Sobre o mito e a maldição do «Eu» (Parte 1)

16/10/2015

Por Atahualpa Fernandez - 16/10/2015

“Me gusta ese momento en que quiebro el ego de mi rival.” Bobby Fischer

Que todo estado psicológico vai associado a um estado biológico, que o cérebro e a mente são inseparáveis, que a mente humana não é uma unidade, que não há um só condutor ao volante e que está constituída por múltiplas subunidades é uma ideia já veterana que foi repetida por muitos autores de muitas disciplinas, desde filósofos a psicólogos e cientistas. Resulta ser que, no que se refere à natureza de nossa identidade pessoal e a maneira em que seguimos sendo a mesma pessoa através do tempo, a consciência consiste em um remoinho de eventos distribuídos ao largo do cérebro. Estes eventos competem por atenção e, na medida em que um processo se destaca mais que outros, o cérebro racionaliza os resultados depois do sucedido e confecciona a impressão de que um «eu» único esteve a cargo todo o tempo.

Estamos tão familiarizados e satisfeitos com a experiência de nosso «eu» como um ser único e permanente que a pergunta sobre se realmente esse «eu» existe (e quantos) parece mais uma ocupação de algum retrasado mental. Não é difícil entender que de vez em quando nos enreda o elementar, que não entendemos coisas que se explicam muito simplesmente, e não as entendemos porque nos custa assumir essa simplicidade e desconfiamos das evidências (especialmente as contraintuitivas). Pensamos que algo não quadra, que tem que haver algo mais, que a realidade há de ser mais complexa, profunda e misteriosa, que algum desconhecimento por nossa parte nos impede calibrar um fato como merece, em toda sua intricada, enigmática e insondável magnitude. Resultado: às vezes nos deixamos narcotizar com a fascinação gerada por uma suposta «inescrutabilidade», aceitando, até à indiferença, a comoção de estar saciado com «não entender».

Nada obstante, estou convencido de que se o amável leitor (a) já advertiu alguns seres humanos que, segundo as circunstâncias, se mostram felizes ou tristes, introvertidos ou extrovertidos, generosos ou mesquinhos, ambiciosos ou preguiçosos, humildes ou arrogantes, será capaz de compreender - ou ao menos poderá intuir –  o que estou tratando. Vamos por passos.

Tudo o que sabemos sobre o mundo o sabemos por nosso cérebro: gera as cores e as imagens, os olores e os sabores, a dor e o prazer, as emoções e os sentimentos, as representações, juízos e ações, e qualquer coisa que se ponha em seu ponto de mira é observada, estudada, analisada, valorada e armazenada. Tudo o que pensamos, fazemos ou deixamos de fazer sucede em e depende de nosso cérebro. A estrutura de este ser vivo desperto, atento, vigilante, rápido, “plástico”, flexível, incansável e inesgotável, dia e noite ativo, determina nossas possibilidades, nossas limitações e nosso caráter. Se em algum órgão se manifesta a natureza humana em todo seu esplendor é sem dúvida em nosso volumoso cérebro: «Somos nuestro cerebro. Punto.» (S. Martínez-Conde).

Uma dessas representações, pensamentos ou sensações é a ideia que temos de «nós mesmos». Como surge é até hoje um segredo que parece que custa revelar a nosso cérebro: Tu existes, certo? Então demonstra. Como bilhões de neurônios tagarelando criam o conhecimento — ou a ilusão — de que estás aqui? (S. Pinker). Por que - como indicou Max Stirner – “para mim não há nada mais importante que «eu»”? Está bem claro que de nosso «eu» são responsáveis diferentes áreas em nossa cabeça[1]. Fecundam-se umas a outras, se influem, complementam, condicionam e refletem. E, ao menos em toda pessoa sana, ao final aparece um «eu». Não podem equivocar-se «siete mil millones de personas en el mundo que se dicen “yo” a sí mismas. El “yo” es una realidad sentida». (R. D. Precht)

De fato, a surpreendente conclusão da ciência da consciência é que essa sensação intuitiva que temos, de que existe um «eu» diretor e único que se senta no centro de controle do cérebro, observando as telas de nossos sentidos e pressionando os botões de nossos músculos, é uma ilusão criada pela perspectiva [Nota bene: a palavra ilusão não significa que não exista; “existe como fruto de la actividad cerebral que al parecer genera esa ilusión en nuestro propio beneficio” (S. Blackmore); e que o «eu» unificado é uma construção cerebral o demonstram os experimentos realizados por Roger Sperry (Nobel 1981) e Michael Gazzaniga em sujeitos com cérebro cindido ou dividido].

