Coluna Por Supuesto
A abordagem dos fatos da história, a partir da política, da economia e do direito, bem como de tantas outras disciplinas, tem como pedra fundamental e infeliz o surgimento e desenvolvimento das guerras. Com efeito, ao redor das guerras há toda sorte de imagens, teorias, reflexões, pontos de vista sobre seus sentidos, suas técnicas, as estratégias e as condições para vencer ao considerado não apenas “adversário”, mas “inimigo”, que deve ser literalmente aniquilado, destruído, eliminado fisicamente ou submetido ao poder do vencedor.
Um exame rápido dos filmes, seriados ou documentários que atualmente são veiculados nos canais de televisão, sugere e demonstra a forma como se invertem recursos em oferecer os pormenores, as “façanhas” e os movimentos militares dentro do cenário de operações bélicos. Ao que parece, falar de paz não gera a mesma audiência. Igualmente são contadas com os dedos as publicações que abordam a paz como uma categoria histórica, política e jurídica, com conteúdo próprio. Não raro se fala, em lugar de “período de paz”, do “período de entreguerras”. A paz é apresentada como algo excepcional, numa lógica invertida do desejável. A guerra, um sintoma ou uma realidade permanente ou quase permanente de nosso tempo que deve ser analisada exaustivamente. Acho que como académicos do Direito ou das Relações Internacionais devemos fazer essa autocrítica, enfatizando a paz como um autêntico direito humano, fundamental e com características próprias.
Juridicamente, no campo do Direito Humanitário há uma distinção clássica entre o jus in bello ou antigo direito da guerra e o jus ad bellum ou direito de fazer a guerra. Como se sabe, a partir de 1945, com a criação do Sistema Internacional das Nações Unidas, em cuja base se encontra a própria ONU, a guerra está proscrita, sendo sua admissão excepcional e com prévio esgotamento de um conjunto de formas e métodos de solução pacífica das controvérsias. Isso significa que a premissa para poder interpretar as situações atinentes aos conflitos internacionais é a de que o Direito Internacional Público, depois de uma evolução ao longo dos séculos, proíbe o uso privado da força nas relações internacionais.
Não é demais lembrar sempre que o primeiro dos propósitos da ONU consiste em
“manter a paz e a segurança internacional e, para esse fim: tomar as medidas coletivas eficazes para prevenir e eliminar as ameaças à paz e para suprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz; e conquistar por meios pacíficos, e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, o ajuste e solução de controvérsias e situações internacionais susceptíveis de conduzir a perturbações à paz”.
Por isso, e na sequência da exposição há que dizer, com todas as letras, que a existência de bloques ou organizações com fins militares, como é o caso da OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte - sob o regime de alianças entre Estados, que de forma reiterada tem mostrado sua vinculação com os grandes grupos econômicos que comercializam armas de combate e potencializam práticas contrárias à paz, constituem um desafio e uma ameaça constante aos propósitos da ONU e do Direito Internacional Público desde sua criação no começo da Guerra Fria.
A OTAN, surgida como barreira militar à União Soviética, faz parte desde àquela época do pacote de expansão hegemônica dos Estados Unidos na Europa, junto com o Plano Marshall e esse interesse expansionista foi reforçado com a criação da Comunidade Econômica Europeia (CEE). A OTAN, na sua génese, se inspira na necessidade de legitimar a presença permanente de tropas dos EUA e seus aliados, sejam potências dominantes ou não – no conceito de Martin Wight [1]- naquele continente, e se inscreve no conjunto de organizações de amplificação e alargamento do poderio econômico e militar da estrutura hegemônica de poder no sistema internacional. Sua tática de expansão geopolítica, consiste especialmente na cooptação de pequenos Estados, convertidos em sócios menores, a partir de formas de divisão interna e fragmentação territorial. Essas manobras tem sido muito bem analisadas por autores no Brasil como Samuel Pinheiro Guimarães [2]e Moniz Bandeira. [3]
Porque é preciso afirmar isto? Porque inexplicavelmente observamos como, sem se preocupar muito pela caracterização jurídica que deve ser necessariamente feita para uma análise mais criterioso da atual conjuntura, se insiste em tratar a OTAN como se fosse poder público bélico. Isso não é verdade! O poder público bélico e o uso público da força esta sustentado em critérios para sua constituição e uso, ligados aos propósitos da ONU, ainda que, como muito bem lembra Correia Baptista, a grande maioria dos efetivos sob a distinção de “soldados da ONU” são organizados nacionalmente e fazem parte de tropas fornecidas pelos Estados membros da ONU.
Na situação da Colômbia, que conhecemos não só de perto, senão do próprio transcorrer da vida e nossas opções - e que até as vezes nos faz reiterativos e odiosos - distingue-se claramente a ocupação militar dos Estados Unidos e a sociedade Colômbia-OTAN que redunda em 7 bases militares no território do país, e as práticas de ingresso humanitário de forças para libertação de reféns ou distribuição de recursos, por exemplo. E é claro que a OTAN não é a ONU, senão uma forma de ocupação que juridicamente se enquadra no poder bélico privado.
Não entraremos em distinções, nesta breve coluna, de situações nas quais a decisão é pública, mas a execução depende de comando militar privado. Ou naquelas nas quais existe tratado que autoriza a OTAN a atuar militarmente usando o território. Para cada caso há exame de efeitos externos e responsabilizações concretas.[4] Ainda assim é claro que a OTAN é um bloque militar para a guerra e suas decisões sobre ações bélicas são de exclusiva responsabilidade dos Estados que a integram.
Destarte, qualquer análise da situação hoje vivida na Ucrânia deve considerar essas condições previas, numa visão mais realista e longe dos devaneios e espetacularizações jornalísticas, que podem estar muito distantes de prestar um serviço ligado à necessidade de efetivar o direito à informação sobre assunto tão delicado.
Para ninguém é segredo que o governo da Ucrânia, após o golpe de estado de 2014, tem sido aliado do projeto expansionista da OTAN nessa região, exigindo inclusive seu rearmamento na Conferência de Munique que culminou há alguns dias. A ausência da Rússia na Conferência e as decisões tomadas em nada contribuíram para gerar um clima de confiança regional. Todos os Estados da região manifestaram que em matéria de paz e segurança nas fronteiras, algo que constitui a base de qualquer interesse nacional, existiam ameaças. Singularmente, e para compreender melhor o assunto, a zona de influência dos Estados Unidos, um Estado bem distante do cenário bélico, é ao redor da Ucrânia. Ou seja, vivemos num mundo no qual os EUA fazem parte do teatro da guerra – no sentido da lógica de Clausewitz - de praticamente qualquer canto do planeta, ainda que geograficamente se encontre a centos de quilômetros, como neste caso, de Ucrânia.
Nas atuas condições, quando a guerra foi assumida como uma infeliz opção, o sistema da ONU dá uma amostra de debilidade, de falta de coesão e de inconsistência. Por isso, perde a ONU e o regime de violência controlada sobre a base da contenção mútua, concretizado na existência do Conselho de Segurança, que já vem capenga desde incluso antes das operações em Iraque. E logicamente, perde a humanidade em seu conjunto.
É sabido que os Estados Unidos utilizaram e utilizam o expediente da “guerra preventiva”, à margem de qualquer norma do Direito Internacional. Também é uma verdade que as chamadas “missões humanitárias” da OTAN não passam de tropas de assalto. Tais missões são regularmente observadas com receio por vários membros da comunidade de Estados, simplesmente porque em nome da paz, da democracia e dos direitos humanos, se constata uma persistente manipulação de emoções para conceder “legitimidade” a operações militares onde as extrapolações e a posterior impunidade são constantes. Basta lembrar, por exemplo, da infeliz “Odisseia no Amanhecer” na Líbia. E tudo isso é feito á margem do Direito Internacional, da paz e a segurança. Vale lembrar que nunca houve em tais intervenções a demonstração do estado de necessidade que, admitamos, ainda que de forma polêmica, tem sido admitida por parte da doutrina.
Também, recordemos que, se falamos em dimensão mais panorâmica, dentro do funcionamento do sistema econômico predominante as guerras cumprem uma função: servem para queimar capitais. Constituem um dos recursos para sair das crises. Trata-se da famosa ideia de “destruir para criar”, que faz parte dos pilares do sistema. E para essa “destruição criativa” Estados inteiros foram submetidos e dizimados.[5] A grande indústria da reativação econômica sobre a base da reconstrução está no Iraque, comprovando a tese.
Nossa preocupação é que um Direito Internacional cifrado exclusivamente nas belezas dos textos normativos, que consagram aspirações e intenções extremamente válidas, mas sem reflexão sobre o conjunto ou as bases do sistema internacional e caracterizações justas sobre a realidade das organizações internacionais, não tem nenhuma serventia em termos práticos e nada diz para as vítimas dos conflitos de alta, média e baixa intensidade (para utilizar a lógica e linguagem dos Documentos de Santa fé).
E desde logo, de outro lado, dentro do funcionamento do sistema político uma guerra constitui um recurso desesperado para conquistar a unidade nacional contra um inimigo comum. Essa situação já tem sido muito bem utilizada em outros momentos da história. A popularidade do governante gira em torno a sua capacidade de criar um inimigo capaz de infundir medo, porém atacável e vencível. A construção do inimigo é uma arte que Goebbels já defendia nos seus escritos. E tudo isto, á margem do Direito Internacional e de suas razões e objetivos.
É claro que caracterizar a OTAN não eximirá a Rússia de responsabilidades. O estado russo está também sujeito ao exame da licitude da sua ação, neste caso, a partir da premissa argumentativa que se esboça de tutela defensiva e da doutrina das condições objetivas de atividade reativa contra situação ativa de perigo iminente. A proteção dos seus cidadãos está no âmbito dos poderes reconhecidos pelo Direito Internacional, não assim, a extraterritorialidade da sua ação, que deve ser examinada.
Uma saída política, negociada, concertada, sempre é possível. Que é a menos custosa em termos de perdas de vidas humanas, de desgaste para o sistema e para a humanidade como um todo. Resta saber se as políticas externas da grande estrutura de poder hegemónica e que conduz o dia a dia das RI pretendem isso. Mas há que insistir na necessidade da paz, de um sistema internacional geral, que possua sistemas de segurança continentais compartilhadas, de forma a gerar condições para o cumprimento dos desideratos da ONU.
Henry Kissinger, em artigo intitulado Como termina a Crise da Ucrânia, originalmente publicado no 2014, quando o golpe de estado, mas republicado pelo Washington Post recentemente, expunha algumas questões de fato importantes. Mas de tudo, me chamaram a atenção duas questões que ficam de aprendizado: primeiro, que a habilidade política não consiste em saber como iniciar uma guerra, senão em saber como encerrá-la; logo, que uma das virtudes da política externa consiste em determinar quais são as prioridades, isto é, o que é o fundamental em cada situação. E o fundamental, por supuesto, é a paz e a vida!
Notas e Referências
[1] Martin Wight. A Política do Poder. Clássicos IPRI.Brasilia: FUNAG. 2002.
[2] Veja-se Quinhentos Anos de Periferia. 2ª edição. POA/RJ: UFRGS/Contraponto. 2000.
[3] Consulta: As relações perigosas Brasil – Estados Unidos. RJ: Civilização Brasileira. 2004.
[4] O Poder Público Bélico em Direito Internacional. Coimbra: Almedina 2003.
[5][5] Vale a pena a leitura de Shumpeter, mas também, desde logo, a também conhecida Doutrina do Choque de Naomi Klein publicada pela Editora Nova Fronteira. 2008.
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