SOMENTE O FLAGRANTE DELITO REAL PERMITE QUE A POLÍCIA ENTRE EM RESIDÊNCIA SEM MANDADO JUDICIAL  

04/08/2020

Nesta oportunidade, resolvi publicar, nesta coluna do Site Empório do Direito, um parecer que apresentei ao Tribunal de Justiça do E.R.J, quando ainda era Procurador de Justiça. Hoje me encontro aposentado.

Esta opção decorre da relevância da matéria ali tratada, seja no aspecto prático, seja nos aspectos doutrinário e jurisprudencial.

O Supremo Tribunal de Justiça e o Superior Tribunal de Justiça têm enfrentado constantemente a questão, não havendo um consenso consolidado.

Vamos ao parecer mencionado:

PARECER

EMENTA: Constitucional e Processual Penal.

Recurso em sentido estrito contra decisão que rejeita denúncia e relaxa prisão em flagrante.

Conceito de flagrante delito para autorizar a entrada da polícia em residência à noite, sem consentimento do morador.

Artigo 5º, inc. XI, da Constituição da República. A mera notícia anônima não pode autorizar o desrespeito a valor jurídico hierarquizado pela Carta Magna.

A correta interpretação desta regra constitucional há de exigir real e efetivo flagrante delito, que tenha um mínimo de aparência perceptível aos nossos sentidos da existência material de um crime.

Prisão e provas ilícitas, (inconstitucionais). Parecer pelo não provimento do recurso do Ministério Público.

Através da decisão recorrida de fls. 68/72, o juiz André Luiz Nicolitt, então titular da Comarca de Arraial do Cabo, relaxou a prisão em flagrante dos recorridos A.J. e E.F.L, bem como rejeitou a denúncia do Ministério Público que lhes imputa ter em depósito cerca de 3,75 g. de cocaína, no interior de uma residência (barraco) situada naquela comarca.

O supra referido magistrado entendeu que a polícia militar não poderia ter entrado à noite na residência onde se encontravam os recorridos, pois não tinham a certeza da existência do crime para legitimar a prisão em flagrante, tendo em vista a regra do art. 5, inc. XI, da Constituição da República.

Desta forma, a prisão dos acusados seria ilícita, assim como a prova que dá arrimo à denúncia do Ministério Público, que passa a carecer de justa causa, por isso que rejeitada.

Irresignado, o Ministério Público interpõe o presente recurso em sentido estrito, apresentando suas razões a fls. 90/96, que são tempestivamente contrariadas pelas defesas técnicas dos recorridos. (fls. 102 e 106/109).

 O tema é da maior relevância e já dele tratamos em várias atividades acadêmicas, mormente após a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988. Por isso, exortamos a Egrégia Câmara que reflita profundamente sobre a questão, pois o seu deslinde tem efeitos práticos da maior relevância, principalmente para pautar a atividade policial e reafirmar valores muito caros para o Estado Democrático de Direito.

Uma premissa conceitual deve ser estabelecida em todo o processo de interpretação das normas constitucionais que tutelam os chamados direitos individuais: ao estabelecer regras que asseguram um processo penal democrático, o Estado sabe, de caso pensado, que irá absolver culpados diuturnamente. Entretanto, faz esta opção para não assumir igual risco de condenar inocentes ou mesmo culpados a penas injustas.

A toda evidência, o Estado seria muito mais eficaz em combater a criminalidade se não necessitasse processualizar sua pretensão punitiva, estabelecendo um processo que garanta valores outros, tão relevantes ou mais relevantes do que condenar quem mereça ser condenado.

O “preço” de combater a criminalidade desta forma é muito alto, vez que tem de postergar valores relevantes conquistados através do processo civilizatório, criando, por outro lado, uma coletiva insegurança entre a sociedade civil.

No caso concreto, temos que ultrapassar uma questão prévia: os soldados da polícia militar asseveraram, como sempre fazem, que os ditos traficantes permitiram que eles entrassem na residência à noite. Se assim fosse, tudo estaria resolvido. Entretanto, como disse o magistrado de primeiro grau, somente se estivéssemos vivendo em um conto de fadas, poderíamos acreditar nesta inverossímil versão.

Ademais, temos a peça de fls. 61/62, que diz expressamente ao contrário, assinada por um defensor público. Acreditar que “marginais” permitam livremente a entrada dos policiais nas residências onde se escondem é ser ingênuo ou mesmo cínico.

Além disso, ainda que houvesse tal consentimento, ele estaria totalmente viciado pela situação de coação. Aliás, todos sabemos que a polícia, nestas circunstâncias, não sabendo o que vai encontrar dentro da casa, tem mesmo que entrar usando da violência estritamente necessária para resguardar a integridade física de seus agentes. Pensar de outro modo é “viver em um conto de fadas...”

