SOCIOEDUCAÇÃO E RACISMO: UMA QUESTÃO DE SELETIVIDADE

30/06/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Rêgo, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

1 DISCRIMINAÇÃO RACIAL E O DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Após o processo de abolição dos sistemas escravocratas ao redor do mundo, o século XX trouxe consigo o desafio de desmantelar, gradativamente, as estruturas discriminatórias institucionalizadas, afirmando a igualdade de todos – ainda que apenas no nível formal. E se a primeira metade do século passado ficou marcada pela ascensão e queda dos regimes nazifascistas, responsáveis pelos horrores do extermínio de diversos grupos minoritários, as décadas seguintes demonstraram a incompatibilidade entre os avanços civilizatórios do pós-guerra e a manutenção dos sistemas de discriminação racial oficial.

Nesse contexto, ganharam corpo as articulações em torno do aprofundamento das previsões constantes na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de modo que, na década de 1960, a Carta Internacional dos Direitos Humanos passou a ser integrada, também, pelo Pacto Internacional dos Direitos Civil e Políticos e pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Na mesma época, além da independência de diversos países africanos, cresceram os movimentos antidiscriminatórios pelos direitos civis, que questionavam os sistemas oficiais de segregação racial. Tais conjunturas permitiram que, em 1965, a Organização das Nações Unidas (ONU), adotasse a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.

Já na década de 1980, os movimentos em prol dos direitos humanos passaram a ressaltar a importância da proteção à infância e à adolescência. E num curto período, o ordenamento jurídico brasileiro passou a contar com três instrumentos normativos fundantes da Doutrina da Proteção Integral: a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 e, o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. No tema específico da vedação à discriminação de crianças e de adolescentes, esses três documentos dispõem, respectivamente:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão

Artigo 2

Os Estados Partes devem respeitar os direitos enunciados na presente Convenção e assegurarão sua aplicação a cada criança em sua jurisdição, sem nenhum tipo de discriminação, independentemente de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional, étnica ou social, posição econômica, deficiência física, nascimento ou qualquer outra condição da criança, de seus pais ou de seus representantes legais.

Os Estados Partes devem adotar todas as medidas apropriadas para assegurar que a criança seja protegida contra todas as formas de discriminação [...].

Art. 3º [...] Parágrafo único.  Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem.

[...] Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão [...].

Logo, é de se dizer que o racismo, como qualquer outra forma de discriminação, afronta diretamente as bases da Doutrina da Proteção Integral, uma vez que o Direito da Criança e do Adolescente, a partir da adoção desse paradigma, foi erigido sobre fundamento não discriminatório, que se irradia para todos os âmbitos desse ramo do Direito. Nessa toada, o artigo 35 da Lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE (Lei nº 12.594/12) estabelece:

Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios: [...] VIII - não discriminação do adolescente, notadamente em razão de etnia, gênero, nacionalidade, classe social, orientação religiosa, política ou sexual, ou associação ou pertencimento a qualquer minoria ou status;

Contudo, há que se memorar a lição de Herrera Flores (2009, p. 27), para quem os Direitos Humanos vão muito além de sua mera declaração:

Falamos de direitos e parece que tal reconhecimento jurídico já solucionou todo o problema que envolve as situações de desigualdade ou de injustiça que as normas devem regular. Somente devemos nos preocupar com as garantias judiciais dos direitos, desprezando absolutamente que, atrás de todo edifício jurídico, se escondem sistemas de valores e processos de divisão do fazer humano que privilegiam uns grupos e subordinam outros.

Portanto, não é de se esperar que, a partir da adoção normativa da Doutrina da Proteção Integral, todos os “sistemas de valores e processos de divisão do fazer humano”, que ao longo dos séculos têm privilegiado pessoas brancas desde sua infância, simplesmente deixassem de operar como num passe de mágica. Em outras palavras, há que questionar:

Está havendo, na realidade, o cumprimento desses preceitos? Numa sociedade como a brasileira, cujo modelo de desenvolvimento implantado se caracteriza como dependente, submisso, controlado pelos países de economia avançada, fato este do qual resultam problemas que vão desde a questão da dívida pública até a acentuação do quadro de desigualdades econômico-social, não haveria como que um processo “natural” de exclusão? Os mais ricos, os mais saudáveis, os brancos não são os não discriminados, os não-violentados?

[...]

A proposta da responsabilização estatutária mediante a inserção de práticas pedagógicas em detrimento das punitivas – violadoras dos direitos humanos dos adolescentes – consiste em um grande desafio proposto aos operadores do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente. É possível fazer com que esse ideal de responsabilização não se constitua em letra morta? Como fazer cumprir essa nova proposta pedagógica? Qual caminho seguir? Como permitir que os adolescentes envolvidos com ato infracional não tenham condutas reiteradas? Essas e outras indagações são comuns para quem trabalha com um tema tão complexo e repleto de variados antagonismos. (VERONESE, 2015, p. 34 - 235).

Passemos, então, a verificar se as diversas previsões normativas sobre a proibição da discriminação racial infantoadolescente são efetivas na prática socioeducativa nacional.

 

2 PERFIL RACIAL DOS ADOLESCENTES EM CUMPRIMENTO DE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS

Anualmente, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos publica o levantamento do SINASE, trazendo dados relevantes acerca da realidade socioeducativa. Sobre o perfil racial dos adolescentes destinatários de medidas socioeducativas em meio fechado, o relatório mais recente (publicado em 2019, a partir de dados colhidos em 2017) traz uma afirmação que chama a atenção:

- 56% dos adolescentes e jovens em restrição e privação de liberdade foram considerados pardos/negros, em 2014 eram 61% e em 2016 eram 59%, ou seja, a predominância da cor parda e negra/preta no Sistema Socioeducativo também confere com os dados do IBGE em que a população brasileira nestes anos está entre 50 a 60% de pessoas pardas e negras; (BRASIL, 2019, p. 41).

Seria possível, dessa forma, concluir que o racismo estrutural e a seletividade racial não se verificam no sistema socioeducativo brasileiro? Antes de qualquer celebração, é necessário lançar um olhar mais apurado e crítico sobre algumas das informações presentes – e, especialmente, sobre aquelas ausentes – nas estatísticas oficiais.

Embora os relatórios oficiais de dados sobre a socioeducação brasileira tenham se iniciado muito antes da vigência da Lei do SINASE, foi apenas a partir do levantamento de 2013 que as informações sobre o perfil racial dos adolescentes em cumprimento das medidas passaram a ser colhidas. Desde lá, as estatísticas destacam, dentre os adolescentes em restrição ou privação de liberdade, as proporções de cada grupo étnico. Além desses recortes, no entanto, há, ano após ano, um grupo expressivo, desconsiderado no trecho acima transcrito, sobre os quais não há informação racial.

De fato, o levantamento de 2015 foi o com menor índice de falta de informações raciais, quando 14,67% não tiveram sua raça ou cor identificada. Naquele ano, 61,03% dos adolescentes eram pretos ou pardos (contra 53,8% da população geral no mesmo período), 23,17% eram brancos (contra 45,5% na população geral), 0,81% amarelos (contra 0,5% na população geral) e 0,29 indígenas (contra 0,2% na população geral). Ou seja, o único grupo sub-representado era o dos adolescentes brancos, ao passo que a super-representação mais significativa era o da população negra. De lá para cá, o grupo invisibilizado dos “sem informação” mais do que dobrou, atingindo sua maior marca no levantamento mais recente, quando 36% dos adolescentes não tiveram sua raça identificada.

Por tudo isso, alguns pontos relevantes nos levam a questionar a validade científica da afirmação segundo a qual a proporção de adolescentes negros em medidas socioeducativas em meio fechado equivaleria à distribuição racial da população em geral. Em resumo: a) o levantamento de 2017, no qual a proposição é lançada, foi nitidamente prejudicado pela expressiva falta de informações (a maior da série histórica); b) comparando os levantamentos, pode-se verificar que quanto menor o grupo “sem informação”, maior o número de adolescentes autodeclarados pretos ou pardos, o que nos leva a deduzir que, possivelmente, a população negra seja a maior excluída das estatísticas oficiais; c) além de desconsiderar os excluídos dos relatórios, o levantamento de 2017 afirma a não discriminação do SINASE a partir de dados de anos selecionados sem nenhum critério objetivo aparente: 2014, 2016 e 2017. Ocorre que, ao omitir os dados de 2015, foi desconsiderado, justamente, o período com a maior confiabilidade dos dados, e no qual se verificou a maior super-representação negra no sistema; d) por fim, a suposta verificação de equivalência entre as populações negras dentro e fora do SINASE se dá a partir de arredondamentos injustificados de taxas expressivas (i. e., “a população brasileira nestes anos está entre 50 a 60% de pessoas pardas e negras”).

 

3 SELETIVIDADE SOCIOEDUCATIVA

Analisadas algumas inconsistências na afirmação, lançada no levantamento de 2017 do SINASE, segundo a qual a representação racial na socioeducação brasileira não seria discriminatória, mostra-se pertinente uma leitura interdisciplinar, verificando a aplicabilidade do conceito de seletividade penal à socioeducação.

De fato, a importação da seletividade primária à esfera da responsabilização estatutária não traz maiores dúvidas, na medida em que, nos termos do artigo 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente, “considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal”. Assim, não é de se surpreender que, segundo demonstram os levantamentos anuais do SINASE, os atos infracionais que mais ensejaram a aplicação de medidas socioeducativas em meio fechado tenham sido aqueles análogos a crimes patrimoniais ou ligados ao tráfico de drogas. Sobre o tema, BARATTA leciona:

[A criminalização primária] tem a ver com os conteúdos, mas também com os “não conteúdos” da lei penal. O sistema de valores que neles se exprime reflete, predominantemente, o universo moral próprio de uma cultura burguesa-individualista, dando a máxima ênfase à proteção do patrimônio privado e orientando-se, predominantemente, para atingir as formas de desvio típicas dos grupos socialmente mais débeis e marginalizados. Basta pensar na enorme incidência de delitos contra o patrimônio na massa da criminalidade, tal como resulta da estatística judiciária (2011, p. 176).

No mesmo trecho, o autor explicita que os “preconceitos e estereótipos que guiam a ação tanto dos órgãos investigadores como dos órgãos judicantes” dizem respeito à seletividade secundária. São esses rótulos, então, que levam as instituições de controle social “a procurar a verdadeira criminalidade principalmente naqueles estratos sociais dos quais é normal esperá-la”. Esse grupo rotulado, sobre o qual o aparato estatal opera de maneira vigilante, tem cor e classe social bem definidos:

A sobrerrepresentação maciça e crescente dos negros em todos os patamares do aparelho penal esclarece perfeitamente a segunda função assumida pelo sistema carcerário no novo governo da miséria nos Estados Unidos: substituir o gueto como instrumento de encerramento de uma população considerada tanto desviante e perigosa como supérflua (WACQUANT, 2011, p. 105-106).

E mesmo com o compromisso de separação entre as esferas penal e infracional, a realidade demonstra que a porta de entrada de ambos os sistemas ainda é, em regra, a mesma: a polícia. Logo, não é à toa que o anuário de segurança pública mais recente (também publicado em 2019 a partir de dados de 2017, tal qual o levantamento do SINASE aqui criticado) demarca nitidamente que as vítimas da letalidade policial têm perfil bem definido: são homens jovens e, sobretudo, negros (75,4%). Destaca-se:

No que tange à seletividade racial, o padrão de distribuição da letalidade policial aponta para a expressiva sobrerrepresentação de negros dentre as vítimas. Constituintes de cerca de 55% da população brasileira, os negros são 75,4% dos mortos pela polícia. Impossível negar o viés racial da violência no Brasil, a face mais evidente do racismo em nosso país.

A violência letal, e não apenas a letalidade produzida pelas polícias, é historicamente marcada pela prevalência de negros entre as vítimas. Estudo de Cerqueira e Coelho (2017) no Rio de Janeiro mostrou que indivíduos negros possuem 23,5% mais chances de serem vítimas de homicídio. O mesmo estudo demonstrou também que aos 21 anos de idade, quando há o pico das chances de ser vítima de homicídio, indivíduos negros possuem 147% mais chances de serem assassinados do que brancos, amarelos e indígenas. [...] O Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade Racial mostrou que a chance de um jovem negro ser vítima de homicídio no Brasil é, em média, 2,5 vezes superior à de um jovem branco.

Paralelamente, brancos representam 44,2% da população, mas são 24,4% das vítimas de letalidade policial (FÓRUM NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2019, p. 62).

Portanto, além da impossibilidade de se afirmar que o SINASE constitua exceção à discriminação racial presente na sociedade brasileira, há que se ter em mente que grande parcela dos adolescentes negros sequer entra nas estatísticas da socioeducação, não porque o sistema não seja discriminatório, mas porque foram privados de um processo judicial, tendo sido, antes, vítimas de execuções sumárias.

Por tudo isso, conclui-se que o combate à discriminação racial na socioeducação não passa pela reprodução do mito da democracia racial brasileira, mas requer um olhar crítico sobre a realidade, pronto a reconhecer (e combater) os mecanismos de operação do racismo. E o Direito da Criança e do Adolescente tem papel relevante nesse enfrentamento, seja pelo potencial emancipatório de suas previsões normativas, seja por operar no segmento populacional que será responsável por ditar o funcionamento das instituições no futuro.

 

Notas e Referências

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 11 jun. 2020.

________. Decreto 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm. Acesso em: 11 jun. 2020.

_________. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 11 jun. 2020

________. Lei Federal Nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) [...]. Brasília, DF: Presidência da República, 2020.

________. Presidência da República. Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Levantamento nacional SINASE 2017. 2019. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/crianca-e-adolescente/LevantamentoAnualdoSINASE2017.pdf. Acesso em: 11 jun. 2020.

________. Presidência da República. Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Levantamentos Nacionais. 2020. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/crianca-e-adolescente/levantamentos-nacionais. Acesso em: 11 jun. 2020.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário brasileiro de segurança pública 2019. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/10/Anuario-2019-FINAL_21.10.19.pdf. Acesso em: 11 jun. 2020.

HERRERA FLORES, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.

IBGE. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/25844-desigualdades-sociais-por-cor-ou-raca.html?=&t=downloads. Acesso em: 11 jun. 2020.

VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito penal juvenil e responsabilização estatutária: elementos aproximativos e/ou distanciadores?: o que diz a Lei do Sinase: a inimputabilidade penal em debate. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

________, Josiane Rose Petry. Convenção sobre os direitos da criança: 30 anos.

WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

 

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