Sobre o poder e o machismo na política e na polícia: sobre Felicianos, Bauers, Hellmeisters, seus privilégios e as DORES que provocam em nós, mulheres

27/09/2016

Por Isadora Martinatti Penna e Carla Benitez Martins - 27/09/2016

Um deputado acusado de estupro, um delegado comprometido com um projeto de poder e uma vítima que se torna ré. Para além de comentários sensacionalistas que nortearam a grande maioria das notícias e posicionamentos sobre as denúncias de agressão, assédio e tentativa de estupro que a jovem Patrícia Lelis teria sofrido por parte do deputado federal Marco Feliciano, neste texto procuraremos caracterizar o significado destes fatos tornados públicos desde uma perspectiva política, jurídica crítica e feminista. O que este caso nos diz sobre o poder e o machismo na política e na polícia de nosso país?

A regra é encontrarmos despreparo nos serviços de atendimento à mulher em situação de violência, assim como conservadorismo, culpabilização e revitimização por parte dos órgãos de Justiça, bem como dos veículos massivos de comunicação. O caso em tela é simbólico porque essa condição cotidiana é drasticamente redimensionada, por envolver o deputado federal, pastor da Catedral do Avivamento, na cidade de Orlândia (interior de São Paulo), uma igreja neopentecostal ligada à Assembleia de Deus. A igreja fundada por Marco Feliciano possui seis templos, além de um instituto tecnológico, revista, livraria, editora e gravadora e uma rádio. Portanto, o caso se torna ainda mais preocupante por estarmos lidando com um sujeito influente, um dos principais ícones do conservadorismo brasileiro atual.

Sim, estamos falando de Feliciano, o deputado do PSC (Partido Social Cristão), grande defensor do Projeto da “cura gay”, que propõe um tratamento com o objetivo de curar a homossexualidade, alterando resoluções do Conselho Federal de Psicologia para considerá-la doença. Sim, o mesmo deputado que afirmou, em reunião da Comissão dos Direitos Humanos e Minorias na Câmara (Comissão que esteve sob sua presidência no último período, pasmem!), não haver cultura do estupro no Brasil, mas sim somente estupradores, um “sem número de delinquentes mentais”, logo após a barbárie do estupro coletivo de uma jovem carioca. É, é também parceiro de Eduardo Cunha e foi um dos dez que votou contrariamente à sua cassação. É contra este paladino da moral e dos bons costumes que rondam acusações de violência sexual!

Os fatos que integram a denúncia de tentativa de estupro formalizada por Patrícia deram-se, segundo ela, em 15 de Junho, porém a denúncia foi feita em Agosto, primeiramente, por um grupo de parlamentares mulheres ao Procurador Geral da República, que enviou ao STF o pedido de abertura do inquérito, tornando-se a polícia federal responsável pelas diligências, uma vez que tratamos da apuração de denúncia de crime cuja autoria é imputada a um parlamentar com foro por prerrogativa de função.

Patrícia Lelis alega ter optado, em um primeiro momento, por pedir auxílio ao PSC, o que lhe teria sido negado, afirmando, inclusive, ter recebido oferta de dinheiro pelo seu silêncio por parte de seu presidente, Pastor Everaldo. O Partido se recusa a apoiá-la e, mais do que isso, mantém Feliciano na liderança da bancada na Câmara mesmo durante o escândalo, limitando-se a abrir uma comissão de ética para o caso.

Ademais, salta aos olhos o viés misógino da imprensa brasileira, quando a coletânea de reportagens e notícias acessada nos revela que a abordagem do caso é sempre permeada de descrições sobre a juventude de Patrícia, sua beleza, sua breve carreira como modelo, com a divulgação de fotos mais sensuais de seu trabalho e a pergunta insinuadora do porque a mulher não teria recorrido à polícia logo após o episódio. Não somos Patrícia, mas nos parece evidente que o receio da culpabilização agora em curso, somado à desproporção do poder da estudante e o do pastor e deputado, para além do que nos parece ser uma difícil desconstrução de uma reverência perturbadora dos fiéis em relação a esses pastores, tratados quase que divinamente, podem ser algumas das pistas das dificuldades da mulher em publicizar o caso.

Tanto foi que, ao expor o caso pela primeira vez a jornalistas, sua página da internet, com mais de 200.000 seguidores, saiu misteriosamente do ar. O retorno da página se deu apenas quando foram lançados dois vídeos da jovem negando a agressão e afirmando ter apreço e respeito ao pastor. Curiosamente, a maneira de Patrícia desconstruir os fatos nos vídeos foi acusando “as esquerdas” por essa arapuca.

A divulgação desses vídeos coincide com a saída da jovem de Brasília e sua ida a São Paulo, por uma semana. Patrícia afirma ter gravado tais vídeos sob ameaça de Talma Bauer, assessor e chefe de gabinete de Feliciano, importante personagem que entra em cena nessa trama de poderes e privilégios que traduzem a política hegemônica e as polícias brasileiras.

Em sua versão, dois homens que se apresentam como produtores da rede Record Campinas teriam a convidado para uma entrevista de emprego em São Paulo. Um desses homens seria Émerson Biazon, que, ao contrário, diz que Patrícia o procurou pedindo ajuda para levar seu caso à imprensa em troca de dinheiro. Patrícia afirma que teria sido mantida em cárcere privado nessa ocasião, inclusive gravando os vídeos e desmentindo os fatos imputados contra Marco Feliciano na condição de aprisionada.

A história se torna uma teia complexa de acontecimentos e elementos desconexos, difíceis de serem compreendidos, especialmente através dos filtros das informações divulgadas pela mídia massiva, como foi o nosso caso. O fato é que, no dia 05 de agosto, Patrícia foi à Delegacia em São Paulo, narrando ameaça e sequestro que teria sofrido do assessor de Feliciano, Talma Bauer. Este foi detido no mesmo dia e liberado horas depois de seu depoimento. Em entrevista, o assessor afirma a jornalistas que “as esquerdas estão aí, querendo derrubar todo mundo” (novamente tentando imputar às esquerdas a tentativa de fraudar um escândalo contra o deputado).

Dois dias depois, Patrícia registrou ocorrência do crime de estupro em uma Delegacia da Mulher (mesmo com a denúncia feita pelas parlamentares a legislação exige a representação de Patrícia para dar seguimento às investigações do caso, por isso a importância de seu registro).

Talma Bauer é policial civil aposentado (com um irmão policial na ativa). Sua família está entre os que mais doaram recursos para a campanha do pastor Marco Feliciano. Depois da eleição, torna-se chefe de gabinete e sua filha, Cinthia Brenand Bauer, foi nomeada como assessora. Além deles, existem mais duas pessoas da família Bauer contratadas pelo gabinete de Marco Feliciano. Ao que tudo indica, trata-se de seu fiel escudeiro.

Com base em uma gravação no hall de entrada do hotel, na qual Patrícia e Bauer se cumprimentam, algumas fotos deles em almoço em local externo naquela data e, principalmente, a partir de um laudo psicológico que atestaria mitomania, o Delegado Luis Roberto Faria Hellmeister (outro novo importante personagem entra em cena!) promove o indiciamento de Patrícia por extorsão e denunciação caluniosa, requerendo a decretação de sua prisão preventiva.

A versão oficial seria de que Patrícia teria exigido uma quantia em dinheiro em troca de seu silêncio. Bauer teria feito o pagamento, mas este não teria sido repassado a Patrícia, mas sim a Arthur Mangabeira, que, segundo ela, aproximou-se dizendo ser agente da Abin e negociou dinheiro em seu nome, mas, segundo o delegado, teria sido seu intermediador.

Restam perguntas e dúvidas e pouquíssimos elementos de probabilidade que retirem o assessor do polo passivo da investigação e sejam suficientes para eleger Patrícia como possível autora de um crime. A primeira pergunta, mais ampla e óbvia é: se não houve crime por parte de Feliciano, por que a negociação? E mais, no caso específico do seu indiciamento, estaria ela o extorquindo ou ele tentando comprar o seu silêncio diante do suposto crime cometido por Feliciano? Ela teria iniciado uma negociação financeira ou teria sido coagida?

O mais perturbador dessa decisão categórica do Delegado de inversão dos polos na investigação foi o seu embasamento em laudo de uma psicóloga contratada por uma igreja evangélica que, em duas sessões, afirma a presença, em Patrícia, de uma tendência histriônica e que sofreria de mitomania (necessidade de mentir reiteradamente).

Patrícia registrou outra ocorrência, em 2015, de um estupro que teria sofrido aos 15 anos de idade de um funcionário de uma empresa que havia prestado um serviço em sua casa. Novamente, a grande mídia questiona a demora nesta outra denúncia e vincula a suposta inverdade deste caso para reforçar a “mentira” do atual. Não podemos atestar veracidade dos fatos, mas devemos reforçar que nós, mulheres, estamos expostas a riscos de violência sexual, seja no espaço público ou no doméstico, seja por estranhos ou por nossos parceiros e pessoas próximas afetivamente, durante toda a nossa vida. Os riscos são constantes. Não é admissível que a dor desta mulher se transforme em dúvida dessa maneira. Que lentes machistas são essas dos jornais e da polícia que não conseguem conceber a possível dificuldade de uma adolescente narrar uma violência deste tipo?

Cabe destacar que, segundo o 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, editado em 2014, "apenas 35% das vítimas de estupro costumam relatar o episódio às polícias, segundo pesquisas internacionais". O caso de Patrícia seria explicativo por si só da causa de índices tão baixos, pois "dizer por aí" que foi vítima de estupro não é uma glória para uma mulher, mas sim o enfrentamento do máximo aviltamento a sua dignidade, ainda mais em uma sociedade que busca na vítima a responsabilidade pela violência sofrida.

Na ocasião desta outra ocorrência, foi elaborado um laudo pelo IML, cujo conteúdo se contrapõe ao laudo apresentado no presente inquérito, que descreve um possível comportamento pós-traumático e não se refere, em nenhum momento, a um comportamento mitomaníaco.

Mas, mais do que confrontar os dois laudos, vale destacar que uma prova (ou melhor, no caso, um ato de investigação) pericial, especialmente uma baseada em conhecimento médico ou psicológico, não pode ser colocada como elemento cabal de convicção. Não há hierarquias de provas e um conhecimento científico pode ser limitado ou mesmo manipulado e possuir todas as amarras de qualquer outra prova.

A advogada de Patrícia declara em entrevistas que teria pedido a anulação do inquérito conduzido no 3º DP à Corregedoria da Polícia, inclusive afirmando que possuem fotos do Delegado com testemunhas do caso, demonstrando sua incompatibilidade para a presidência destes atos.

Ademais, em determinado momento do caso, a advogada relata que estaria com dificuldades diante do fato do delegado não querer ouvir Patrícia novamente e, em contexto posterior, de não admitir ouvi-la por carta precatória. Cabe destacar que essa situação poderia significar cerceamento de defesa, uma vez que sua posição teria sido alterada na investigação (incialmente como vítima e depois como suspeita) e ninguém poderia passar da condição de suspeita a indiciada sem interrogatório, que, obviamente, não poderia ser substituído por seu depoimento na condição inicial de vítima. Dentre as tantas facetas inquisitivas do inquérito policial tal como previsto em nosso ordenamento, a ausência de uma nítida definição do que compõe o indiciamento e, mais do que isso, em quais situações seria legítimo, coloca-nos a dúvida se, no caso em tela, poderíamos estar diante da falta de justa causa para o mesmo.

Ademais, o inquérito de São Paulo também inclui, originalmente, o deputado Feliciano como investigado. Por um lado, o advogado de Feliciano afirma que ele não sabia da tentativa de negociação de seu assessor, por outro, a testemunha Emerson afirma que o deputado estava ciente de toda a negociação. Seja como for, ainda que não haja uma regra nítida acerca da atribuição para investigação de pessoas que possuam foro por prerrogativa de função, paira a dúvida se tal inquérito não deveria ter sido conduzido pela polícia federal sob o controle jurisdicional do STF, tal como está ocorrendo com a investigação referente à agressão e tentativa de estupro.

Somos militantes feministas e socialistas e também juristas e nossa compreensão do Direito não parte de uma idílica neutralidade propagada em suas escolas, cujo ensino normativista e tecnicista, pautado em um método lógico-formal e não em um que parta da concretude de uma realidade permeada por profundas injustiças sociais, ignora conflitos sociais e não incorpora a perspectiva de gênero em suas diretrizes curriculares. Portanto, ainda que não atuando formalmente no caso em questão e que, assim, não possamos lidar com as minúcias técnicas do mesmo, o próprio histórico deste delegado nos faz pensar que este possui e defende, com força e muito poder, um lugar de classe.

É este o mesmo delegado que, quando lotado em Franco da Rocha, ganhou holofotes por um conflito com uma jornalista quando da apuração de um crime de trânsito cometido por um ex-árbitro de futebol e comentarista esportivo, que teria atropelado uma mulher, estando visivelmente embriagado. Diante de afirmações de que se trataria de uma “fatalidade” e das perguntas questionadoras e incisivas da jornalista, o Delegado exigiu que a jornalista se retirasse de “sua” delegacia. O episódio foi seguido por uma nota do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, considerando inaceitável sua postura e requerendo sua retratação.

É este o mesmo delegado do caso Verônica Bolina, a travesti espancada na 2ª  DP, no Bom Retiro, quando a mesma estava sob sua responsabilidade. Referindo-se a Verônica no masculino, o delegado afirma ter sido ela agredida por presos, versão questionada e investigada pelo Ministério Público. Diz ainda que o carcereiro foi responsável por parte dos ferimentos por precisar se defender. Em foto dela desfigurada, sem blusa, algemada com os braços pra trás e os pés amarrados identifica-se que o local se trataria do chão do corredor externo da delegacia.

É este o mesmo delegado que, quando da violenta reintegração de posse no Centro Paula Souza, com estudantes feridos e sendo arrastados, afirmou ter sido “tranquila” a operação policial, assim como respondeu não haver necessidade da presença do conselho tutelar na ocasião.

Em que pese seu histórico, revelador de um perfil político de atuação, os elementos acima descritos acerca do caso Patrícia vs Talma Bauer e Feliciano nos fazem questionar se o princípio do delegado natural e sua inamovibilidade poderia, no caso em questão, ser confrontado e superado diante de um possível abuso de autoridade, ao obstaculizar uma investigação, cercear defesa e negar possíveis direitos. Neste ano tivemos outro simbólico episódio nesse mesmo sentido, no caso da jovem vitimada por um estupro coletivo perpetrado por 33 homens em junho no Rio de Janeiro, no qual o Delegado foi substituído após ter conduzido de maneira tendenciosa e desrespeitosa a oitiva da agredida, bem como conceder entrevistas revitimizadoras. Feita a troca de comando da investigação para uma Delegada efetivamente especializada, o inquérito não só chegou à comprovação do crime e seus responsáveis, como desnudou a lógica machista e misógina da atuação do primeiro profissional designado para o caso.

Para além da reflexão e publicização dos nossos questionamentos sobre este caso-labirinto, pensamos que, para nós lutadoras e lutadores populares, bem como aos construtores críticos do Direito, a situação pede que reforcemos duas convicções:

1. Precisamos falar sobre gênero nas escolas, nas universidades e, aqui especialmente, no ensino jurídico e na atuação dos agentes dos sistemas de segurança e de justiça. É preciso, por exemplo, que os operadores do Direito e todos aqueles que trabalham e lidam com situações de violência contra a mulher tenham formação e sensibilidade o suficiente para lidar profissional e qualitativamente com a situação, não produzindo violência institucional e reproduzindo dor nessas mulheres (em todas nós, mulheres).

2. Precisamos reinventar e reencantar a política, combatendo figuras representativas do conservadorismo e construindo alternativas populares de representação, que expressem e defendam as pautas das lutas cotidianas. O avanço do conservadorismo é uma latente disputa de consciências, para sustentar um projeto hegemônico de poder, pelo consenso ideológico e pela força. Por isso, nossa resposta organizada é imprescindível e urgente.

A nossa luta é todo dia!


isadora-martinatti-penna. . Isadora Martinatti Penna é Bacharela em Direito pela PUC São Paulo. Advogada feminista e militante do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). . .


carla-benitez-martins. . Carla Benitez Martins é Bacharela em Direito pela UNESP. Mestra em Direito pela UFSC e Doutoranda em Sociologia pela UFG. Professora na UFG, Regional Jataí. . .

Imagem Ilustrativa do Post: Out From The Shadows // Foto de: purplevintagespaceprincess // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/62732965@N04/5734803951

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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