Por Natália Barroca – 02/09/2017
1. Preliminares: despir o tema com as excitações principiológicas constitucionais
Se queremos o prazer de um Estado Democrático de Direito, é necessário ter o respeito às regras constitucionais estabelecidas para a harmônica convivência social. Afinal, somos detentores da Carta Cidadã, um dos mais coesos textos mundialmente falando, que disciplina magistralmente (em teoria) a Democracia e os Direitos e Garantias Fundamentais, pautados no acesso inclusivo do povo, nas decisões de políticas públicas, com eleições livres, periódicas e permeadas por normas democráticas, respeitadas por todos (ao menos deveria ser tudo isso). É o papel do Direito, em um Estado Democrático que limitará o exercício do poder estatal.
E na meia luz da sociedade democrática, temos os princípios-normas insculpidos em cláusulas pétreas como cenário das mais afáveis normas jurídicas. Entre elas, convém-nos destacar que, regendo todo o panorama das leis brasileiras, há o princípio-norma da legalidade (tanto em sentido amplo, como estrito ao cunho penal). Por meio do processo eleitoral, elegemos nossos representantes parlamentares que elaborarão as leis que conduzirão nossa sociedade. Assim sendo, o tipo penal deve vir especificado em lei, oriunda de sua fonte formal, observando a determinação do texto, a clareza e a taxatividade, traduzindo no brocardo do nullum crimen, nulla poena sine lege scripta, praevia, stricta.
Concomitante à aplicação do citado, temos que destacar o princípio da proporcionalidade, neste inseridos seus desdobramentos em princípio da ofensividade, da intervenção mínima, do ne bis in idem e da humanidade/proporcionalidade das consequências jurídicas. À gravidade do delito, que se aplique o quantum de pena proporcionalmente existente para a situação em concreto, observada a ultima ratio do intervencionismo penal, respeitando-se os direitos e garantias constitucionais e não havendo duplicidade de sanções pelo mesmo fato (neste último aspecto, quando presentes os requisitos da identidade penal, identidade de objetivo e identidade de causa de persecução). Ao que tudo isso deve considerar a medida humana e digna conforme cada caso e de acordo com os limites punitivos estatais.
2. A cópula entre a adequação da conduta praticada e a pena cabível
Em recente acontecimento no Estado de São Paulo, um rapaz ejaculou no pescoço de uma passageira, dentro de um ônibus que circulava pela avenida Paulista. Relatos contam que a mulher estava dormindo e acordou com o homem se masturbando ao seu lado e, em ato contínuo, já sentiu que seu pescoço havia sido atingido pela ejaculação proveniente do ato do rapaz, que também atingiu outra passageira (Reportagem disponível em: https://www.revistaforum.com.br/2017/08/29/assedio-no-onibus-homem-ejacula-no-pescoco-de-passageira-na-avenida-paulista/). Apesar da repugnância individual e social do ato, até mesmo de um provável perigo abstrato da conduta pela superveniência do líquido espérmico, caso embuído de alguma moléstia venérea ou grave, há que se restringir a análise ao contexto da tipicidade da conduta.
A repercussão do caso externou o desejo social de enquadrar a conduta praticada no tipo penal do art. 213, do Código Penal pátrio. Contudo, inexistente a elementar da violência ou grave ameaça (ainda que presente o constrangimento da conduta), não houve – ao que parece – até mesmo a consciência da vítima ao que estava a acontecer, vindo a tomar o conhecimento quando, digamos, do exaurimento da conduta praticada. Assim, mesmo que logo se pense em estupro de vulnerável a outros títulos (§1º, art. 217-A, CP), importante observar o dolo de agir do sujeito. Ainda no plano hipotético da apreciação do caso, a apreciação da dignidade sexual ou do pudor, perpassa pela liberdade de manifestação das pessoas e sua consequente responsabilização pelos excessos praticados, quando previstos em lei, no plano penal. A ausência da elementar de violência ou grave ameaça do caso se pauta no fundamento de que, ao tipo do estupro, violência (vis absoluta) decorre de imposição de natureza física, ainda que direta ou indireta, contra a pessoa; já a grave ameaça (vis compulsiva) diz respeito a provocação de um temor na vítima, a tal ponto de intimidá-la a fazer ou deixar que se faça algo.
Assim sendo, não vislumbramos a possibilidade de adequação do tipo penal de estupro aos fatos narrados. No tipo do estupro de vulnerável a outros títulos, mencionado, seria necessária a configuração da ausência de resistência da vítima, quando o estado de inércia não fosse capaz de ser, subitamente, convertido em consciência de reação. Alguém que se encontrava dormindo em coletivo público seria capaz de reagir a ato contra si praticado, como foi no caso em tela, em que a vítima do fato, de imediato acordou e começou a gritar acerca da situação.
Resta-nos, pois, como tipificação da conduta praticada, a infração penal prevista no Decreto-lei nº 3.688/41 (também conhecido como Lei de Contravenções Penais), que em seu artigo 61, prevê: “Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor”. A primeira observação é que o caso em tela ocorreu em lugar público, estando presente, portanto, uma das elementares do tipo. A importunação pode ser traduzida como o meio de causar algum transtorno a alguém, vinculando-se ao tipo pelo modo ofensivo ao pudor. Embora indecorosa a conduta, analisando tão apenas este ato pelo agente praticado (sem influência da divulgação dos demais casos relatados que envolvem o sujeito), percebemos a necessidade da leitura penal por meio dos princípios constitucionais explicitados para não cairmos na tentação de indicar tipificação mais gravosa a um fato sem todas as elementares ali descritas, incorrendo em desclassificação da conduta, além do profundo sentimento de frustração ou injustiça com a decisão futuramente proferida ao final da instrução processual penal. A satisfação punitivista de uma correta adequação da conduta ao tipo penal promove o que se convém chamar de aplicação do Direito (ou alguns dizem “Justiça Terrestre”).
3. O nirvana: orgasmo punitivo
Difícil entender que criminalizar ou encarcerar não é a primeira solução cabível, educação é a pauta de entrada de qualquer eficácia legislativa ou política para a redução de índices de criminalidade. Entretanto, retrocedemos à barbárie da punição em praça pública, do pleito ao empalamento e na forma de execução penal sumária, sem recursos para avaliação das prováveis nulidades ou erros. Enquanto quem for acusado for sempre o outro, à masmorra; quando o deslize acontecer em nosso lar, que se perdoe ou suavize a punição. E toda a evolução e derramamento de sangue em batalhas para assegurar a liberdade, a igualdade e a fraternidade se esvai por entre as mãos daqueles que desejam a volta dos tempos do condenado Daimes, em “Vigiar e Punir”, de Michel Foucault.
Está difícil ensinar Direito quando quase todo mundo se debruça sobre a hematopoiese punitiva; “ver sangue” (ou rigor extremo punitivo) só é a solução até o problema bater em nossa porta e abrirmos o discurso para uma seletividade penal.
Esta é uma leitura gozante com a realidade brasileira.
. Natália Barroca é professora universitária, Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior de Magistratura de Pernambuco em convênio com a Faculdade Maurício de Nassau. Articulista, palestrante e autora de obras jurídicas. Instagram: @prof.nataliabarroca
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