanismo de poder denominado de “Sinóptico”. Enquanto o “Panóptico forçava as pessoas à posição em que podiam ser vigiadas. O “Sinóptico” não precisa de coerção – ele seduz as pessoas à vigilância”. [14]
DELEUZE constatou uma crise generalizada de todos os meios de confinamento: prisão, hospital, fábrica, escola e família. Apesar dos frequentes anúncios de reforma da escola, de reforma da indústria, do hospital, do exército, da prisão, é sabido que essas instituições, num prazo mais ou menos longo, estão condenadas. “Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam. São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares”. [15]
As sociedades disciplinares, segundo GILLES DELEUZE, procedem à organização dos grandes meios de confinamento. De acordo com o filósofo francês, “o indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola (“você não está mais na sua família”), depois a caserna (“você não está mais na escola”), depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência”. [16]
Diferenciando as “sociedades disciplinares” das “sociedades de controle”, GILLES DELEUZE constata que as “sociedades disciplinares” possuem dois polos: “a assinatura que indica o individuo, e o número de matrícula que indica sua posição na massa”. Contrariamente, nas “sociedades de controle”, o essencial “não é mais a assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha (...)”. Enquanto as “sociedades disciplinares” são reguladas por palavras de ordem, a linguagem das “sociedades de controle” é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição.[17]
Ao longo dos anos verificam-se, lamentavelmente, tanto nos regimes de direita ou naqueles que se proclamam de esquerda, que o controle do Estado sobre os indivíduos vem avançando rapidamente sem que a maioria perceba que em breve, “criminosos” (criminalizados) ou não, “investigados” ou não, “suspeitos” ou não, todos, enfim, estarão sob os olhares do “Grande Irmão”.
Os dominados pela enganosa publicidade do sistema penal como diz MARIA LÚCIA KARAM, “não percebem que a explosão de tecnologias viabilizadoras de ampliados controle e vigilância, combinada com a debilitação das normas protetoras da privacidade, combinada com a desmedida expansão do poder punitivo, combinada com a troca do desejo de liberdade pela ilusão de segurança, estão nos arrastando para uma sociedade de controle, estão aproximando Estados democráticos de Estados totalitários, estão empreendendo uma viagem de ‘volta para o futuro’ previsto para um 1984 que só se tornou passado nas folhas do calendário”.[18]
Como observam LEANDRO CHEVITARESE e ROSA MARIA LEITE RIBEIRO PEDRO, trata-se de “uma sociedade de "segurança máxima", em que as zonas de sombra foram eliminadas e tudo se passa "a céu aberto". Assim, para nos proteger, o controle indica que devemos renunciar a qualquer privacidade, pois nela pode residir o "vírus" da insegurança, capaz de desestruturar o sistema, o que corresponderia à nossa própria aniquilação – enquanto sujeitos individuais, enquanto espécie, enquanto sociedade (...)”. [19]
A fiscalização moderna, os circuitos de televisão, a telefonia celular, as redes, o simples uso do cartão de crédito, os diversos números e senhas que tomaram o lugar da pessoa e tantas outras tecnologias que nos envolvem são sua concreta aplicação. “Nossa sociedade é muito mais benthamiana do que beccariana”.[20]
No campo do direito penal e do direito processual penal - onde uma vez mais a direita e a esquerda se confundem em nome do poder punitivo – constata-se uma redução das garantias processuais penais e uma expansão do direito penal que vai desde o aumento da criminalização, passando pela elevação das penas e culminando com o encarceramento em massa e (da) massa.
Em relação ao processo penal democrático e comprometido com os princípios esculpidos na Constituição da República, JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO, com toda propriedade, assevera que: “devem todos entender, principalmente em países periféricos, que a democracia é uma conquista, motivo pelo qual precisamos grande esforço para sublimar”. Adverte, ainda, o eminente processualista: “1. Novas tecnologias só e tão só nos estritos limites da inviolabilidade dos “direitos fundamentais/humanos”; 2. Neles, não se pode cogitar de qualquer invasão do “espaço psíquico”; 3. Daí a importância capital de se implementar o Sistema Acusatório; 4. Já as discussões se devem pautar pela estrita separação dos Sistemas, de modo a que se não inverta a ordem das coisas; 5. Muito da aplicação de novas tecnologias depende da ética”.
Por fim, conforme alerta LENIO STRECK, “sem os devidos cuidados, o Estado investigador colonizará a nossa já tênue e devassada privacidade. Será um panóptico institucionalizado! Por isso, a necessária cautela. Afinal, estamos no Brasil, onde, na guerra contra o crime, quem (sempre) perde (mais) é a cidadania”.[21]
Belo Horizonte, 28 de janeiro de 2016.
Notas e Referências:
[1] BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Trad. Vera Pereira. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
[2] Idem.
[3] BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido, ob. cit.
[4] BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido, ob. cit.
[5] CHEVITARESE Leandro e PEDRO, Rosa Maria Leite Ribeiro. Da sociedade disciplinar à sociedade de controle: a questão da liberdade por uma alegoria de Franz Kafka, em O Processo, e de Phillip Dick, em Minority Report. Estudos de Sociologia. Rev do Programa de Pós-graduaçãoo em Sociologia da UFPE, v, 8, n. 1.2. p. 129-162. http://www.revista.ufpe.br/revsocio/index.php/revista/article/viewFile
[6] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
[7] BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011.
[8] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões.Trad. Lígia M. Pondé Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1987.
[9] FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. Organização e seleção de textos Manoel Barros da Motta. Trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
[10] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir, ob. cit.
[11] BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
[12] Idem.
[13] BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
[14] BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Ob. cit.
[15] Idem.
[16] DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle in Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2013.
[17] DELEUZE, Gilles. Ob. cit.
[18] KARAM, Maria Lúcia. Monitoramento eletrônico: a sociedade do controle. Boletim do IBCCrim. Ano 14, nº 170 – jan/2007.
[19] CHEVITARESE Leandro e PEDRO, Rosa Maria Leite Ribeiro. Da sociedade disciplinar à sociedade de controle: a questão da liberdade por uma alegoria de Franz Kafka, em O Processo, e de Phillip Dick, em Minority Report. Estudos de Sociologia. Rev do Programa de Pós-graduaçãoo em Sociologia da UFPE, v, 8, n. 1.2. p. 129-162. http://www.revista.ufpe.br/revsocio/index.php/revista/article/viewFile
[20] FOUCAULT, Miichel. Estratégia, poder-saber. Organização e seleção de textos Manoel Barros da Motta. Trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
[21] STRECK, Lenio Luiz. As interceptações telefônicas e os direitos fundamentais: Constituição, cidadania, violência. A Lei 9.296/96 e seus reflexos penais e processuais. Porto Alegra: Livraria do Advogado, 2001.
. Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). . . .
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