O desenvolvimento do Direito, sobretudo do Direito Constitucional, e o aprimoramento da jurisdição constitucional guardam algumas singularidades que convêm mencionarmos. Efetivamente – e a história demonstra à saciedade – não há nenhuma autoridade, instituição ou pessoa que tenha acesso privilegiado à “verdade” ou a uma revelação daquilo que é o direito. Em outras palavras, não há qualquer autoridade, instituição ou pessoa que, por si só, empurre a história ou o direito em direção ao progresso ou tenha aquilo que o Ministro Barroso chamou erroneamente de uma “razão iluminista”.[1] Antes disso, o desenvolvimento do direito – assim como a história – não é imune a eventuais contradições, aos avanços e retrocessos inerentes ao próprio desenvolvimento histórico: como aprendizagem social, sim; progresso inexorável, não. Mais do que isso, no entanto, é o fato tantas vezes enfatizado por Dworkin de que o desenvolvimento do Direito e da jurisdição são frutos de um empreendimento coletivo.
Na metáfora do romance em cadeia de Dworkin – que representaria a forma na qual o direito é desenvolvido –, cada uma ou um dos romancistas tem um papel relevante e central para o progresso do direito e, sobretudo, para a efetivação dos direitos que as pessoas têm no sistema constitucional.[2] Desse modo, a aprendizagem e o desenvolvimento do direito, assim como a efetivação dos direitos constitucionais, dependem de um esforço coletivo e um empreendimento comum de toda a comunidade política. Enfatizado esse aspecto fundamental do direito e também da jurisdição constitucional, é importante resgatarmos o conceito benjaminiano de que a história se faz não em um sentido progressivo e linear, mas no preenchimento do tempo-agora que, preenchido pelas significações do passado, torna-se denso e visível, descontínuo e cria um desvio no curso do tempo.[3] Essa é a dimensão da interpretação que pretendemos dar ao julgamento do RE 1.008.166; isto é, uma decisão histórica na qual o Supremo Tribunal Federal, em um estilhaço ou instante de tempo messiânico, quebrou uma linha histórica de continuidade no que tange a seus recentes entendimentos em torno dos direitos sociais.
No processo de erosão constitucional[4]que se iniciou, ao menos, desde 2016 entre nós, com o impedimento inconstitucional e ilegal da Presidenta Dilma Rousseff, passando pela constante atuação parcial da Lava-Jato, pela agenda econômica neoliberal de Michel Temer e as reformas trabalhista e previdenciária, pela inelegibilidade de Lula até culminar na eleição de Jair Bolsonaro e seus posteriores desdobramentos de ataque às instituições democráticas e aos direitos fundamentais, o Supremo Tribunal Federal desempenhou um papel importante, sobretudo no processo de desmonte ou processo desconstituinte dos compromissos do Estado Social de Direito, próprios à Constituição de 1988.[5] Em diversas ocasiões o Supremo Tribunal Federal adotou a premissa de uma jurisdição constitucional que já denominamos neoliberal[6] ou, ainda, uma passividade inconstitucional na efetivação dos direitos sociais que fomenta a desigualdade. Podemos citar, por exemplo, a ADI. n. 6363, que possibilitou a redução de jornada e de salário por acordo individual sem a assistência de sindicato no contexto da pandemia; a decisão nas ADI’s. n. 5.735, 5.695, 5.687, 5.686 e 5.685, em que o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da terceirização de atividades-fim; a edição da Tese de repercussão geral n. 725, no julgamento do RE 958.252, que estabeleceu a responsabilidade subsidiária das empresas tomadoras de serviços, independentemente do objeto social, permitindo a superação do enunciado parcial sumular 331 do TST, etc. O fundamento revelado pelo Supremo Tribunal Federal é, no caso da redução da jornada e salário, uma suposta exceção ocasionada pelo coronavírus e, no caso da terceirização e demais, o fato de que a Constituição de 1988 não tinha adotado nenhuma forma específica de organização do trabalho.
O tecido comum de todas essas decisões revela uma interpretação fragmentada e parcial dos direitos sociais que implica no esvaziamento do relevante papel desses direitos na construção de um Estado Social de Direito que funciona, no fundo, como um bloqueio institucional à transformação econômica e social em sentido, pois, inverso do pretendido pelo projeto desenhado na Constituição de 1988, que propõe uma série de fundamentos e de objetivos de redução das desigualdades, de desenvolvimento e de justiça social, de valorização do trabalho, etc.
Em uma breve síntese, uma interpretação constitucional fragmentada, parcial, desamparadora e tolhedora dos direitos constitucionais sociais legitima formas de trabalho precários, pobreza e, acima de tudo, a continuidade de uma sociedade profundamente desigual. Entretanto, em sociedades complexas e profundamente desiguais, a jurisdição constitucional e os tribunais de uma forma geral devem se atentar para os desafios hermenêutico-constitucionais e, por isso, também políticos impostos na construção de um Estado Social de Direito que exige uma articulação substancial de justiça social entre trabalho e capital (arts. 1º, IV, 3º e 170 da CR/88) e os imperativos da igualdade nas distintas dimensões da pessoa humana.
Por isso, no julgamento do RE 1.008.166, o Supremo Tribunal Federal, em uma forma que aqui denominamos de messiânica, todavia sem espera, rompe uma história linear e progressiva na temática de direitos sociais que, sob a aparência de progresso, representava um grande retrocesso jurídico-constitucional, ao resgatar a exigência de totalidade e multidimensionalidade dos direitos fundamentais e preencher, ainda que parcialmente, o vazio deixado por ele mesmo no Estado Social ao efetivar o direito à educação infantil e determinar a responsabilidade do Estado com as crianças e com as mulheres.
No caso concreto, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina promoveu demanda postulando, em favor de uma criança de 3 anos de idade, a determinação de que o Poder Judiciário obrigasse o Município de Criciúma, face à negativa expressa por parte do ente, a destinar vaga em creche em estabelecimento de ensino infantil mais próximo de sua residência. Tanto a sentença de primeira instância quanto o Tribunal de Justiça de Santa Catarina julgaram a demanda procedente, reconhecendo a responsabilidade do Município na educação infantil e, sobretudo, a norma constitucional que determina a prioridade absoluta da criança no direito à educação (arts. 7º, XXV e 208, IV da CR/88).
O Município de Criciúma interpôs Recurso Extraordinário com o argumento de que a previsão do direito à educação como direito público subjetivo é circunscrito ao ensino fundamental na forma do art. 208, I combinado com o §1º da CF/88. No caso do ensino infantil e a garantia de acesso à creche e à pré-escola relativa às crianças de 0 a 6 anos de idade prevista no art. 208, inc. IV da CF/88, embora também seja obrigação do ente público municipal, a interpretação isolada do dispositivo seria de que o atendimento e a disponibilização de vagas é uma meta programática na qual não deve o Poder Judiciário se imiscuir. Assim, na visão do Município, tal direito está condicionado às políticas sociais e econômicas e na discricionariedade orçamentária do poder público e não é exigível. Em suma, é a colocação de um argumento consequencialista que investe e assedia a efetivação de um direito fundamental.
O Supremo Tribunal Federal admitiu o Recurso Extraordinário e reconheceu a repercussão geral que nele estava imbuído. Distribuído como relator, o Min. Luiz Fux, em seu voto, embora tenha reconhecido que a negativa ao atendimento de crianças em creches e pré-escolas de 0 a 6 anos de idade configura uma omissão inaceitável, o direito só poderia ser efetivado com algumas condições, desprovendo o Recurso Extraordinário. Assim, só seria admissível que o poder judiciário determine a obrigação se houver a negativa de matrícula na via administrativa em razão de negligência, negativa indevida ou demora irrazoável, além da necessidade de que o autor comprove que não tinha capacidade financeira para arcar com o custo de manutenção da criança em instituição privada.[7] Mais uma vez, o Min. Luiz Fux cedeu aos assédios do consequencialismo jurídico, ainda que, ao mesmo tempo, tenha reconhecido o direito à creche.
