Sobre interferências políticas e jurídicas: o (des)caminho da jurisdição constitucional na concessão liminar no MS. n. 37097/DF

08/05/2020

Coluna: Constituição e Democracia / Coordenadores:  Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia, Diogo Bacha e Silva, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

Certamente, é um feito imenso conseguir que as mídias, tradicionais e sociais, deixem de noticiar a pandemia pelo coronavírus e passem a cobrir o pedido de demissão do ex-Ministro da Justiça Sérgio Moro e, por conseguinte, a entrevista coletiva para esclarecimentos acerca de tal pedido realizados pelo Presidente Bolsonaro.

Não bastasse, após a nomeação do substituto para a pasta, o Supremo Tribunal Federal, por meio de uma decisão liminar monocrática no MS. n. 37.097/DF do Min. Alexandre Moraes, suspende a nomeação de Alexandre Ramagem para o cargo de Diretor-Geral da Polícia Federal.

Na fundamentação, o Min. Alexandre de Moraes aduz que o regime presidencialista, embora preveja a concentração de poderes em torno da figura do Presidente da República, mormente na chefia de governo através da escolha dos ocupantes dos Ministérios (e, no caso, da Chefia da Polícia Federal), não está imune ao respeito das normas constitucionais e do império da legalidade e da moralidade. Com base nesse ideário, passa a defender, por óbvio, a possibilidade do controle jurisdicional da Administração Pública quanto à eventual discordância dos atos em relação às normas constitucionais. Assim, conclui que o “Poder Judiciário, ao exercer o controle jurisdicional, não se restringirá ao exame estrito da legalidade do ato administrativo, devendo entender por legalidade ou legitimidade não só a conformação do ato com a lei, como também com a moral administrativa e com o interesse coletivo”.[1]

Ora, em seu fundamento, o Ministro bem elucida que cabe ao Poder Judiciário examinar, mesmo em atos discricionários, as hipóteses fáticas para controlar eventual desvio das finalidades exigidas pela legalidade. Assim, sua conclusão é de que cabe ao Supremo Tribunal Federal analisar se, na nomeação de agente público, o Presidente da República atingiu a opção conveniente e oportuna diante dos ditames traçados pela lei, pela Constituição e pela moralidade administrativa.

No caso concreto e constatando os requisitos da probabilidade do direito alegado, o Ministro Alexandre de Moraes entende que a nomeação do Sr. Alexandre Ramagem foi realizada sem a observância da impessoalidade, moralidade e interesse público. Para tal, o Ministro alega o fato notório de “que, em entrevista coletiva na última sexta-feira, dia 24/4/2020, o ainda Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Fernando Moro, afirmou expressa e textualmente que o Presidente da República informou-lhe da futura nomeação do delegado federal Alexandre Ramagem para a Diretoria da Polícia Federal, para que pudesse ter ‘interferência política’ na Instituição, no sentido de ‘ter uma pessoa do contato pessoal dele’, ‘que pudesse ligar, colher informações, colher relatórios de inteligência’”[2].

Assevera, ainda, que o próprio Presidente da República teria confirmado a interferência política, também em entrevista política, na qual teria pedido relatório da Polícia Federal. Em virtude de tais declarações, portanto, foi pedida a instauração de investigação criminal da conduta do Presidente da República, deferido pelo próprio STF.

Por último, aduz que seria também notória, posto que divulgado no Jornal da Globo, a troca de mensagens entre o Presidente da República e o ex-Ministro Sérgio Moro, além de conversa com a Deputada Carla Zambelli em que esta teria pedido ao ex-Ministro que aceitasse a troca do Diretor-Geral da Polícia Federal para uma futura nomeação ao Supremo Tribunal Federal.

Essa plausibilidade conjugada com eventual irreparabilidade do dano na nomeação do futuro Diretor-Geral da Polícia levou ao deferimento da liminar com o intuito de suspensão da nomeação e posse do mesmo.

No entanto, há questões substanciais no tratamento jurídico da matéria que o Ministro Alexandre de Moraes passa ao largo. Em primeiro lugar, devemos ter em mente que o Mandado de Segurança Coletivo foi impetrado pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT. O entendimento manifestado na decisão é a de que o Partido Político teria legitimidade além da proteção dos interesses dos direitos coletivos ou individuais homogêneos de seus filiados, abarcando também direitos difusos.

