Sobre iguais, desiguais e direito penal: um diálogo com o Min. Roberto Barroso

19/04/2018

 

“Combata a pobreza, mate um mendigo”, grafitou um mestre do humor negro num muro em La Paz.[1]O que essa sátira tem a ver com o voto do Min. Roberto Barroso? Aparentemente nada. Mas só aparentemente. [2]

Uma realidade social que o grafiteiro boliviano muito bem satirizou naquele muro é a mesma realidade do direito penal brasileiro. Ele é desigual, e funcionalmente adequado para destroçar a vida dos pobres. São os pobres que compõem a expressiva massa carcerária e, em geral, a clientela penal.[3]Enquanto sonegador de impostos pode acabar com a ação penal pagando o tributo devido, algum desafortunado que empreender três ou quatro pequenos furtos vai para a prisão, porque faz do crime um meio de vida.[4]

Enquanto um falsário qualquer deve responder pelo estelionato praticado contra o INSS ou alguém que, eventualmente, receba um benefício previdenciário após a morte do titular, vai responder pelo crime do art. 171, § 3º, CP, mesmo que o prejuízo seja em valores insignificantes para o orçamento previdenciário, aquele que sonega contribuição previdenciária poderá se beneficiar do princípio da insignificância para valores de até R$ 10.000,00 (R$ 20.000,00 na interpretação de alguns). No caso do estelionato, dizem em julgados, o crime é cometido contra a previdência que concretiza um direito social estabelecido constitucionalmente. E na sonegação previdenciária, o crime é cometido contra quem?!

Essas são mostras do direito penal que o Min. Barroso quer tornar menos desigual. A proposta dele? É simples. Manter tudo como está, exceto por uma modificação pontual, que nada tem a ver com a seletividade do sistema penal em si. Ele pretende somente que as penas sejam executadas já a partir do julgamento de 2º Grau. E a razão que encontra é justamente a igualdade, esse princípio fundamental da democracia.

A igualdade se concretizaria da seguinte forma: como os ricos, em geral, tem condições financeiras de contratar bons advogados e levar as discussões judiciais aos tribunais em Brasília, acabam por ser beneficiados pelo efeito suspensivo que se dá aos recursos nas instâncias extraordinárias.[5]Por sua vez, os pobres, que dificilmente conseguem estender a discussão para além do julgamento de 2º Grau, acabam por cumprir a pena tão logo tenha o processo transitado em julgado, o que ocorre fatalmente após a decisão da apelação. Portanto, o sistema recursal se transformou em mais um palco de desigualdades entre ricos e pobres.

O argumento é sedutor à primeira vista, mas não resiste a um olhar cauteloso. Não é o sistema recursal penal que é desigual. É o direito penal que é seletivo, arbitrário e está voltado para a pobreza.

O espetáculo proporcionado por algumas operações policiais recentes parece incutir na concepção de alguns a ideia de que todos são iguais perante a lei penal (lembre-se: um dos princípios da ideologia da defesa social). É, em síntese, como disse Anatole France, “a majestosa igualdade das leis, que proíbe tanto o rico como o pobre de dormir sob as pontes, de mendigar nas ruas e de roubar pão”.

Não foi o fato de algumas legislações tratarem da criminalidade econômica que tornou o sistema mais igualitário. Pelo contrário, historicamente foram essas pequenas incursões nos estratos mais abastados que legitimaram o direito penal como um todo, olvidando o caráter seletivo e o direcionamento contra os pobres.[6]

Por isso, soa incoerente o fundamento encontrado pelo Ministro para tornar o sistema menos desigual. A liberdade a todos, antes do trânsito em julgado, exceto por necessidades cautelares, não torna o sistema mais igualitário? Mesmo que se admitisse o argumento de que os pobres, em regra, não recorrem a partir da decisão de apelação, isso justificaria prejudicar todos os pobres (para ficar só nos pobres) que conseguem recorrer de alguma forma, seja com o apoio hoje festejado da advocacia pública, ou mesmo pela advocacia particular?