O Min. André Mendonça, após seu pedido de vista, apresentou um voto na mesma linha consequencialista. Embora também negando provimento, reconheceu a obrigação estatal de acesso universal à educação infantil, mas tal obrigação deveria ser cumprida de forma imediata para todas as crianças após 04 anos de idade e de forma gradual, de acordo com o Plano Nacional de Educação que estabeleceu a obrigatoriedade de reserva de vagas de 50% da demanda até 2024 e, caso não houvesse a aplicação do mínimo orçamentário em educação, aí tal obrigação seria imediata.
O cenário da decisão começa a ser alterado após o voto do Min. Edson Fachin, que foi determinante para o alcance da unanimidade na fixação da seguinte tese do tema 548 da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: “1. A educação básica em todas as suas fases – educação infantil, ensino fundamental e ensino médio – constitui direito fundamental de todas as crianças e jovens, assegurado por normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata. 2. A educação infantil compreende creche (de zero a 3 anos) e a pré-escola (de 4 a 5 anos). Sua oferta pelo Poder Público pode ser exigida individualmente, como no caso examinado neste processo. 3. O Poder Público tem o dever jurídico de dar efetividade integral às normas constitucionais sobre acesso à educação básica”.
Interpretando adequadamente a realidade social e os níveis de desigualdade social e econômica no país, o Min. Fachin lembrou a importância do direito constitucional à educação e sua autoaplicabilidade, isto é, a sua fundamentalidade para a ordem constitucional e como sua não efetivação acarreta altos e alarmantes índices de exclusão social. Em seu entendimento, o direito à educação não é uma proteção apenas à criança em idade pré-escolar, mas também às mulheres. A ausência desse direito criaria um círculo vicioso de exclusão em que se a mulher não tem creche adequada para deixar seus filhos, especialmente aquelas das camadas mais excluídas da sociedade, não consegue trabalhar. Por isso, de forma constitucionalmente adequada, o direito à educação infantil é uma dupla proteção social, tanto para a mulher quanto para a criança.[8] Chegar a essa decisão supõe a premissa de que o direito à educação e a sua concretização é um direito fundamental social multidimensional e que tem aplicação imediata (art. 5º, §1º da CR7/88).
Os desafios postos por uma sociedade desigual e o enfrentamento dessas desigualdades exigem uma hermenêutica constitucionalmente adequada do direito à educação que se dá, no mínimo, em três perspectivas que descortinam as tarefas de uma jurisdição constitucional comprometida com o Estado Social de Direito.
Uma primeira perspectiva ou dimensão é aquela que poderíamos denominar interna do direito à educação. Por essa perspectiva, deve-se compreender a dinâmica da própria atividade educacional e o que ela representa para o indivíduo para, então, saber qual a consequência para o Estado e para o direito. Como bem ressalta o art. 205 da CF/88, a educação visa o pleno desenvolvimento da pessoa com o seu preparo para cidadania e para o trabalho. Em um sentido ainda mais amplo, a Lei 9.394/96 (Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional) estabelece, em seu art. 1º, que a educação abrange todos os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições, nos movimentos sociais e organizações culturais. O processo educacional envolve o próprio processo de desenvolvimento da pessoa. A educação escolar, no entanto, é uma faceta da educação como atividade humana e que se desenvolve por meio do ensino.
Para estabelecer e desenvolver uma política educacional, o ensino e a educação escolar foram organizados de maneira fracionada em: educação básica que compreende a educação infantil, ensino fundamental e ensino médio e a educação superior (art. 21 da Lei 9.394/96). A educação básica, segundo os ditames da legislação, tem por objetivo a formação comum indispensável para o exercício da cidadania de forma integral, assim como para que o cidadão possa progredir no trabalho e nos estudos posteriores. A educação infantil é a primeira etapa desse conjunto e visa o desenvolvimento integral da criança até 5 anos nos aspectos psicológico, físico, intelectual e social, atuação essa que é complementar à sociedade e à família (art. 29 da Lei 9.394/96).
Veja-se que a educação é um processo de formação integral do cidadão que deve ser visto em seu conjunto. O art. 208 da CF/88 estabelece o dever do Estado com a educação e no inciso I a exigência de que a educação básica seja obrigatória e gratuita dos 4 até os 17 anos de idade. No inciso IV do mesmo artigo, o texto constitucional prevê o dever do Estado em relação à educação infantil por meio de creches e pré-escolas das crianças até 5 anos de idade. O texto do §1º do art. 208 prevê que o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é um direito público subjetivo. Uma leitura apressada e parcial do texto constitucional e do próprio direito à educacional – como fez o Município em seu Recurso – poderia fazer com que o intérprete incauto enxergasse na topografia textual que a educação infantil não constituiria em direito público subjetivo porque o seu inciso não menciona ensino obrigatório e gratuito como o faz em relação ao inciso I. Daí também surgiria uma interpretação –- tal como fez o Min. André Mendonça – que pensa que apenas com 4 anos de idade é que o ensino seria um direito público-subjetivo.
No entanto, essa é uma interpretação constitucional literal e empobrecida que desconsidera simplesmente o arcabouço interno e a dinâmica da educação e daí se extrai uma interpretação textual em tiras do direito constitucional à educação. A educação básica é gênero do qual são espécies a educação infantil, fundamental e média. A educação básica tem um importante papel na formação do cidadão e ocorre até os 17 anos de idade. O fato de que o inciso I do art. 208 estabeleça a obrigatoriedade apenas aos 4 anos de idade não se trata de uma norma dirigida ao Estado, mas à exigência de que a família e a sociedade como um todo, sob pena das penalidades cabíveis, integrem o indivíduo ao processo de ensino, uma vez que é dever de toda a família e a sociedade também, para além do Estado (art. 227). Além do mais, a também circunstância de que o inciso IV não mencione que a educação infantil é obrigatória e gratuita não implica inexistência de direito público-subjetivo, mas que o texto apenas discriminou os estabelecimentos em que ocorreriam o processo de ensino. Ora, é de conhecimento basilar no campo da teoria do direito que a norma, ao estabelecer um dever, a realização de uma ação para alguém, ipso facto, estabelece um direito subjetivo para outrem ou a exigibilidade dessa conduta. No caso, o próprio caput do art. 208 estabelece que a educação é dever do Estado, razão pela qual é logicamente desnecessário estabelecer que a educação é um direito público-subjetivo, embora o tenha feito no parágrafo primeiro para, como dissemos, reforçar a exigência do referido direito constitucional.
Além do mais, o intérprete não pode desconsiderar a redação do art. 227, que estabelece a prioridade absoluta na proteção de criança por parte da família, da sociedade e do Estado na concretização, dentre outros, do direito à educação e à eliminação de todas as formas de negligência, opressão, violência e discriminação. Assim, por uma interpretação internamente sistemática e lógica das disposições normativas do direito à educação e da proteção/promoção das crianças se chega à conclusão da obrigatoriedade do Estado, especialmente mediante os Municípios, na forma da organização federativa do ensino (art. 211, §2º da CF/88), fornecer educação pública e gratuita infantil até 6 anos de idade completos ou, em síntese, que o direito à educação infantil constitui em direito público-subjetivo de toda criança a ser atendida em creche ou pré-escola como estabelecimentos oficiais de ensino.
