Laika, a whippet[1]
O tema desta semana é, de certa forma, continuação de colunas anteriores, especialmente o texto sobre remoção de conteúdo das plataformas[2] e o texto sobre o movimento “sleeping giants”[3]. No primeiro texto, foram levantadas questões sobre a legitimidade do controle ativo das plataformas de mídias sociais, principalmente no que se refere ao que se convencionou chamar ecossistema de desinformação (vulgarmente conhecido como “fake news”), mormente diante dos riscos concretos de que estas plataformas pudessem ser utilizadas como instrumento de políticas imperialistas ou simplesmente para controlar processos democráticos mundo afora. Isso tudo sem falar na crise de representação política e de como essas plataformas vêm se tornando veículos oficiais de comunicação entre eleitos e eleitores. O segundo texto diz respeito ao surgimento do Sleeping Giants no combate ao ecossistema de desinformação.
Semana passada, para coroar o debate, o Presidente dos EUA, Donald Trump, teve postagens classificadas como “fake news” pela plataforma Twitter, o que imediatamente reacendeu o debate sobre o papel destas plataformas, mormente porque nos EUA, tal qual no Brasil, elas não respondem por conteúdo de terceiros, razão pela qual muitos entendem que elas sequer poderiam fazer o controle ativo (e se assim fizerem, devem responder por isso).
Obviamente que nenhum Presidente aceitará ser “censurado” (lato sensu”) por plataforma ou pessoa alguma no mundo, o que fez com que Donald Trump passasse a insinuar a alteração das regras sobre responsabilidade das plataformas[4]. No Brasil, em um cenário um tanto quanto caótico, com o Presidente Jair Bolsonaro sendo sucessivamente “censurado” em suas postagens, e diante do crescimento do “slepping giants”, a questão também foi objeto de atenção por parte de Bolsonaro, a esteio das mudanças decretadas por Trump[5], e que serão melhor reguladas pelo FCC (órgão regulatório do setor de Comunicação).
No meio disso tudo, o Congresso Nacional resolve se movimentar. “Dividir para patinar” parece ter sido o lema inicial trilhado, já que Senado e Câmara dos Deputados optaram por projetos iguais (apresentados de maneira conjunta). Assim, surgiram dois Projetos de Lei sobre Fake News e Desinformação: (i) PL nº 2630/2020 do Senado Federal, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet e (ii) PL nº 2927/2020 da Câmara dos Deputados, que também institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet (foi apresentado o Substitutivo 3063/2020 pelos próprios autores do projeto original). Nada é tão ruim que não possa piorar. Se antes precisaríamos acertar um único alvo, agora precisamos enfrentar Órtros, o cão de duas cabeças da mitologia grega que foi morto por Hércules em seu décimo trabalho.
Por sorte – na verdade graças a atuação muito consciente da sociedade civil e de alguns parlamentares – a votação no Senado foi adiada, evitando assim um tortuoso início de votação no Congresso Nacional (que deveria ter ocorrido na última terça-feira, 02.06.2020).
Premissa: Qual é o problema a ser enfrentado?
O problema é combater o ecossistema de desinformação. Não é nada novo, a propósito. Só no último século (para não termos de voltar ao início da civilização humana), são conhecidas as estratégias midiáticas da Alemanha nazista, da União Soviética, da China e até mesmo dos EUA (Hollywood que o diga), as quais, em maior ou menor grau, visam convencer pessoas a respeito de causas essencialmente políticas e imperialistas, por meio de visões nem sempre reais, factuais e sérias.
Aliás, a mentira – ou desinformação – faz parte da própria essência da criação humana, inclusive com trecho bíblico bastante famoso sobre tentação e enganação (episódio da serpente e do fruto proibido), além da passagem em que Judas mente e depois trai cristo com 3 (três) beijos no rosto.
Não fosse a mentira, a expressão “cavalo de Tróia” simplesmente não existiria. Tampouco o chamado “presente de grego”. Papai Noel? Coelhinho da Páscoa? Fábulas? Mitologia? Como ficaria a discussão sobre religião e outros atos de fé, protegidos constitucionalmente pela Magna Carta (liberdade de crença e culto)?
A mentira tem um papel social muito importante, a ponto de ser inclusive subcategorizada em “mentirinha” e “mentira”. Ela nos permite evitar atos da vida social indesejados sem a necessidade da indelicadeza (estou cansado; muito trabalho para fazer e afins).
Querer enfrentar – e vencer a mentira – é um grande paradoxo. É impossível, pois a hora que alguém disser que a mentira deixou de existir, ele próprio mentirá. Aliás, ela gosta desse discurso negacionista. É onde ela tem potencial para causar mais danos.
A premissa, portanto, é equivocada. Não adianta combater a mentira. Aliás, é impossível. O foco precisa ser outro. E neste ponto, os projetos de lei tropeçam nos obstáculos presentes na pista.
É possível criar um site que faça apologia ao tráfico? É possível financiar campanhas a favor do assédio sexual? Então porque toleramos – e essa é a palavra, já que lícito certamente não é – o financiamento do ecossistema de desinformação?
“Follow the money” (sigam o dinheiro), como já indicou o “Slepping Giants”. Não é necessário criar “mais” lei. Apenas é necessário que as leis existentes sejam cumpridas.
Como resolver? Fácil: basta criminalizar
Se a premissa é equivocada, a estratégia original de combate é esdrúxula. “Já sei, vamos criminalizar”, alguém pensou. Outros aplaudiram. E pronto. Não temos mais traição, tráfico de drogas, assassinatos e tampouco corrupção. É a solução mágica presente – infelizmente – há tempos na sociedade. Mais uma aposta na crença de que o Direito é o único meio capaz de solucionar os problemas sociais.
Direito Penal como última ratio? Bobagem. E assim não teremos mais nenhuma pessoa livre no mundo (e quem disser que nunca mentiu na vida...bom, provavelmente será o primeiro a ir para a cadeia). A natureza agradece.
Ainda bem que esses PLs não seguem essa lógica. Embora muitos outros tentem ir por esse caminho. A bem da verdade, as sanções a quem cria e compartilha não são tutelados por estes projetos de lei.
O objeto é tutelar as plataformas, a fim de exigir delas uma conduta mais ativa no controle das contas e conteúdos veiculados por terceiros. Embora recheado de boas intenções, a solução é ruim.
É necessário atacar os financiadores desse movimento de desinformação. Muitos deles figuras notoriamente conhecidas, com livros e matérias comprovando os fatos por A + B. Falta vontade política, e não lei para isso. Aliás, sobre o tema vale a reflexão de que a quantidade de leis de um país é inversamente proporcional ao grau de moralidade da sua população. Assim, quanto mais degradada moralmente for a população, mais leis são necessárias para tentar trazer equilíbrio.
Outra questão interessante – e neste ponto razoavelmente bem trabalhada pelo PL do Senado Federal – é exigir maior transparência (mediante aviso) em relação aos conteúdos patrocinados (o que, aliás, já é seguido por algumas plataformas). As pessoas precisam ter consciência de que determinados conteúdos estão lá porque foram impulsionados (patrocinados) para fins de publicidade. Essa, aliás, é exigência do CONAR e do Código de Defesa do Consumidor (art. 36). Será que tem necessidade de outra lei sobre isso?
Nenhuma linha, infelizmente, sobre as empresas e plataformas se comprometerem e não alimentar um comprovado ecossistema de desinformação. Não é questão de opção, mas de conduta ilícita, tanto do ponto de vista jurídico quanto do ponto de vista moral/ético.
Alguns pontos importantes diante da realidade brasileira
(i) o fator WhatsApp
Combater o ecossistema de desinformação por meio do estrangulamento econômico é uma solução bastante eficaz que precisa ser seguida. Determinar, por meio de ordem judicial, que as plataformas excluam páginas, contas e conteúdos nocivos é também fundamental. Alterar a responsabilidade das plataformas que realizem controle ativo parece ser também um caminho necessário. Endurecer as sanções civis e penais idem.
Entretanto, o ecossistema de desinformação brasileiro não é exatamente idêntico ao americano ou europeu. Enquanto por lá, as plataformas são os principais veículos de comunicação, no Brasil plataformas de mensagens (em especial o WhatsApp) são o fator preponderante.
Assim, é necessário encontrar um mecanismo de combater a propagação desse ecossistema em uma plataforma de mensagem privada (e, portanto, protegida constitucionalmente) e criptografada (sem que a própria empresa tenha acesso a elas). A limitação de compartilhamento é prática já implementada, que certamente auxilia, mas não resolve. Esse é um dos grandes desafios da tutela do ecossistema de desinformação no Brasil.
E que, por favor, não venham com ideias de quebra da criptografia, violação de comunicações privadas e suspensão das atividades das plataformas. Acabei de ser alertada pelo meu dono de que já fizeram isso no PL... tirando eu, ninguém mais assiste e acompanha os julgamentos do STF? E aquela história de criptografia como “direito fundamental” (forçado, sabemos) mencionada pela Mina. Rosa Weber no julgamento do caso envolvendo o bloqueio do WhatsApp?
(ii) Obrigatoriedade de controle por parte das plataformas e criação de empresas de “fact check”
Vamos esclarecer um fato crucial do modelo constitucional brasileiro. O ato de dizer se alguém está certo ou errado é exclusivo do Poder Judiciário e, em alguns casos específicos, de autoridades administrativas e arbitrais.
Isso significa que plataformas de mídias sociais não podem ter essa função. Qualquer imputação desse tipo de responsabilidade a elas é absurda e as sujeitará a uma infinidade de ações judiciais (de quem se sentiu lesado com o controle de conteúdo ou de quem denunciou e não teve a denúncia acolhida).
Independentemente da decisão que a plataforma tomar, ela estará sujeita a uma ação judicial para controlar a decisão. Inexistirá segurança jurídica e a provável solução é o encerramento das atividades destas plataformas no Brasil, por absoluta insegurança jurídica do modelo de negócio. O mais insano é perceber que essa previsão (de reparação do dano por controle posteriormente sancionado pelo Judiciário) está presente no Substitutivo apresentado no Senado (PLS 3063/2020)! Olha, você precisa combater. Se combater e der ruim, a culpa é sua. Fácil escrever isso sentado em cima da imunidade parlamentar.
Pela mesma razão, a obrigatoriedade de que estas plataformas criem suas próprias agências de “fact check” é totalmente desproposital. A melhor solução é exigir delas neutralidade, como aliás se infere do regime de isenção de responsabilidade ex vi art. 19 do Marco Civil da Internet.
Para finalizar este tema, ainda é necessário abordar que a imputação deste tipo de responsabilidade às plataformas faz com que elas tenham ainda mais poder. Assim, ao invés de enfraquecê-las do ponto de vista social, político e econômico, elas ganharão ainda mais força e alcance. Se tornarão agentes econômicos e políticos cada vez mais fortes, a ponto de dominarem, além a mídia, o jornalismo e os círculos sociais, o próprio exercício da democracia em suas plataformas. Mais um pouco, podemos renunciar ao Estado e viver no país “escolha o nome da plataforma”.
(iii) As contas não autênticas e a exigência de identificação prévia
Um dos pontos mais polêmicos do PL do Senado Federal diz respeito à exigência de que as plataformas apenas permitam o cadastro de contas autênticas, passando a exigir, inclusive, o documento de identidade de quem deseja se cadastrar.
A ideia é evitar a proliferação de contas “fakes”, propagadoras de notícias fraudulentas e/ou que sirvam de máscara para a atuação de bots. Interessante, sem dúvida. Gritantemente inconstitucional.
A liberdade de pensamento e de expressão é garantia fundamental, sendo vedado apenas o anonimato, segundo prescreve a Constituição Federal brasileira. Contas inautênticas não são anônimas, na medida em que é possível a identificação do terminal utilizado pelo rastreamento do IP, conforme aliás já asseverou o Superior Tribunal de Justiça. Ademais, o direito de utilização de um pseudônimo é garantido pela legislação pátria, com previsão expressa na Lei de Direitos Autorais (Lei 9610/98).
Em outras palavras, se o PL avançar, será permitido escrever um livro e assiná-lo com um pseudônimo, mas não será possível fazer isso nas redes sociais. Fernando Pessoa não teria espaço para Alberto Caieiro nos tempos atuais. Tampouco George Orwell escreveria Revolução dos Bichos ou 1984. Pelé? Garrincha? Zico? Guga? A lista é interminável.
Vale ainda notar a importância que os pseudônimos possuem em momentos pouco democráticos. Julinho de Adelaide (Chico Buarque) que o diga. Principalmente para tentar fugir da vigilância estatal. Perfis como o próprio Sleeping Giants atuam desta forma.
O substitutivo apresentado na Câmara permite, é verdade, o pseudônimo, mas condiciona ao registro do real usuário, o que é totalmente ilegal. De que adianta ter um pseudônimo, se a plataforma sabe quem é o seu titular?
Até mesmo a restrição aos bots parece desproporcional. A tecnologia permite coisas fantásticas, como bots que impulsionam conteúdos verdadeiros e interessantes. Bots que façam atendimento de SAC de empresas em plataformas diversas, como WhatsApp, Facebook e afins. Banir os bots sob o pretexto de combate às fake news equivale a proibir os jogos de vídeo game a pretexto de combater a violência. Soluções arcaicas que sequer merecem maiores considerações.
Tinha uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma pedra
Muitos outros pontos poderiam ser abordados. O tamanho da coluna, entretanto, não permite, mas vale o registro sobre o absurdo da catalogação e indexação de nossos movimentos nas redes sociais para futura consulta, o que reacende o debate sobre sociedade da vigilância.
O ecossistema de desinformação é um problema. Sério. E que precisa ser combatido. Como fazer isso? Provavelmente ninguém tenha uma resposta para isso ainda. Mas definitivamente não é através da violação de preceitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal. O Congresso parece ignorar o correto funcionamento da Internet e demonizar a tecnologia. A solução definitivamente não está aí.
O debate público é necessário e urgente, e foi ignorado no PL das Fake News. É crucial analisar as experiências estrangeiras e traçar uma solução que leve em consideração as características do país e a jurisprudência aqui solidificada.
Não é hora de mudar a regra do jogo, abraçar a bola e sair dizendo que se “eu não ganhar, então ninguém mais joga”. Infelizmente, pautas muito importantes são normalmente transformadas em disputas ideológicas, e muitas vezes o remédio acaba por matar o paciente, antes que possa eliminar a doença.
As estratégias mais eficazes continuam fora do radar do Congresso: seguir o dinheiro, impedir que sites que propagem desinformação continuem no ar e impedir a publicidade em sites dessa natureza (ilicitude civil e penal).
Notas e Referências
[1] Laika é uma cachorra (raça whippet) feliz e brincalhona que adora transformar a sala em uma pista de corrida. Reclama bastante de quem não lhe dá atenção e não joga a bolinha de tênis a uma distância razoável. Adora assistir televisão e passa muito tempo do seu dia refletindo sobre como acabar com as mentiras contadas por seus donos de que não tem tempo para brincar com ela. Decidiu ler o PL das Fake News e desde então seu semblante mudou. Morre de medo de que seus donos possam ir presos, que sua conta no Instagram venha a ser excluída e que seu app de mensagens instantâneas passe a ser controlado por terceiros. Ah, também adora os autômatos (bots) que brincam com ela sem parar (principalmente as máquinas de lançar bolinhas de tênis).
[2] Texto disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/tempos-de-pandemia-e-a-remocao-de-conteudo-pelas-redes-sociais. Acessado em 02.06.2020.
[3] Texto disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/ecossistema-de-desinformacao-e-regulacao-o-exemplo-do-sleeping-giants. Acessado em 02.06.2020.
[4] Texto disponível em https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/05/27/trump-fala-em-regular-ou-fechar-plataformas-de-midia-social.ghtml. Acessado em 02.06.2020.
[5] Texto disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2020-05/trump-assina-decreto-que-limita-protecao-a-redes-sociais. Acessado em 02.06.2020.
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