Sobre as pedras jogadas em Geni: também é crime o fato de Dilma ser mulher?

31/03/2016

Por Fernanda Martins e Marcelli Cipriani - 31/03/2016

Foi assim que me vi caminhando com extrema rapidez por um gramado. Imediatamente, um vulto de homem ergueu-se para interceptar-me. Nem percebi, a princípio, que os gestos daquela pessoa de aparência curiosa, de fraque e camisa engomada, eram a mim dirigidos. Seu rosto revelava horror e indignação. O instinto, mais que a razão, veio em meu auxílio: ele era um Bedel; eu era uma mulher. Aqui era o gramado; a trilha era lá. Somente os Fellows e os Estudantes têm permissão de estar aqui; meu lugar é no cascalho.

Wolf, Virginia. Um teto todo seu

Através de sua mais branda imaginação, pense em um recinto plural e supostamente democrático de uma Universidade, cujo público é predominantemente composto por estudantes do curso de Direito. Agora pense que, nesse local, um tema estava sendo debatido: o “constitucionalismo e populismo punitivo” – discussão, portanto, propícia para a conjuntura atual de instabilidade política e de violações de direitos na qual se encontra a realidade brasileira em tempos (não tão) recentes.

Imagine que a discussão em pauta recaía, propriamente, nos sentidos discursivos e nos significados que estão implícitos e explícitos quando da opção por certas palavras e por determinados termos a ser utilizados nesse tão clamado “combate à corrupção” que se percebe pelo país. Nesse cenário, alguém, de forma pontual, faz uma colocação: “são tempos [esses nossos] em que se exige a defesa da moralidade pública”. Talvez, em outros momentos de tempo e de espaço, a alusão à “moralidade pública” poderia passar despercebida como mecanismo de defesa de uma ordem colocada sob valores quaisquer. Contudo, por remeter à leitura imediata das condições políticas, sociais e econômicas que estão vinculadas ao seu uso, a expressão não passou batido, mas alavancou, em réplica, um pensamento específico: a violência de gênero.

Materializando tal reflexão, foi apontado que essa “moralidade pública” permanece a aprisionar mulheres, além de ainda justificar as mais longas violências de gênero que imperam no vocabulário misógino – o qual, por sua vez, sustenta a lógica do patriarcado. A expressão, por tanto já ter sido e continuar sendo utilizada para legitimar abusos nas mais múltiplas esferas, tem significado que, em aparência, não precisaria mais ser discutido: inclusive soa à escuta como uma história anterior, na qual a mulher que figurava como vítima de estupro via o julgamento passar pelo seu comportamento pessoal – em acordo ou não com a “moralidade pública” – e não pela conduta do agressor. Mas esses são tempos passados, poderíamos pensar.

Após constatado – quem sabe – o óbvio, o que se ouviu como tréplica foi que a “moralidade pública” ora defendida representava a integridade política do Estado brasileiro, e, portanto, não nutria relação com feminismo. Em face disso, enfim, uma dúvida fundamental rompeu do diálogo: será que o cenário político e o discurso de defesa da sociedade que perpassa a moralidade pública e a afronta às garantias mínimas do direito brasileiro realmente não tem relação com a força imperativa do machismo que nos assola?

Ao longo das últimas semanas, os brasileiros e brasileiras puderam conviver, em seus cotidianos, com o ápice da falsa polarização que vem acompanhando o país desde, pelo menos, as eleições de 2014. O avançar das investigações da Lava-Jato – com a seletiva cobertura midiática acerca da operação e dos inúmeros atos que a integraram, assim como com a discórdia e a reivindicação de juristas manifestadas por todos os cantos (pela questionável legalidade e constitucionalidade de procedimentos) – também alavancou a explosão de um outro fenômeno: a intolerância política e a dificuldade generalizada do convívio com a pluralidade de pensamento.

Vivemos em um país que, nos últimos 60 anos, já linchou mais de um milhão de pessoas, e que permanece a conviver com, em média, um linchamento por dia (MARTINS, 2015). Além disso, continuamos imersos em uma frágil democracia, ainda distantes da plena transição do período ditatorial (1964-1985). Diante dessa conjunção de fatores, não é de se estranhar que, em um momento delicado, no qual binarismos políticos são colocados à frente das questões mais profundas (e menos simplistas) que os alicerçam, o ódio coletivo pelo diferente exponha – não raro com orgulho – sua face desavergonhada. Esse cenário tem sido percebido mediante expressões diversas: de ofensas àqueles e àquelas que se vestem de vermelho até agressões físicas e verbais motivadas por preferências ideológicas.

Em destaque, no olho do furacão e iluminada por potentes holofotes, encontra-se a Presidenta Dilma Rousseff, primeira mulher a assumir o mais alto cargo do executivo brasileiro e que tem sofrido violências como essas muito antes de notarmos seu recente espraiamento pela sociedade brasileira como um todo. A despeito de comandar uma gestão governamental amplamente criticável, e de muito ter deixado a desejar no exercício de sua função – inclusive no que se refere às temáticas de interesse feminista, como o direito ao aborto – Dilma vem pagando duramente, há tempos, por outro crime: o de ser mulher.

A condenação sumária da Presidenta, decorrente da acusação pelo delito original de ter nascido no corpo que entendemos por “feminino” não vem, como já colocado, de hoje. Recorda-se, por exemplo, que quando se pronunciou publicamente para sancionar a “Lei do Feminicídio”, Dilma foi recebida por um sem-fim de panelaços acompanhados de xingamentos que nada tinham a ver com suas competências profissionais, mas com sua condição de mulher. A opção pelo endurecimento penal, debatida sem consenso entre teóricas do direito penal e da criminologia, assim como entre integrantes de diferentes vertentes feministas – com algumas a entendendo como vitória, outras como reforço à própria violência – não é, todavia, o que se coloca em questão nesse momento. Dilma ser recebida com ofensas sobre sua sexualidade, aparência ou estado civil ao anunciar o reconhecimento estatal do gênero como institucionalmente importante não é apenas violência simbólica, é declaração coletiva de misoginia.

Misoginia também ocorreu quando alguns indivíduos decidiram que banalizar o estupro da Presidenta seria uma boa ideia: estimulados pelo aumento do preço da gasolina que o país vem enfrentando, mandaram fazer adesivos com o rosto de Dilma para ser colados nos carros, ao redor do compartimento onde é colocada a bomba de combustível. Não deve ser significativo para essas pessoas, o Brasil possuir uma taxa de violência sexual altíssima (de acordo com o mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 1 estupro a cada 11 minutos), e uma subnotificação preocupante do delito, dado que apenas 35% dos casos são reportados às polícias, o que aumentaria o índice das ocorrências para mais de 140.000 ao ano.

A naturalização de um ato de horror que atinge não apenas o corpo, mas a dignidade e a saúde emocional das mulheres, em uma nação imersa naquilo que se chama de “cultura do estupro” – que minimiza o sofrimento e a dor das vítimas, por considerar que elas são as culpadas pelas violências que as acometem –, não pode ser encarada como mera piada ou ingênua brincadeira: é uma forma de legitimar que permaneçamos a tolerar e mesmo a incentivar tal crime, a ponto de o mesmo seguir fazendo parte de nossa cultura. Dilma, estampando os adesivos – que, inclusive, foram postos à venda online – voltou a pecar por ser mulher: discordamos de seu governo? Então ela merece ser ilustrada, nos veículos automotores da nação, sofrendo um estupro.

Soma-se a esses casos – antes exemplificativos do que qualquer outra coisa, pois duas peças integrantes de um mosaico muito mais amplo de violências de gênero – as recorrentes críticas ao seu peso e às suas roupas: novamente, Dilma erra por ser mulher, já que, aparentemente, ninguém se preocupa com as dietas e com o estilo da vestimenta de representantes masculinos da política institucional. Como colocou Simone de Beauvoir há quase 70 anos, à mulher não está destinado o espaço público e político, mas quando a mesma decide, a despeito das dificuldades, imiscuir-se em tal cenário, precisa também apresentar-se como “mulher” – e não a que é definida por sua identidade de gênero ou por sua designação biológica, mas a que é constituída através das infinitas expectativas sociais e dos múltiplos e perversos rituais que permanecem a ditar as vidas femininas (BEAUVOIR, 1980).

Com o recente acirramento das posições políticas e com a imaturidade político-democrática que o acompanha, não foram poucos os desejos de morte, estupro, espancamento e mesmo tortura destinados à Presidenta, estampados seja em opiniões virtuais, seja em cartazes espalhados por manifestações pró-impeachment no território nacional. Nesse sentido, é irrelevante haver descontentamentos próprios ao exercício de sua candidatura, assim como não é importante o fato de que o que há para discordar em Dilma se resume ao cenário institucional e representativo: as indignações transcendem a Presidenta Dilma e alcançam a mulher Dilma, e as punições requeridas, portanto, perpassam não apenas por aquelas destinadas a quaisquer pessoas que possam ter cometido ilegalidades, mas devem atingir, diretamente, sua condição feminina.

Se trata, assim, não de um linchamento qualquer, mas de um linchamento imbricado em questões de gênero: Geni, maldita, não só é feita para apanhar, como também é boa de cuspir. Nessa esquizofrenia coletiva, que não respeita nada nem ninguém – quem dirá as mulheres –, deixa-se passar um detalhe importante: somos, também, milhões de condenadas pelo pecado primeiro de termos nascido sob a pecha do feminino. E, como mulheres, igualmente pagamos duras penas por isso em todos os momentos – da casa à rua, das relações privadas às públicas. Podemos, como indivíduos, condenar com energia e muita veemência todos os posicionamentos da Presidenta Dilma, mas seguimos compartilhando, com a mulher Dilma, o eterno estigma de Geni. Dessa feita, as violências que lhe atingem como tal dizem respeito a cada uma de nós.

Daí, quem sabe, precisemos compreender que os trilhos da democracia que se busca passam necessariamente pelos fortes passos da consciência dos feminismos. E, ainda, nos convencer, de uma vez por todas, de que para rachar a ordem instituída na violência e na opressão, ou para furar a lógica antidemocrática dos discursos de ódio, também é necessário partir os discursos misóginos. Sem isso, continuaremos fadadas àquilo que alguns insistem em chamar de “moralidade pública”, sempre constituída sob o olhar do patriarcado, sem que a partida no sentido da democracia seja realmente dada. Continuaremos, portanto, jogando pedras em Genis.


Notas e Referências: 

BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo II: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

MARTINS, José de Souza. Linchamentos: a justiça popular no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.


Fernanda Martins. Fernanda Martins é Mestre em Teoria, Filosofia e História do Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Professora substituta na Universidade Federal de Santa Catarina e professora na Universidade do Vale do Itajaí. E-mail: fernanda.ma@gmail.com .


Marcelli CiprianiMarcelli Cipriani é Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC – PUCRS), e do Grupo de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Feminismos (GP-GSFem – PUCRS); bolsista de Iniciação Científica do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional (PRISMAS – PUCRS).


Imagem Ilustrativa do Post: Sad young woman // Foto de: the.mutator // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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