Nem é preciso dizer que a legitimidade ad causam é verificada em torno da discussão jurídica de direito material deduzida em juízo. A interpretação que faz o Min. Alexandre de Moraes é ampliada para fazer com que o Mandado de Segurança impetrado pelo Partido Político pudesse servir como mecanismo processual semelhante à Ação Popular ou à Ação Civil Pública, já que voltado contra todo e qualquer ato de autoridade pública.

Veja-se que a regulamentação do art. 21 da Lei 12.016/09 deve ser realizada de acordo com a Constituição Federal que prevê o mandado de segurança coletivo no art. 5º, inc. LXX nos seguintes moldes:

“LXX - o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:

a) partido político com representação no Congresso Nacional;

b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados;”

Embora se deva reconhecer que o tratamento em dois dispositivos queira significar que a legitimação no mandado de segurança coletivo tenha suas nuances, a interpretação abrangente trazida pelo Min. Alexandre de Moraes não tem qualquer sentido na dinâmica processual da tutela coletiva de direitos ou de direitos coletivos.

A redação do art. 21, da Lei 12.016/09, não inova na sistemática processual que, em sua primeira parte, prevê a legitimidade dos partidos políticos para a impetração de Mandado de Segurança coletivo “na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária”. Uma interpretação restritiva do dispositivo, por óbvio, é aquela que prevê apenas a utilização do mandado de segurança coletivo para a proteção de seus membros e afiliados.[3] Essa interpretação, na verdade, reduziria o partido político a um conselho classista ou associativo, o que desnaturaria sua natureza jurídica.

Contudo, a interpretação abrangente constitucionalmente adequada e de acordo com a sistemática da proteção dos direitos coletivos foi defendida pelo falecido Ministro Teori Zavascki que aduzia: “numa interpretação compreensiva e abrangente, não se pode considerar excluída dessa tutela os direitos transinvididuais (coletivos e difusos acrescentamos), desde que, obviamente, se trate de direitos líquidos e certos e que estejam presentes os pressupostos de legitimação, adiante referidos, nomeadamente no que diz respeito ao indispensável elo de pertinência entre o direito tutelado e os fins institucionais do partido político do impetrante”.[4]

Deste modo, deve haver um vínculo jurídico entre a tutela de direito material discutida em juízo e a finalidade institucional do partido político. In casu, certamente não é finalidade institucional do PDT bloquear as nomeações do Chefe do Executivo Federal. Ou se atua na proteção dos direitos coletivos de seus afiliados ou, então, se trata de direito individual e, assim, necessária a demonstração da ofensa a direito líquido e certo do partido.

Cabe lembrar que o parágrafo único do artigo 21, da Lei do Mandado de Segurança, Lei 12.016/09, assim determina:

“Parágrafo único. Os direitos protegidos pelo mandado de segurança coletivo podem ser:

I - coletivos, assim entendidos, para efeito desta Lei, os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo ou categoria de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica básica;

II - individuais homogêneos, assim entendidos, para efeito desta Lei, os decorrentes de origem comum e da atividade ou situação específica da totalidade ou de parte dos associados ou membros do impetrante.”

Assim, fica ainda mais claro que cabe mandado de segurança coletivo apenas para a garantia de direitos coletivos em sentido estrito e direitos individuais homogêneos em razão dos efeitos pessoais da coisa julgada, estabelecidos no caput do artigo 22, da Lei 12.016/09:

“Art. 22. No mandado de segurança coletivo, a sentença fará coisa julgada limitadamente aos membros do grupo ou categoria substituídos pelo impetrante.”

Doutrina e Jurisprudência, ainda que com críticas, sempre entenderam que não cabe Mandado de Segurança Coletivo para a defesa de direitos difusos[5]; por isso, inclusive, o Mandado de Segurança não substitui a Ação Popular (Súmula n. 101 do STF).

Além do mais, qual seria o interesse de agir para que terceiro estranho à relação jurídica, especialmente uma pessoa jurídica, obtivesse a segurança em relação à não nomeação do agente? Isto é, qual a utilidade-necessidade que, pragmaticamente poderia ser entendida como um benefício jurídico, o Partido Político obtém com essa impetração? Obviamente, essa questão não foi enfrentada na decisão monocrática, mas que precisaria de uma resposta jurídica adequada.