Assim, resta interpretar em que sentido a expressão “flagrante” foi usada pelo Constituinte para permitir a entrada em residência durante o repouso noturno, o que sequer é permitido mesmo com mandado judicial.

Sempre entendemos que a tal permissão só é possível diante de flagrante delito efetivo e real, ou seja, só nas hipóteses previstas no art. 302, inc. I e II, do Cód. Proc. Penal. Isto se depreende do próprio art. 293 do Cód. Proc. Penal, posto em vigor durante a ditadura de Getúlio Vargas. Por este dispositivo, no caso de perseguição, nem com mandado em mãos a polícia pode entrar à noite nas residências, sem o consentimento dos moradores.

Na verdade, as duas últimas hipóteses do citado art. 302 não são de flagrante, por isso que o legislador consignou; “considera-se em flagrante...”. Assim, não se pode permitir que o legislador diminua a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio, ampliando as situações que não são de verdadeiro flagrante para nelas permitir a prisão.

Entretanto, no caso concreto, se argumenta que a prisão dos recorridos foi efetuada em flagrante real, pois o delito de guarda de tóxicos é um crime de natureza permanente, motivo pelo que os policiais poderiam “invadir” a residência, como ocorre comumente nas casas das pessoas mais pobres de nossa sociedade.

Aqui, mais uma vez, estamos com o magistrado André Luiz Nicolitt. Para legitimar tal atuar policial, seria necessário que tivéssemos “um mínimo de aparência perceptível aos sentidos relativamente à existência de um crime” (fls. 68).

Vale dizer, não basta a polícia dizer que recebeu uma notícia anônima para afastar a garantia constitucional e entrar na casa de quem desejar durante o repouso noturno.

Neste sentido é a lição do mestre Fernando da Costa Tourinho Filho, quando diz: “... Preciso é, contudo, haja certeza de que um crime está se consumando. Do contrário, a expressão “flagrante” servirá para que os agentes da Polícia adentrem uma residência e, quebrada a infranqueabilidade domiciliar, deem a desculpa esfarrapada de que pensavam que havia, no interior da casa, armazenada, substância entorpecente...” (Processo Penal, S. Paulo, Saraiva, 1992, 13ª edição, vol. 3, p. 361).

Não vale o argumento de que a polícia teve sorte e encontrou o entorpecente. Este argumento é perigoso, porque assim a polícia vai se sentir “estimulada” a sempre “encontrar” o entorpecente, para legitimar sua conduta. Vamos estimular flagrantes forjados???

Note-se que a questão da legitimidade da atuação policial se coloca no momento anterior, quando da entrada da residência. Pode ser legítima a penetração da polícia em uma residência, diante da certeza de que ali se pratica um crime, mas, ao final, o flagrante restar frustrado. Ao contrário, como no caso, sem qualquer prova da existência do crime, a atuação policial não é legítima no momento em que entra à noite na residência, embora, ao depois, se encontre o entorpecente.

Note-se que a já citada regra do art. 293 do Cód. Proc. Penal, que permite à polícia entrar na casa DE DIA E COM MANDADO, exige expressamente a certeza do atuar dos agentes do Estado, usando a expressão “com segurança”, tornando necessária, ainda, a presença de duas testemunhas. Um código dito autoritário não pode ser mais garantista do que uma “Constituição Cidadã”.

Cabe salientar que os policiais que prenderam os recorridos não têm o conhecimento jurídico para que possamos dizer que praticaram abuso de autoridade, até porque há inúmeras decisões de nossos tribunais corroborando suas condutas, conforme demonstram as razões recursais do Ministério Público.

Por isso, caso esta Egrégia Câmara adote o entendimento da decisão recorrida, seria interessante remeter o acórdão à Secretaria de Segurança Pública para ciência dos órgãos encarregados da repressão policial.

Certo que tal entendimento levará à impunidade de alguns criminosos. Mas certo também é que, para punir estes alguns criminosos, não se deve criar uma generalizada insegurança aos cidadãos de uma sociedade que se deseja democrática. A impunidade já existe por vários outros fatores e pode ser o ônus que se tem que tolerar para viver em um país onde a liberdade das pessoas é um bem da mais alta relevância.

A Polícia Federal tem dado exemplos de que se pode prender com mandado judicial e sem dar um tiro sequer, após correta investigação. Tem prendido desde empresários, políticos e até grandes traficantes e contrabandistas.

Por tudo o exposto, o parecer é no sentido de ser negado provimento ao recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público, mantendo-se íntegra a correta decisão de fls. 68/72.

Evidentemente, ao menos em tese, outra denúncia poderá ser apresentada no futuro, desde que não lastreada em provas obtidas por meios ilícitos.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura