Sobre cartas, discursos adultocêntricos e lutas anti-adultocêntricas

03/08/2021

 Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Em junho de 2016, um grupo de jovens, entre 18 e 21 anos, em cumprimento de medida socioeducativa na Unidade de Internação do Recanto das Emas[1], no Distrito Federal, escreveu uma carta, em forma de rimas de rap, para expressar o descontentamento com as condições da internação, como a retirada da televisão dos quartos e do consumo de cigarro, e ameaçando provocar uma rebelião no recinto caso suas exigências não fossem atendidas.

Tomei conhecimento desta carta por meio de uma notícia no Portal G1[2]. Na única imagem da carta, que consta na matéria jornalística, achei interessante um trecho que relata parte das reivindicações: “[o]s mulequi ta revoltado o bagui ta chapadão cortaram o cobal e os cigarro do ladrão, tamo tudo indignado com esses coxinha cusão ainda pra completar arrancaram minha televisão”. Entretanto, o conteúdo da matéria jornalística só aborda o teor das ameaças e do risco de rebelião elaborado pelos jovens na carta, com falas de autoridades públicas consultadas indicando que iriam aumentar a segurança na unidade de internação – inclusive com a possível implantação de postos da polícia militar – e apurar o ocorrido para punição aos autores da carta. Nada foi mencionado a respeito das reivindicações dos jovens.  

O conteúdo desta carta, a qual só consegui ler uma parte, logo me chamou atenção pelo que ele propõe de desestabilização ao discurso adultocêntrico[3] sobre o lugar de crianças e jovens na produção dos seus direitos, políticas públicas, conhecimentos e ações sociais.

Uma primeira desestabilização é a carta em si, uma estratégia comunicativa, com uso da linguagem poética do rap e uma forma própria da língua portuguesa, em que os jovens expressam seus sentimentos, pensamentos e prováveis ações. O uso de ameaças e xingamentos faz parte de suas retóricas, mas é justamente a partir deste uso que emerge um significado diferente daquele sinalizado pela matéria jornalística: o de uma teorização outra sobre o atendimento socioeducativo. Esta é a primeira transgressão presente na carta, a de que os jovens estão expressando, a partir de suas vivencias concretas em uma unidade de internação, como e no que entendem que o atendimento socioeducativo precisa ser melhorado.

E esta é uma teorização construída com linguagem e corporeidade que emana da condição juvenil, mas, certamente, está articulada à marcadores de raça, classe e gênero, para estabelecer uma produção política sobre seus direitos e a recuperação de um patamar mínimo de bem-estar naquele recinto. E, reforço aqui, é um bem-estar na perspectiva juvenil e interseccional, em que o cigarro e a televisão são elementos centrais para sua garantia real.

Só nos resta imaginar o que teria acontecido se lhes tivessem dado a oportunidade de aprofundar estas indignações e reflexões, de modo a darem continuidade a avaliação deste serviço público. Não sabemos, porque isto não foi possível. O que sabemos é que a carta é um instrumento de afirmação anti-adultocêntrica da voz e da ação política destes jovens, e que trás, em seu âmago, um conteúdo que faz uso das retóricas do rap e da violência/ameaça para produzir uma enunciação outra sobre os direitos e o atendimento socioeducativo.

A segunda desestabilização é a própria ameaça de rebelião ou da autogestão juvenil dos atos e do espaço da rebelião. O discurso adultocêntrico tende a produzir uma valoração unicamente negativa da maioria dos espaços autogestionados por crianças e jovens que objetivam a confrontação das hegemonias sociais, entre elas a da relação adulto/não-adulto. Foi assim, por exemplo, com os rolezinhos[4], surgidos em 2013, em que encontros de jovens da periferia promovidos em shopping centers e parques de grandes centros urbanos, e articulados por meio das redes sociais virtuais, eram tratados pelos administradores dos estabelecimentos com repressão e criminalização, chegando até o ponto do fechamento dos locais para impedir o acesso deste público juvenil. Situação similar foi vivenciada por estudantes de escolas públicas organizados em grêmios estudantis quando estes, em 2016, decidiram ocupar suas escolas[5], em diversas cidades brasileiras, como forma de reivindicar mais investimentos e uma melhoria da qualidade da educação, e foram duramente reprimidos, sobretudo na fase inicial do movimento, pela polícia e por parte dos profissionais e gestores da educação.

O que os rolezinhos, as ocupações das escolas e as rebeliões têm em comum é a capacidade de desestabilizar o poder adultocêntrico ao retirar dos adultos o controle dos espaços de participação de crianças, adolescentes e jovens. É interessante notar como a maior parte do discurso do protagonismo infantojuvenil, tão propagando nos dias de hoje, está relacionado com espaços que possuem o controle total dos adultos ou são compartilhados por autorização destes com os sujeitos não-adultos, como as audiências públicas, os conselhos e as conferências de políticas públicas, e muitos espaços comunitários e familiares. Quanto mais inesperada é a criação destes espaços e movimentos autogestionados por sujeitos não-adultos, maior a tendência dos sujeitos adultos rechaçarem qualquer produção discursiva ou social das pessoas ali inseridas, utilizando de justificativas que, em seus fundamentos, reproduzem os imaginários adultocêntricos que objetivam desqualificar ou rejeitar a condição de sujeitos políticos, de conhecimento, de direitos e de desejos dos sujeitos não-adultos.

Mas são justamente estes espaços e movimentos que fogem ao controle adulto, como as rebeliões e as ações de movimentos juvenis, que trazem um grande potencial de reinvenção anti-adultocêntrica do lugar de crianças e jovens na sociedade, e de como podem contribuir para a construção de teorias outras sobre seus direitos, as políticas públicas e a democracia.

Por isso, toda vez que estas iniciativas ocorrerem, nós todos, os adultos e as adultas, precisamos controlar as nossas lentes adultocêntricas para identificar, ali mesmo onde o senso comum pré-conceitua o caos, a violência ou a irracionalidade, os elementos próprios da ação política infantojuvenil, marcado corporalmente por subjetividades/identidades interseccionais. São estes elementos que constroem os sentidos da luta por uma sociedade anti-adultocêntrica.  

 

Notas e Referências

[1] Unidade de internação utilizada para adultos, entre 18 e 21 anos, que ainda cumprem medidas socioeducativas.

[2] Matéria jornalística disponível no link: http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2016/06/carta-achada-com-jovens-infratores-no-df-tem-ameacas-de-morte-e-rebeliao.html

[3] É preciso sempre (re)lembrar que o adultocentrismo é uma relação de poder baseada em um sistema classificatório em que são agregados valores, de maneira hierarquizada, aos sujeitos que ocupam determinadas posições sociais e simbólicas, sintetizados na dicotomia adulto/não-adulto.

[4] Existe uma produção acadêmica considerável de análise das práticas de rolezinhos no Brasil. Vou indicar aqui apenas uma definição contida no Wikipedia, satisfatória para os intentos do texto. Conferir pelo link: https://pt.wikipedia.org/wiki/Rolezinho#:~:text=Rolezinho%20(diminutivo%20de%20rol%C3%AA%20ou,parques%20p%C3%BAblicos%20e%20shopping%20centers.

[5] Assim como os rolezinhos, o movimento de ocupação das escolas, que ganhou dimensões nacionais, foi também analisado em pesquisas e trabalhos acadêmicos. Aqui, coloco a definição do Wikipedia sobre ele, pois me parece satisfazer a uma compreensão básica pelo leitor ou a leitora, acessando o link: https://pt.wikipedia.org/wiki/Mobiliza%C3%A7%C3%A3o_estudantil_no_Brasil_em_2016

 

Imagem Ilustrativa do Post: close up photo of gavel // Foto de: Bill Oxford // Sem alterações

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