Quanto ao próprio cabimento do Mandado de Segurança no caso concreto, um silêncio sepulcral na decisão monocrática. O enfrentamento dessas questões faz parte de uma resposta correta no sentido dworkiniano. Uma decisão jurisdicional coerente e com o fit (ajuste ou adequação ao direito e ao caso concreto), para Dworkin, é aquela que não só tenha uma resposta baseada no capítulo jurídico anterior de precedentes, mas que aplica o direito de modo adequado às questões fáticas apresentadas.

O Mandado de Segurança tem seu cabimento feito por exclusão, isto é, o amparo a direito líquido e certo quando não couber habeas corpus ou habeas data. Deste modo, é central entender a amplitude do conceito de direito líquido e certo como conceito processual. Se, pois, o direito líquido e certo tem o sentido tradicionalmente invocado de que as provas das alegações devam ser pré-constituídas que, por sua clareza, não comportam qualquer discussão, fática ou jurídica,[6] e independe de qualquer dilação probatória, como entender que, no caso, foi cabível o mandado de segurança, quando o próprio Supremo Tribunal Federal determinou a instauração de investigação criminal para elucidar os fatos (Inq. n. 4831)? O próprio STF considera, portanto, necessário o aprofundamento probatório dos fatos narrados relativos ao caso em questão. Se ainda serão produzidas as provas, o que se espera, então: que elas sejam juntadas ao longo da tramitação da ação? Aí sim teríamos uma grande inovação processual, pois seria o primeiro caso de Mandado de Segurança com fase instrutória. E nem se diga que a decisão dada foi liminar – o que comportaria juízo de verossimilhança –; ora, o cabimento mesmo da ação está prejudicado pela ausência de uma de suas condições especiais que é a apresentação de prova pré-constituída.

Ademais, meras declarações em entrevistas servem como provas pré-constituídas? Matéria jornalística, mesmo que com ampla repercussão, serviria como prova pré-constituída? Troca de mensagens por Whatsapp serviria do mesmo modo?

Admitir o cabimento do mandado de segurança na hipótese tratada pela decisão monocrática abre mão de todos os esforços de uma construção doutrinária e jurisprudencial do conceito de direito e líquido que advém, ao menos, da Constituição de 1934. Tratar meras declarações e matérias jornalísticas como provas pré-constituídas é uma manipulação semântica que acarreta uma insegurança jurídica extraordinária, além de ofender de modo frontal a estrutura do writ na Constituição de 1988.

Veja-se que, mesmo após a divulgação do depoimento prestado por Sérgio Moro no âmbito da investigação criminal[7], não teria sido apresentada qualquer prova material acerca da interferência política do Presidente Bolsonaro. Isso apenas reforça que, no momento da decisão liminar, os pressupostos processuais só existiam em uma vontade de poder do Ministro Alexandre de Moraes e não na vontade de/da Constituição que deve ser em uma jurisdição constitucional. .[8]

Embora não se negue que pode o Poder Judiciário realizar o controle de constitucionalidade dos atos do Poder Executivo, em especial quando houver desvio de finalidade, para dizer com Dworkin o valor do Estado Democrático de Direito que nos une é a responsabilidade na interpretação correta da Constituição (e da legislação).

Assim, não havendo uma resposta jurídica adequada já que, no caso concreto, não houve prova pré-constituída, o meio processual não é o correto. Porque não há dilação probatória em Mandado de Segurança, só nos resta, com certeza, concordar com Lenio Streck, no sentido de que a decisão foi tomada por um sentimento moral a priori do julgador de que a política é ruim.[9] Aliás, o §2º do artigo 22 da Lei do Mandado de Segurança, Lei 12.016/09, determina o seguinte:

“§2o No mandado de segurança coletivo, a liminar só poderá ser concedida após a audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público, que deverá se pronunciar no prazo de 72 (setenta e duas) horas.”

O que não foi respeitado nessa decisão monocrática.