Uma segunda perspectiva ou dimensão é a da interdependência ou interrelação entre os direitos fundamentais. Os direitos fundamentais estão interligados de tal modo a que o gozo de um direito é condição de possibilidade para o gozo de outro direito. A teoria dos direitos fundamentais tem dividido esses direitos em gerações ou dimensões conforme a sua emergência histórica, sua relação com o paradigma de constitucionalismo e de Estado em direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira dimensões[9]. Quando se fala, portanto, em interdependência estar-se-á referindo à exigência de que o gozo dos direitos fundamentais de primeira geração depende do gozo de segunda geração, os de segunda dependem do gozo de terceira e vice-versa. Assim, por exemplo, o direito à educação é condição de possibilidade para o gozo dos direitos políticos. Quando, assim, o art. 22 da Lei 9.394/96 estabelece que a educação básica é indispensável ao exercício da cidadania, a legislação está reconhecendo essa interrelação. Além dessa interdependência inter direitos fundamentais, deve-se reconhecer a relação intra direitos fundamentais. Ou seja, o gozo, por exemplo, de um direito fundamental social é condição de possibilidade para o gozo de outro direito fundamental social. Mais uma vez, quando a educação básica é definida como meio de progressão no trabalho pelo art. 22 da Lei 9.394/96, o legislador dá um claro contorno de que o gozo dos direitos ao trabalho fica a depender da concretização do direito à educação.
Dentro dessa dinâmica e relação entre direitos fundamentais, o direito fundamental à educação, sobremaneira a educação básica, deve ser visto na perspectiva de desenvolvimento da pessoa, como o primeiro e decisivo passo do indivíduo na constituição do ser humano em seus mais diferentes aspectos. É a concretização de uma educação básica efetiva que possibilitará a formação cidadã, a formação para o trabalho e, acima de tudo, a formação como ser humano.
Por último, a terceira perspectiva ou dimensão do direito à educação é o da multidimensionalidade. A forma como operam os sistemas de exclusão e opressão social é complexa e os direitos fundamentais devem combatê-los de forma multidimensional. É que a exclusão ou opressão social não atuam apenas pela negativa de um direito para uma só pessoa, mas na negação de direitos na miríade de diferentes relações sociais entre os indivíduos. Foi tangenciando essa dimensão que o Min. Edson Fachin bem reconheceu que a negativa da concretização do direito à educação infantil atinge não só um direito fundamental social das crianças de 0 a 6 anos de idade, mas impacta também no direito fundamental social ao trabalho, com especial enfoque, das mulheres mais pobres. Reconhecer essa perspectiva é, enfim, entender como se dão os diversos mecanismos de exclusão e opressão social em sociedades como a nossa e instrumentalizar o direito, sobretudo direitos fundamentais, para combatê-las em direção a uma sociedade mais igualitária. É importante relembrarmos que a forma do trabalho moderno foi construída por homens e para homens. O trabalho moderno não foi pensado para mulheres e as políticas compensatórias do Estado de Bem-estar em geral se concentraram em criar mecanismos de inserção das mulheres em um mercado de trabalho que, como dito, foi modelado por e para homens.
O ordenamento jurídico brasileiro alberga a reivindicação de igualdade entre mulheres e homens – a Constituição de 1988 foi a primeira norma a estabelecer o tratamento isonômico universal entre homens e mulheres no Brasil (art. 5o, I e art. 226, §5o – CR/88) (...). Sabe-se, contudo, que as práticas sociais ainda não refletem a igualdade estabelecida juridicamente – ainda tão recente –, vez que a sociedade brasileira é androcêntrica – ela estabelece a igualdade entre as mulheres e homens de forma expressa, mas inibe na vida prática uma real equalização através da imposição de papéis de gênero, e da ainda débil assunção de políticas públicas de suporte à mulher. O trabalho feminino, fundamental para que a mulher possa auferir renda, não é modelado para a trabalhadora mãe, que dispõe de escassos recursos para a compatibilização do trabalho com a maternidade. (...) Quanto ao trabalho feminino, as exigências trabalhistas não são adequadas às necessidades da mulher, não se incorporam à sua realidade. Importantes aspectos do trabalho são moldados às necessidades estritamente masculinas. Na medida em as mulheres ocuparam novos espaços, o serviço doméstico e o cuidado com os filhos permaneceram sob sua responsabilidade, o que faz com que à mulher seja imposta dupla/tripla jornada de trabalho. Uma normatividade que prescreve a igualdade não é suficiente. Os meios para que a igualdade se efetive precisam estar disponíveis e usar da igualdade formal para propor uma igualdade substantiva é subverter por completo o viés igualitário da Constituição Federal. Na instância da vida prática a realidade é desigual, e não combatemos desigualdade com a sua reprodução cega. De outro lado, as políticas meramente compensatórias típicas do Estado de Bem-estar se mostraram também problemáticas ao agravar o já mencionado problema da “feminilização da pobreza” existente ao tempo do Estado Liberal. Isso porque aquele paradigma ainda toma(va) como pressuposto que havia um padrão – o homem – a que as mulheres deveriam alcançar e, para isso, se investia em políticas de igualação, muitas vezes sem a devida consulta às interessadas sobre a adequação da medida; ao contrário, a decisão era um tema para “experts”[10].
Embora a tese extraída do julgamento não tenha contemplado essa perspectiva, a ratio do RE 1.008.166 é totalmente atravessada por essa perspectiva de gênero e de classe. Incorporar as diferentes formas de exclusão social que atravessam nossas relações sociais é compreender efetivamente o papel contramajoritário da jurisdição constitucional na construção de um Estado Democrático de Direito. Que as diferentes perspectivas de gênero, classe, raça e sexualidade sejam cada vez mais incorporadas a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Esse é o verdadeiro papel de guardião da e de Constituição que se espera de um tribunal na construção de um Estado Democrático de Direito que busque a construção de uma sociedade livre, justa e igual.
[1] O Ministro Barroso elenca suas teorias em dois pontos: BARROSO, Luís. Contramajoritário, representativo e iluminista: os papéis dos tribunais constitucionais nas democracias contemporâneas. Direito & Práxis, Rio de Janeiro, 2018, v. 9, n. 4, p. 2171-2228; BARROSO, Luís. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, número especial, 2015, p. 24-50. Erroneamente, para dizer com Kant, porque pretender tutelar uma sociedade supostamente hipossuficiente e iluminismo como emancipação da humanidade são conceitos radicalmente incompatíveis.
[2] DWORKIN, Ronald. Império do direito. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Ver, por exemplo, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Dworkin: de que maneira o direito se assemelha à literatura. Revista Direito e Práxis, v. 4, p. 368-390, 2013; BACHA E SILVA, Diogo, BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Supremo Tribunal Federal, devido processo legislativo e a Teoria do Direito como Integridade: em busca da promoção dos valores democráticos. In: OMMATI, José Emílio Medauar (org.). Ronald Dworkin e o direito brasileiro. 2ed. Belo Horizonte: Conhecimento, 2021, p. 1-32; PEDRON, Flávio Quinaud. A impossibilidade de afirmar um livre convencimento motivado para os juízes: as críticas hermenêuticas de Dworkin. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, v. 10, p. 197-206, 2018.
[3] BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. In: Obras Escolhidas vol 1, Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 252. Também DERRIDA, Jacques. Spectres de Marx. Paris: Galilée, 2006. E MARRAMAO, Giacomo. Universais em Conflito: identidade e diferença na era global. Belo Horizonte: Conhecimento, 2018, p. 67-79.
[4] Sobre o tema, ver, sobretudo, MEYER, Emilio Peluso Neder. Constitutional Erosion in Brazil: Progresses and failures of a constitutional project. Londres: Hart Publishing, 2021. E, sobre a obra, GOMES, David F. L. Emilio Meyer, constitucionalismo e autoritarismo: sobre Constitutional Erosion in Brazil Disponível em https://www.scilit.net/article/557616c874d10e2881e0d519ec76de97.
[5] Há uma vasta e importante literatura sobre esses temas. Para citar, mais uma vez, MEYER, Emílio Peluso Neder. Constitutional Erosion in Brazil. Oxford: Hart Publishing, 2021; GOMES, David F. L. Brasil, 2020: tentativa de diagnóstico. REVISTA DE CIÊNCIAS DO ESTADO (UFMG), v. 6, p. 1-39, 2021; BACHA E SILVA, Diogo, CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza, NOGUEIRA, Bernardo Gomes Barbosa. A erosão constitucional na Constituição de 1988: o Supremo Tribunal Federal, os ventos autoritários e a jurisdição constitucional. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 12, n. 1. p. 31-63, 2022. E também, sobre a expressão desconstituinte, ver também Cristiano Paixão: “Tive oportunidade de afirmar, em textos escritos a partir de 2016, que o Brasil vem sendo submetido a uma espécie de pressão desconstituinte. Forças políticas e sociais (especialmente ligadas a setores do empresariado) têm defendido (e, em alguns casos, lograram aprovar) medidas contrárias ao arcabouço normativo estabelecido na Constituição de 5 de outubro de 1988. A tramitação e promulgação da EC 95 (referente ao teto de gastos), a aprovação de normas jurídicas que desconstituem o sistema de proteção ao trabalho (Leis nº 13.429 e 13.467, de 2017), a edição de norma administrativa flexibilizando o conceito de trabalho escravo (Portaria 1.129/2017, posteriormente revogada) e a extinção pura e simples do Ministério do Trabalho (no início de 2019) são exemplos de atos legislativos e administrativos que contrariam o disposto na Constituição da República.” (PAIXÃO, Cristiano. Covid-19 e o oportunismo desconstituinte. Disponível em http://www.afbnb.com.br/covid-19-e-o-oportunismo-desconstituinte-por-cristiano-paixao/).
Notas e Referências
[6] CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, BACHA E SILVA, Diogo, ALVES, Adamo Dias. O Poder Judiciário e a jurisdição neoliberal: por uma crítica constitucional à liberdade contra a igualdade na ascensão antidemocrática no Brasil. In: MELLO, Patrícia Perrone Campos, BUSTAMANTE, Thomas (orgs.). Democracia e resiliência no Brasil: a disputa em torno da Constituição de 1988. São Paulo: Bosch editor, 2022.
[7] Embora ainda não disponibilizado, os seus argumentos podem ser lidos em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=493731&ori=1, acesso em 27 de setembro de 2022.
[8] Embora seu voto não esteja disponível, o resumo pode ser consultado em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=494552&ori=1, acesso em 27 de setembro de 2022.
[9] A classificação dos direitos fundamentais em gerações ou em dimensões ainda é muito utilizada por doutrina e jurisprudência no Brasil, mas é necessário aqui registrar algumas críticas. A primeira é a de que a vinda de uma nova geração ou dimensão seria um acréscimo ao que já estaria posto: assim, os direitos fundamentais poderiam ser vistos como vários “pacotes” fechados que têm sido acumulados ao longo do tempo. Há muito que autores como Marcelo Cattoni e Menelick de Carvalho Netto defendem, desde uma perspectiva do Direito em termos de paradigmas constitucionais, que, mais do que “novos pacotes” de direitos, o que a mudança dos paradigmas faz é uma redefinição dos direitos fundamentais. Cf., e.g., CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Processo Constitucional, 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p. 135-155.
[10]BAHIA, Alexandre; BARTH, Rochelle C. Cotas femininas nos parlamentos: uma discussão sobre o papel da mulher na política e no mercado. In: NODARI, Paulo César; CALGARO, Cleide; SÍVERES, Luiz (orgs.). Ética, direitos humanos e meio ambiente: reflexões e pistas para uma educação cidadã responsável e pacífica. Caxias do Sul: EDUCS, 2017, p. 67-83. Disponível em: https://www.ucs.br/site/midia/arquivos/ebook-etica-direitos-humanos_2.pdf.
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