Justamente isso: somente uma ilusão, uma realidade sentida, construída por nosso cérebro. Por mais inverossímil que pareça, não existe um «eu» como uma entidade unificada, estática e imutável em nosso interior (algo como uma substância), senão um conjunto de capacidades multidimensionais variáveis e dependentes de condições cambiantes, incluídas as experiências e/ou interações que o corpo (cérebro-mente) tem com o mundo. Nosso «eu», “nuestro mí mismo, nuestra autoimagen y nuestro sentimiento de autovalía solo existen como un abracadabra en el cerebro” (R. D. Precht). E o que outros percebem de nós é somente um envoltório: nosso corpo, nossas miradas, movimentos e palavras. Nunca, jamais, nosso «eu».[2]

O que fazem os demais é formar-se uma imagem própria de nosso «eu». Às vezes nos reconhecemos nas descrições que outros fazem acerca de nós; às vezes menos e às vezes nada em absoluto. Mas um standard objetivo, uma instância imparcial ou um «eu» concreto, que pudera fazer de essência ou servir como modelo, não há[3]. Pois, não nos vemos também nós mesmos de um momento a outro diferentes ou experimentamos câmbios frequentes de personalidade e comportamento? Não dependem sempre nossa autoimagem, nosso sentimento de autovalia e nossos câmbios cotidianos de conduta de situações e estados de ânimo? Não é precisamente por isto pelo que atuamos, assumimos distintos papéis, vivemos à altura de nossas expectativas e, desse modo, nos reinventamos continuamente? Por acaso o que chamamos «stress» não é um “simples” conflito ou um desequilíbrio que com frequência tem lugar entre nossos discrepantes desejos e nossas possibilidades, ou melhor, entre nossas contraditórias emoções, nossos pensamentos discordantes e nossa débil razão? Por que, em termos subjetivos, parece existir um imutável núcleo ou “centro de gravidade narrativo” (D. Dennet) responsável por nossos pensamentos e experiências? Como é possível que sem estar divididos consigamos conviver com nossos dissociados e às vezes contraditórios (entre si) «eus»? E já que estamos: Podemos afirmar categoricamente que existe um «eu» autêntico?

Não, não podemos, a não ser que abracemos cega e insensatamente algumas das ideias da larga lista de «ciências vudus» em voga no momento (ou de uma “alma imortal” como um empréstimo divino). Nosso «eu» é, definitivamente, um material muito volátil: não é uma unidade invariável, determinada e claramente delimitada. Já seja projetado por nós mesmos ou por outros, o «eu» não é uma entidade real, senão uma ideia que nos fazemos: uma função do cérebro; “um estado funcional do cérebro e nada mais, nem nada menos” (R. L. Llinás); um complexo mecanismo eletroquímico, uma ideia construída pela atividade fisiológica dos tecidos cerebrais como todas as demais ideias, “sin ninguna connotación especial más allá de cómo lo hace con otras ideas” (F. Mora). David Hume e Ernst Mach tinham toda a razão: “¡El yo es insalvable!... ¡El yo es uma ilusión!”.

A causa disso não é difícil de encontrar. Na história da evolução do ser humano nunca foi necessário um «eu» fixo, inamovível e substancial. De modo que não se produziu algo assim. Como tampouco nenhum sentido de centro do «eu» ou de elemento material ou espiritual com sede no cérebro. Claro que nossa consciência é (quiçá) o que há de mais fascinante no reino animal. Mas para sobreviver na savana, para competir com êxito na complexidade de um estilo de vida essencialmente social, o realmente importante para nossa espécie era aprender[4] a entender mais ou menos o que pensava, construir modelos da mente e poder predizer a conduta do inimigo mais formidável, o mais imprevisível e inteligente que encontrou: o próprio ser humano.

Não estou negando em modo algum a importância, a necessidade e/ou utilidade de crer que há um único «eu» no interior da mente, “un ego discreto que se agazape en nuestro interior a la manera de un Minotauro en el laberinto del cerebro” (S. Harris). O que digo é que, dada nossa peculiar capacidade de gerar pensamentos e representações que nos superam sensivelmente e de conceber coisas que de fato não existem, nosso sentido do «eu» é uma construção que tem suas raízes nas narrativas baixo as quais opera nosso cérebro, narrativas que servem para que nos movamos pela vida com a convicção necessária para defender e/ou modificar nossos pontos de vista, nossos sentimentos, nossos desejos e nossas condutas, a fim de acomodar-nos às circunstâncias em que nos encontramos.