Ora, ninguém está acima da lei, nem mesmo o Supremo Tribunal Federal. É inadmissível a violação do devido processo legal. Eis a nossa responsabilidade enquanto cidadãos livres e iguais na construção de uma cidadania republicana.

 

Notas e Referências

[1] Decisão disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/MSRamagem.pdf, acesso em 06 de maio de 2020.

[2] Decisão disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/MSRamagem.pdf, acesso em 06 de maio de 2020.

[3] BUENO, Cassio Scarpinella. A nova Lei do Mandado de Segurança. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 123.

[4] ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 213.

[5] “A índole sumária do writ coletivo compatibiliza-se com a prova documental, a fim de adequar-se à liquidez e certeza do direito, suscetível de reconhecimento por parte do julgador com algo existente, inconcusso, alheio a qualquer investigação probatória que não seja a produzida, liminarmente, por via de documentos. Cremos que os interesses difusos, por serem espalhados “desorganizados”, muito amplos, fluidos e amorfos, não podem ser comprovados, documentalmente, na petição inicial” (BULOS, Uadi L. Mandado de Segurança Coletivo, em defesa dos partidos políticos, associações, sindicatos, entidades de classe. São Paulo: RT, 1996, p. 65). Nesse sentido já se manifestou, e.g., o STF em oportunidade anterior: “8. A Lei nº 12.016/2009 parece ter adotado limites razoáveis, compatíveis com a Constituição, para o cabimento de mandado de segurança coletivo. A restrição dessa modalidade de ação para a tutela de direitos coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos evita que o mandado de segurança seja instrumentalizado pelos partidos políticos, transformando-se em indesejável veículo de judicialização excessiva de questões governamentais e parlamentares, as quais poderiam ser facilmente enquadradas como direitos difusos da sociedade brasileira e atreladas às finalidades de qualquer agremiação política. 9. A interferência excessiva do direito e do Poder Judiciário na política, ainda que iniciada ou fomentada pela atuação dos próprios partidos políticos, pode acarretar prejuízo à separação dos poderes e, em última análise, ao próprio funcionamento da democracia. Agrega-se ao dia-a-dia político um elemento de insegurança, consistente em saber como o Judiciário se pronunciará sobre os mais variados atos praticados pelo Executivo e pelo Legislativo, inclusive aqueles eminentemente internos, como os atos de nomeação e exoneração de Ministro de Estado” (MS. n. 34.196, decisão monocrática do Relator, Min. Luís R. Barroso). O Min. lembra, inclusive, que essa era, até então, a jurisprudência do STF sobre o tema, como em decidido em RE. n. 196.184.

[6] Vejam-se as clássicas lições de BARBI, Celso Agrícola. Do Mandado de Segurança. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 48-54. Em especial, p. 53: “Como se vê, o conceito de direito líquido e certo é tipicamente processual, pois atende ao modo de ser do direito subjetivo no processo: a circunstância de um determinado direito subjetivo realmente existir não lhe dá a caracterização de liquidez e certeza; esta só lhe é atribuída se os fatos em que se fundar puderem ser provados de forma incontestável, certa, no processo. E isto normalmente só se dá quando a prova for documental, pois é adequada a uma demonstração imediata e segura dos fatos”. Nesse sentido, MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 29ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 36-37; BUZAID, Alfredo. Do Mandado de Segurança. São Paulo: Saraiva, 1989.

[7] Depoimento disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/05/leia-a-integra-do-depoimento-de-sergio-moro-a-policia-federal.ghtml, acesso em 06 de maio de 2020.

[8] Nesse sentido, ver o artigo: STRECK, Lenio. Moro e o paradoxo: todos os cretenses são mentirosos! Logo...Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-06/streck-moro-paradoxo-todos-cretenses-sao-mentirosos-logo, acesso em 06 de maio de 2020.

[9] Sobre isso, Lenio Streck é certeiro na necessidade de diferença entre moral individual e direito: “Eis aí, de novo, a diferença entre Direito e moral. Entre a racionalidade jurídica e os argumentos morais. Ou a moralização do Direito. Não se pode olhar a política como ruim a priori” (STRECK, Lenio. Judiciário decide quem pode ser ministro ou diretor-geral da PF? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-29/streck-judiciario-decide-quem-ministro-ou-diretor-pf, acesso em 06 de maio de 2020).

 

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