Contraditoriamente, a pretensão de igualdade do Ministro ocorre com a supressão de direitos e não com a garantia da presunção de inocência a todos aqueles que forem processados criminalmente. Em síntese, antes de garantir a presunção de inocência nos exatos limites do texto constitucional é melhor suprimi-la de todos, indistintamente?! Por que não exigir do Estado a garantia de assistência jurídica aos pobres por meio da efetiva implantação das defensorias públicas?[7]

O raciocínio sofre de uma série de debilidades, a começar pelo fato de que a medida não evitará a interposição de recursos pelos estratos mais favorecidos economicamente. Manterá as mesmas possibilidades de manuseio dos instrumentos recursais e da possibilidade de reunião em gabinete, entrega de memorias pessoais aos Ministros, e mantendo ainda a previsão do efeito suspensivo ao recurso extraordinário e ao especial (art. 1.029, §5º NCPC).

Outra fragilidade é que nega aos ricos, por serem ricos, o direito de recorrer em liberdade quando a própria CF garante a presunção de inocência que é proteção da liberdade do cidadão (rico, pobre ou classe média), um princípio civilizatório, para usar a expressão de Ferrajoli.[8]

Mas o fundamental e mais deletério reflexo dessa proposta é que, ao reduzir a garantia da presunção de inocência sob um retórico pretexto de justiça, o direito penal, seletivo por excelência, avançará justamente sobre os estratos mais vulneráveis às agências policiais.[9]

No Brasil, a democracia processual penal não é realizada para o Min. Barroso com a garantia igualitária de direitos, mas com a relativização ou supressão deles. Ocorre, todavia, que a criminalização secundária é sabidamente seletiva e pega determinadas classes muito mais do que outras. Portanto, não há democracia penal nesse aspecto. E a perspectiva de limitação do poder punitivo por meio do respeito incondicional às garantias constitucionais (o que parte da comunidade convencionou chamar jocosamente de “garantismo”) é uma fórmula de enfrentamento dessas iniqüidades. Minimizar os danos causados pelo direito penal.

Se a solução a que o Min. Barroso chegou é diversa, deve-se ao fato de que sua expectativa em relação ao direito penal é distinta, adotando, no limite, um discurso com contornos até moralizantes. Em todo caso, mesmo que adotadas posições divergentes em relação à finalidade do direito penal (dentre as diversas teorias atribuídas sobretudo às finalidades e funções da pena), o limite para a solução da questão estava desde sempre escrito em redação clara e inconfundível na CF/88.

Agora parece mais nítida a relação que o voto tem com a frase do grafiteiro boliviano. Para que a desigualdade não se torne evidente, é melhor combater os iguais ou os desiguais, mas não as causas da desigualdade. Que as preocupações do Min. Barroso com a desigualdade do direito penal sejam sinceras não pode haver dúvida, mas convém proteger-se da “generosa igualdade” que ele propõe em seus votos. 

Notas e Referências:

[1] Retirada do clássico de GALEANO, Eduardo. As Veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2015, p. 22.

[2] Trecho de texto monográfico produzido no âmbito da Pós-Graduação em Direito Penal e Processo Penal da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, produzido antes da publicação do acórdão da ADC 44 e apresentado em maio de 2017. As referências feitas à posição do Ministro Luis Roberto Barroso têm como base os votos no HC 126.292/SP, julgado pelo Plenário do STF em 17.02.2016 e na análise das medidas cautelares nas ADCs 43 e 44. Assistindo a sessão plenária do STF em 04.04.2018 percebeu-se que o teor dos votos anteriores ainda se mantém, de modo que o presente texto revela-se, a meu juízo, totalmente atual. A monografia da qual extraio o texto é: Execução Provisória da Pena e Presunção de Inocência: uma fronteira constitucional que as separa, 2016.

[3] Sobre a significativa contribuição do Poder Judiciário na intensificação de um modelo penal seletivo e arbitrário contra as camadas populares, especialmente a juventude negra e pobre, CARVALHO, Salo de. O encarceramento seletivo da juventude negra brasileira: a decisiva contribuição do Poder Judiciário. In: PRADO, Geraldo; CHOUKR, Ana Claudia Ferigato; JAPIASSU, Carlos Eduardo Adriano. Processo penal e garantias: estudos em homenagem ao professor Fauzi Hassan Choukr. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 441/462.

