SOBRE HISTÓRIA E CONSTITUIÇÃO: AS LIÇÕES DA COMUNA DE PARIS

29/05/2021

Coluna Por Supuesto

A sensibilidade histórica dos estudos constitucionais nem sempre registra todos os acontecimentos importantes para o Constitucionalismo, especialmente porque apesar de não existir unanimidade sim há uma compreensão predominante, que dá pouca margem a outros entendimentos e que gira em torno aos cânones liberais clássicos.

Assim, praticamente - e quase com exclusividade - os acontecimentos mais relevantes são a Revolução Gloriosa na Inglaterra em 1688, a Revolução dos Estados Unidos de 1776 e a Revolução francesa de 1789. Também é frequente encontrar referências à Constituição de Weimar, que tem uma inegável repercussão na disseminação dos direitos sociais. Não acontece assim, por exemplo, com a Constituição de Querétaro de 1917 ou a Constituição Soviética de 1918, ainda que precedam a de Weimar. Diga-se, de passagem, que a elas nos referimos na coluna precedente.

Na nossa opinião a prática acadêmica, que repercute desde logo na prática profissional e no processo de interpretação e aplicação do Direito, precisa de perspectivas mais abrangentes, não só para poder retratar a realidade a partir de óticas diversas, aceitando, tolerando e superando as contradições comuns quando se olha o objeto de conhecimento – no caso o Constitucionalismo e as Constituições - com outros lentes, senão porque, e especialmente porque, se trata de uma exigência científica.

No bojo das referências ao passado, no intuito de consignar e aprender sobre o legado dos povos, a Comuna de Paris, que durou exatamente de 18 de março a 28 de maio de 1871 – apenas 72 dias- é de fato um acontecimento de extraordinária magnitude e importância para o Constitucionalismo. Se tratou de uma experiência afirmativa da democracia real e da soberania popular após a decepção com a Revolução Francesa das camadas mais vulneráveis da população.

Por isso, se hoje podemos falar da necessidade de uma democracia participativa e deliberativa e não apenas de um arremedo formal, bem como se achamos juridicamente necessário contribuir para um projeto de base, social e político, fundado no interesse coletivo e na rejeição aos traços fascistas que podem assumir os regimes de governo para a imposição de agendas econômicas que só favorecem a concentração do capital, não há como não analisar os acontecimentos da Comuna.

Para a época, a Comuna traduziu os ideais de uma república, sob as premissas da eleição democrática da direção do Estado, com as aspirações dos trabalhadores e trabalhadoras que governaram Paris após o governo provisório de Thiers se instalar em Versalhes, no meio da debilidade econômica da burguesia francesa derrotada pela Prússia.

O Conselho Diretor do movimento foi constituído por 71 delegados escolhidos por sufrágio universal, dentre eles 25 operários e 12 artesãos. Seus salários não podiam ser superiores ao percentual médio de um operário. A primeira disposição foi devolver as ferramentas de trabalho e extinguir a guarda nacional, entregando as armas ao conjunto da população. A organização da defesa da cidade foi encomendada às mulheres.

A seguir foram tomadas um conjunto de medidas como o controle dos preços dos alimentos, a abolição das dívidas dos operários aos empresários, a regulamentação do trabalho noturno, a igualdade salarial entre homens e mulheres, a separação da Igreja do Estado e a universalização da educação laica.  

A maneira como a elite dominante francesa apoiada no exército empreendeu a recuperação de Paris está documentada, ainda que os dados sobre suas consequências trágicas nem sempre coincidam. Durante a chamada Semana Sangrenta, transcorrida entre os dias 22 e 28 de maio de 1871, mais de 15.000 pessoas foram fuziladas e desaparecidas. Logo, mais de 40 mil pessoas foram detidas, julgadas, torturadas e condenadas por participar da Comuna.

Entretanto, a questão que parece mais relevante para dimensionar o legado desta jornada foi a forma como desde os fatos o movimento contestou o contratualismo de democracia frágil, fundado no individualismo, é dizer, na concepção formal de que todos as pessoas são livres e iguais.

O Constitucionalismo liberal clássico reproduz um sistema que converteu todo em mercadoria, incluindo a força dos trabalhadores e trabalhadoras, para os quais a igualdade e a liberdade eram uma espécie de romance ou história em quadrinhos. Contreras Pelaez em seus estudos sobre os direitos sociais lembra que os patronos na Inglaterra não pareciam entender a revolta dos operários de Manchester ao criar o primeiro sindicato (trade unions) em 1830, argumentando que não havia razão nas suas pretensões por serem completamente livres.

Para o liberalismo a solidariedade e a construção coletiva é algo a olhar com certo receio. Os laços associativos e as reuniões, direitos de concretização coletiva, devem ter limites mais rígidos. Na concepção individualista o sujeito é abstrato, existe em direitos sobre a base de ser proprietário. Uma amostra dessa filosofia foi o Código Napoleão de 1804. O Estado devia, simplesmente, garantir a ordem, o cumprimento dos contratos e se afastar da condução da economia.

A Comuna propus exatamente o contrário, a aspiração comunitária de desafiar as hierarquizações sociais alicerçadas na propriedade. Perante uma burguesia que manipulava a legalidade, pouco entendia de igualdade e nada entendia de fraternidade, não somente deu sentido a esses postulados senão que reivindicou o coletivo e a solidariedade. Assim, nos meses que durou, tornou as liberdades fictícias em reais e tangíveis.

Historicamente, tem sido possível para um Constitucionalismo de contados relatos e cujos protagonistas são pequenos grupos e personagens elitistas, a negação de fatos de tamanha importância e complexidade na compreensão do nosso Direito contemporâneo. O discurso jurídico dominante na geopolítica do conhecimento implica um exame criterioso dos exemplos e manifestações das classes e dos coletivos organizados. 

Porém, se os códigos e as constituições, como manifestações conscientes de setores e grupos sociais retratam o caráter da época, os esforços por consagrar elementos imutáveis não impediram nunca a dialética das forças produtivas e os saltos e sobressaltos resultado da luta entre classes.

A Comuna pode ter sido considerada prematura no andar da história. Mas é uma referência importante e tem um roteiro valioso que deve ser convenientemente examinado porque propõe uma alternativa válida, legítima e atual, que abre a possibilidade de uma ótica diferenciada, anúncio, talvez, de um porvir mais justo para as nossas sociedades, ainda em nosso tempo, por supuesto.

 

 

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