O mito é a existência de um «eu» separável da função cerebral (R. L. Llinás): somos os únicos fabricantes dos significados e do sentido (ou «sem-sentido») que damos à nossa ideia do «eu» - tampouco caberia esperar outra coisa de uma espécie cujo «ego» luta incessante e encarniçadamente por afirmar e defender sua existência, sua autoimagem, sua autoestima, sua honra e suas idiossincrasias.[5]

Mas há algo mais...


 

Notas e Referências:

[1] Vilayanur Ramachandran, por exemplo, crê que o «eu» não é uma propriedade holística de todo o cérebro, senão que surge da atividade de séries de circuitos que estão distribuídos por todo o cérebro e interconectados entre si.

[2] Nas palavras do poeta William Butler Yates, dito com tom certamente dramático: “La tragedia de la relación sexual es la perpetua virginidad del alma”.

[3] Nosso círculo de amigos nos vê de outro modo que nossos colegas de trabalho ou nossos vizinhos. Também nos desagregamos em muitos papéis diferentes. Meu currículo já me desglosa em muitas categorias distintas (procurador, professor, investigador, etc.) e esta é uma seleção muito reduzida. Como ser humano estou neste mundo com apuros e necessidades muito diferentes que como “colunista” ou “escritor”; e meus filhos me percebem de modo distinto que meus amigos, que a gente em uma sala de aula ou as pessoas que leem meus artigos. Em outras palavras: os conhecimentos, limitados em cada caso, de outros sobre nosso «eu» - que se amontoam sem chegar quase nunca a formar uma imagem completa - “confluyen pocas veces en uno. El peligro de un balance total es muy escaso” (H. Popitz). E posto que o risco de que outras pessoas nos conheçam e se adentrem em nós é mínimo, podemos jogar diferentes roles sociais ou morais, adornar nossa imagem  e permitir-nos (consciente ou inconscientemente) mais contradições. Depois de tudo, a onisciência, para o bem ou para o mal, não é possível nem desejável na vida diária, porque nosso «eu» não pode suportar estar exposto a uma perfeita e absoluta transparência de comportamento sem parecer ridículo, necessita algo de penumbra: “¿Quiere usted que su mujer y sus hijos le conozcan tal como es y le honren en su justo valor? Si es así, amigo mío, usted vivirá en una casa triste y frío será su dulce hogar (...) ¿No te creerás que eres como les pareces?” (W. M. Thackeray). Voltarei a esta questão mais adiante.

[4] Somos uma espécie maldita que tem que aprender tudo, inclusive a amar e a fazer amor.

[5] Por isso, quando alguém me diz seriamente: "Sei o que sou, o que quero e o que recordo", me encanta pensar: "Não, não o sabes". Não temos ideia de “por que” fazemos o que fazemos (posto que carecemos de acesso integral aos processos inconscientes que determinam nossas ações e decisões, e tratamos de inventar razões plausíveis depois do fato) e nem sequer podemos confiar em nossos recordos (uma vez que são reconstruídos cada vez que acedemos a eles, e podem chegar a deformar-se ou contaminar-se com outros recordos). Grande parte do que percebemos, recordamos, pensamos ou processamos o inventa alegremente nosso cérebro, modificando as instantâneas da realidade como se dispusera de um sofisticado PhotoShop. Nossas memórias (indispensáveis para eleger, interpretar e decidir) em realidade são reconstruções e não autênticos reflexos do que aconteceu, nossas interpretações do mundo distam muito de serem impecáveis e nossa razão, com seus processos de eleição e decisão, não funciona sem a força dos mecanismos da regulação biológica, da que as emoções e os senti­mentos são expressão. Por dizê-lo de alguma maneira mais simples: nossa percepção e nossa memória tomam do mundo circundante aspectos significativos e os transformam, armazenam, evocam, transformam de novo e voltam a armazenar de forma reiterada. O fato é que não sabemos grande parte do que cremos saber. Simplesmente não entendemos.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España.


Imagem Ilustrativa do Post: Eu Sou // Foto de: jeronimo sanz // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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