[4] Aliás, como se sonegar impostos continuamente não fosse um meio de vida. Talvez sintomático da ideologia autoritária que conforma o direito penal brasileiro é a decretação de prisão preventiva em um habeas corpus, um episódio lamentável que ocorreu em São Paulo recentemente. Naquele caso, coincidentemente, a liberdade em jogo era de um rapaz que tentou furtar uma carteira dentro de um supermercado. Arbitrada fiança, o HC foi impetrado sob o argumento de que o suspeito não tinha como pagá-la. O objetivo de livrar-se do pagamento da fiança foi alcançado, mas sob fundamento diverso: o de que ele não fazia jus à liberdade provisória. Logo, o desembargador decretou sua preventiva. O desembargador que fez isso não desconhece o que é o HC. Óbvio que não. O que está por trás dessa decisão é uma lógica muito parecida com a da decisão do STF. A ideia de que o juiz pode tudo, basta esgarçar os limites interpretativos, temperar com uma dose de ponderação e de interesse público e a partir daí justificar qualquer coisa.

[5] Considerado até então o entendimento sufragado pelo STF no HC 84.078/MG, Min. Eros Grau, revisto pelo Min. Roberto Barroso.

[6] KARAM, Maria Lucia. A Esquerda Punitiva. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2015/07/28/a-esquerda-punitiva/>. Acesso em: 15 out. 2016.

[7] Veja-se no RS, por exemplo, o problema da Defensoria Pública da União presente em apenas cinco subseções judiciárias, o que tem demandado por parte do próprio Ministério Público Federal o ajuizamento de ações civis públicas para efetiva instalação de unidades nas demais subseções. Ou o caso da DPE do Paraná, só recentemente em vias de ser instalada efetivamente no Estado após decisão do STF no AI 598.212/PR, Min. Relator Celso de Mello, 24 de abril de 2014. A DPE/RS abriu o primeiro concurso para servidores somente em 2012.

[8] “Esse princípio fundamental de civilidade representa o fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado”, FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do garantismo penal. 4º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 506.

[9]Castellar faz uma interessante abordagem sobre o que considera uma fórmula que atua em dois flancos no enfrentamento ao crime. Uma formal, operada pelas agências policiais e que se concentra majoritariamente sobre as classes pobres, fato denunciado, por exemplo, pelos números significativos de pessoas presas por uma lista muito reduzida de crimes de natureza patrimonial (cujos autores, em regra, são os excedentes da economia capitalista); a segunda, um controle informal realizado pela mídia especialmente sobre a vida de criminosos de colarinho branco, expostos ao julgamento público e à curiosidade supérflua diante da divulgação massiva de suas identidades e dos crimes de que são acusados. Para o autor, entretanto, como a maioria dos crimes da classe alta, em regra, não admite soluções prisionais, o mais intenso da atividade penal acaba por recair sobre os pobres e sua criminalidade clássica. Eis o que ele chama de “a engenhosa arte de criminalizar os ricos para punir os pobres” CASTELLAR, João Carlos. Direito Penal Econômico versus Direito Penal Convencional. A engenhosa arte de criminalizar os ricos para punir os pobres. Rio de Janeiro: Revan, 2013, p. 277/279. De fato, a crítica do autor aos julgamentos da opinião pública(da) é uma realidade a desnudar aquilo que Ferrajoli chamava de verdadeira eficiência do sistema penal moderno, em que as prisões preventivas, acabavam por revelar um resultado prático mais concreto do que a própria pena, diante do sentimento de justiça da opinião pública(da) (FERRAJOLI, 2014. p. 516). Há, agora, no Brasil, um ambiente bastante peculiar: algumas grandes operações policiais contrariam a afirmação de Castellar, submetendo uma série de “até então intocáveis” a altas penas que admitem soluções prisionais. Esse cenário que se vai descobrindo, entretanto, está de portas abertas a uma série de propostas de enfrentamento à criminalidade que afetam o direito penal em sua totalidade. Por consequência, corre-se o risco de aumentar ainda mais o poder das agências policiais e do poder punitivo sobre os estratos vulneráveis, porque essas tendências inovadoras do processo penal visam mitigar direitos e garantias. Os efeitos serão sentidos, em regra, por aqueles que são os clientes penais de sempre e só, esporadicamente, por alguns “intocáveis”. Em todo caso, é como se cada “intocável” preso pudesse legitimar milhares de pobres presos.  

 

Imagem Ilustrativa do Post: Líneas // Foto de: Josué Goge // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/jgoge123/13340056653/

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura