Comentários sobre a “intervenção federal” no Rio de Janeiro têm abundado no Brasil, tanto por partes de cronistas cotidianos, baseados no senso comum, que “jogam para a torcida”, quanto de juristas muito conceituados, mesmo correndo o risco de redundar em algum ponto, achamos interessante deixar o nosso registro sobre esse fato que merece, no mínimo, o adjetivo de pitoresco.
Em primeiro lugar, o Brasil chegou a um ponto tal que todo debate jurídico (em especial do direito constitucional) encontra-se totalmente capturado por um dualismo muito intenso, semelhante a uma espécie de zoroastrismo[1] político, ou até mesmo de um mundo seccionado entre amigos e inimigos, como via o politólogo alemão Carl Schmitt[2] (1888-1985), todavia, nessas breves linhas buscamos nos furtar de qualquer posicionamento partidário, para que eventual apoio ou crítica ao atual governo não comprometa a seriedade da análise.
O federalismo é a fórmula acolhida por todas as nossas Constituições do período republicano, apenas a Carta Imperial de 1824 escolheu pela fórmula do Estado unitário, não obstante o fato de que o federalismo brasileiro é um modelo bastante diverso de experiências de Estado federal espalhadas pelo mundo, tais como a alemã ou estadunidense.
Na prática, a própria ideia de Estado federal brasileiro é muito controversa, especialmente se observarmos o desenvolvimento desta experiência no Brasil após o Estado Novo (1937-1945), que alterou substancialmente o perfil do nosso federalismo, concedendo demasiado poder à União (na verdade ao presidente da república, pois, não nos esqueçamos que o Estado novo era uma ditadura com tons claramente fascistas) em detrimento dos outros componentes do pacto federativo e, na realidade, essa herança do Estado Novo perpetuou-se nas experiências constitucionais consecutivas, ou seja, todas as nossas Constituições a partir de 1946, independentemente de serem democráticas ou não, tiveram como característica uma corruptela de Estado federal, pois, ao contrário do modelo existente nos Estados Unidos, temos estados federados fracos, com pouca autonomia e uma União muito forte, com excessivas competências legislativas e atribuições mais diversas.
Na verdade, sabemos que o Rio de Janeiro há tempos apresenta um quadro caótico tanto na segurança pública quanto em outros setores, mas o que ganha as manchetes há mais de vinte anos é, com certeza, a guerra travada entre grupos rivais (facções, milicianos, dentre outros) pelo controle do tráfico de drogas, controle de operações econômicas nas comunidades e as combalidas forças de segurança, todavia, é de se estranhar que uma medida tão drástica tenha sido tomada justamente num ano eleitoral, principalmente se pensarmos que a intervenção nunca havia sido utilizado no período conhecido como VI República (1985-) e, especialmente, pedido de intervenção chegou a custar anteriormente o cargo de um prestigiado Ministro da Justiça[3].
Todavia, deixando este histórico de lado, em termos jurídicos, o que podemos refletir sobre a “intervenção federal” no Rio de Janeiro?
Não que a falência (em todos os sentidos) do Rio de Janeiro não demande medidas enérgicas, contudo, a forma como as medidas estão sendo tocadas, essas também, consistem em catástrofes.
Uma vez mais, o Estado Federal caracteriza-se como um sistema de organização política na qual aos estados membros é atribuída autonomia de governo, ou seja, dentro dos limites fixados pela Constituição, a regra é a liberdade dos entes federados, sendo a intervenção da União em suas competências uma espécie de ultima ratio, devendo ser tomada apenas em situações extremas.
Como tem sido amplamente divulgado, o Decreto n. 9.288/2018 estabeleceu que a intervenção estaria restrita ao campo da segurança pública onde, antes mesmo da assinatura do decreto, informou-se que o exército assumiria as funções ligadas à segurança pública e que todos os responsáveis desta área no governo fluminense seriam exonerados.
O que torna tudo mais estranho é falar de uma suposta intervenção federal no Rio de Janeiro onde todo o governo local tenha sido mantido, com exceção da pasta de segurança, ora, a intervenção federal é medida extrema onde todo o controle da unidade federada é exercido pela União, por meio da figura do interventor, este, um comissário ligado diretamente ao presidente da república.
O que temos em mente é que a intervenção, da forma como prevista na Constituição Federal (art. 34) não admite qualquer forma de “meio termo”, tal como preconizado pelo decreto em questão, sua inconstitucionalidade é patente justamente pelo fato de que a intervenção tem como pressuposto a suspensão das autoridades constituídas em face de graves situações taxativamente enumeradas pelo próprio texto constitucional.
Por outro lado, o próprio texto do decreto faz menção, e isto tem sido pouco comentado, ao art. 136 e seguintes da Constituição (Estado de Defesa), que prevê a decretação de situação excepcional para a resolução de problemáticas restritas a determinadas regiões do país, todavia, qual a motivação da impropriedade?
Acredito que o motivo mais evidente desta “impropriedade deliberada” reside no tempo de duração das medidas, pois, o Estado de defesa não poder ser decretado por tempo superior a trinta dias, podendo ser prorrogado uma única vez, por igual período (art. 136, §2º da Constituição), enquanto que a intervenção, a rigor, não possui limitações temporais quando de sua decretação, sendo o texto do decreto claro que duraria pouco mais de dez meses, ou seja, num único ato normativo, foi determinada uma situação excepcional por cerca de trezentos dias.
Portanto, fica evidente a franca inconstitucionalidade do decreto n. 9.288/2018, pois, pela própria leitura da Constituição, não se mostra possível a decretação de “intervenção pela metade”, sendo a criação desta situação baseada numa leitura duvidosa de nossa Carta Política, com significados que não poderiam ser extraídos nem mesmo pelos mais argutos interpretativistas.
Por outro lado, fica claro o escamoteamento do instituto da intervenção federal e, seu uso inapropriado foi claramente deliberado para a criação de uma ferramenta institucional inexistente em nosso arranjo jurídico-político: a decretação de um Estado de Defesa por período superior a trinta dias, a partir de uma breve leitura do texto do decreto essa questão salta aos olhos.
Por fim, o agravamento de nossa crise institucional, que se arrasta por quase quatro penosos anos nos motiva a lançar uma questão que, apesar de breve, tem uma muito complexa resposta: ainda há espaço no Brasil para a aplicação da Constituição?
[1] Zoroastrismo é uma religião de origem persa, onde se registrou pela primeira a luta entre divindades representativas do bem (Aúra-Masda) e do mal (Arimã).
[2] Cf. SCHMITT, Carl. O Conceito do Político. Rio de Janeiro: Vozes, 1992.
[3] Em 1998, o então Ministro da Justiça, Miguel Reale Jr., tendo em vista uma suposta situação de grande poder do crime organizado no Espírito Santo, teve seu pedido vetado pelo então Procurador-Geral da República, Geraldo Brindeiro, veto este que encorajou aquele a apresentar seu pedido de demissão da pasta da Justiça.
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm, acesso em 19/02/2018.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed, Coimbra: Almedina, 2003.
MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed, São Paulo: Saraiva, 2011.
MIRANDA, Luiz Elias. O Estado de Exceção na Constituição de 1988. Revista Direito e Liberdade v. 11, n. 2, 2009.
SCHMITT, Carl. O Conceito do Político. Rio de Janeiro: Vozes, 1992.
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