Sobre a convenção de arbitragem e as ações possessórias

12/08/2022

A convenção de arbitragem pode ser entendida como item negocial que autoriza às partes dirimirem conflitos intersubjetivos de interesse relacionados a direitos patrimoniais disponíveis em âmbito alheio ao da jurisdição. Dito de outro modo, é meio alternativo de pacificação da sociedade. 

A respeito do tema, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da legislação (Lei nº 9.307/96) que, no Brasil, normatizou o exercício da arbitragem (SE 5206 AgR, Relator Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 12/12/2001, DJ 30-04-2004 PP-00059 EMENT VOL-02149-06 PP-00958)” 

Com efeito, para além de mera autorização, uma vez estipulada cláusula compromissória ou compromisso arbitral ficam as partes obrigadas a se submeterem à autoridade dos árbitros, sem que se caracterize ofensa ao princípio da universalidade da jurisdição, a seguir transcrito: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.  (art. 5º, Inc. XXXV, da Constituição Federal). 

Não por outro motivo, o entendimento prevalente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a convenção de arbitragem ostenta força vinculante e caráter obrigatório. (REsp 1733685/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 06/11/2018, DJe 12/11/2018) 

A despeito das considerações precedentemente destacadas, questiona-se se os árbitros acumulariam atribuição para o julgamento das ações cuja eficácia sentencial preponderante é executiva ou mandamental, a exemplo das ações possessórias. O questionamento é pertinente diante da constatação de que nas ações executivas lato sensu e nas mandamentais não há marcada separação entre a fase cognitiva e a executiva, não se devendo desconsiderar que aos árbitros não é dado determinar diretamente medidas de execução.  

O Superior Tribunal de Justiça, a respeito do tema, ressaltou que os juízos arbitrais são destituídos do poder de império, de modo que as suas decisões não se revestem do caráter de coercibilidade próprio da jurisdição. Por essa razão, nas ações em que a força eficacial da sentença é preponderantemente executiva a convenção de arbitragem não afasta a apreciação do Poder Judiciário. Examinem-se as seguintes ementas: 

RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL POR PERDAS E DANOS CUMULADA COM PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS FUNDADA NA RELAÇÃO CONTRATUAL EXISTENTE ENTRE AS PARTES. EXISTÊNCIA DE CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA NO CONTRATO SOCIAL. AJUIZAMENTO DE ANTERIOR AÇÃO POSSESSÓRIA QUE NÃO IMPLICA RENÚNCIA AO COMPROMISSO ASSUMIDO. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. Cinge-se a controvérsia a definir se o juízo estatal é competente para processar e julgar ação de responsabilidade civil por perdas e danos cumulada com pedido de indenização por danos morais fundada na relação societária existente entre as partes, tendo em vista a existência de cláusula compromissória no contrato social objeto da demanda.

2. A pactuação de cláusula compromissória possui força vinculante, obrigando as partes da relação contratual a respeitar, para a resolução dos conflitos daí decorrentes, a competência atribuída ao árbitro.

3. É indiscutível nos autos a existência de cláusula compromissória que alcança a presente demanda e afasta a jurisdição estatal, já que as partes livremente acordaram que "todas as disputas, controvérsias ou reivindicações de qualquer tipo que surjam ou que estejam relacionadas com o presente contrato, seu objeto, sua violação, sua rescisão, sua invalidade" serão resolvidas por arbitragem.

4. O ajuizamento, pela parte demandada, de anterior ação de reintegração de posse em face da primeira autora não implica renúncia ao compromisso assumido.

5. A lide possessória, com origem em outra relação contratual (comodato verbal), extrapolava a seara societária, pois limitada a discussão à falta de interesse em manter o comodato verbal que tinha atingido seu termo final, com o intuito exclusivo de obter a desocupação total e reaver os imóveis objeto daquela lide.

6. É plausível o ajuizamento de ação possessória diretamente perante o Poder Judiciário, com o objetivo de obter prontamente a determinação de reintegração na posse de imóveis esbulhados, pois o árbitro não possui poder coercitivo direto, sendo-lhe vedada a prática de atos executivos.

7. À vista da pactuação de cláusula compromissória, que implica a derrogação da jurisdição estatal, o presente processo deve ser extinto, sem resolução de mérito, nos termos do art. 485, VII, do CPC/2015 (CPC/73, art. 267, VII).

8. Recurso especial provido.

(REsp 1678667/RJ, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 06/11/2018, DJe 12/11/2018) 

RECURSO ESPECIAL. LOCAÇÃO DE IMÓVEL COMERCIAL. AÇÃO DE DESPEJO POR FALTA DE PAGAMENTO E ABANDONO DO IMÓVEL. EXISTÊNCIA DE CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA ESTABELECENDO QUE A REGÊNCIA E A SOLUÇÃO DAS DEMANDAS OCORRERÃO NA INSTÂNCIA ARBITRAL. DESPEJO POR FALTA DE PAGAMENTO E ABANDONO DO IMÓVEL. NATUREZA EXECUTÓRIA DA PRETENSÃO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO TOGADO PARA APRECIAR A DEMANDA.

1. A cláusula arbitral, uma vez contratada pelas partes, goza de força vinculante e caráter obrigatório, definindo ao juízo arbitral eleito a competência para dirimir os litígios relativos aos direitos patrimoniais disponíveis, derrogando-se a jurisdição estatal.

2. No processo de execução, a convenção arbitral não exclui a apreciação do magistrado togado, haja vista que os árbitros não são investidos do poder de império estatal para a prática de atos executivos, não tendo poder coercitivo direto.

3. Especificamente em relação ao contrato de locação e sua execução, o STJ já decidiu que na "execução lastreada em contrato com cláusula arbitral, haverá limitação material do seu objeto de apreciação pelo magistrado. O Juízo estatal não terá competência para resolver as controvérsias que digam respeito ao mérito dos embargos, às questões atinentes ao título ou às obrigações ali consignadas (existência, constituição ou extinção do crédito) e às matérias que foram eleitas para serem solucionadas pela instância arbitral (kompetenz e kompetenz), que deverão ser dirimidas pela via arbitral. A exceção de convenção de arbitragem levará a que o juízo estatal, ao apreciar os embargos do devedor, limite-se ao exame de questões formais do título ou atinentes aos atos executivos (v.g., irregularidade da penhora, da avaliação, da alienação), ou ainda às relacionadas a direitos patrimoniais indisponíveis, devendo, no que sobejar, extinguir a ação sem resolução do mérito" (REsp 1465535/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 21/06/2016, DJe 22/08/2016).

4. A ação de despejo tem o objetivo de rescindir a locação, com a consequente devolução do imóvel ao locador ou proprietário, sendo enquadrada como ação executiva lato sensu, à semelhança das possessórias.

5. Em razão de sua peculiaridade procedimental e natureza executiva ínsita, com provimento em que se defere a restituição do imóvel, o desalojamento do ocupante e a imissão na posse do locador, não parece adequada a jurisdição arbitral para decidir a ação de despejo. Com efeito, a execução na ação de despejo possui característica peculiar e forma própria. Justamente por se tratar de ação executiva lato sensu, verifica-se ausente o intervalo que se entrepõe entre o acatamento e a execução, inerente às ações sincréticas, visto que cognição e execução ocorrem na mesma relação processual, sem descontinuidade.

6. Na hipótese, o credor optou por ajuizar ação de despejo, valendo-se de duas causas de pedir em sua pretensão - a falta de pagamento e o abandono do imóvel -, ambas não impugnadas pela recorrente, para a retomada do bem com imissão do credor na posse. Portanto, há competência exclusiva do juízo togado para apreciar a demanda, haja vista a natureza executória da pretensão.

7. Recurso especial não provido.

(REsp n. 1.481.644/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 1/6/2021, DJe de 19/8/2021.) 

Por influência da doutrina de Pontes de Miranda, os efeitos da tutela jurisdicional são classificados em cinco categorias: declaratória, constitutiva, condenatória, executiva lato sensu e mandamental. 

Em verdade, de acordo com o aludido doutrinador, nem todas as ações possessórias compreendem eficácia sentencial preponderantemente executiva, a título de exemplo, as ações em que se busca a manutenção da posse resultam em sentença de eficácia preponderantemente mandamental: 

Ação mandamental e sentença mandamental. Se a sentença, preponderantemente, manda, provavelmente a declaratividade é 4 e a constitutividade 3. Às vezes, porém, a eficácia mediata passa a ser de condenatoriedade (caução em ação cominatória; ação de manutenção de posse; extinção de usufruto ou fideicomisso, sem ser por culpa do usufrutuário ou do fideicomissário); ou de executividade (ação de manutenção provisória da posse, se duas ou mais pessoas se dizem possuidoras; ação de habilitação de herdeiros nos casos de já terem sido entregues à Fazenda Pública os bens arrecadados; ação de embargos de terceiro contra a arrecadação de bens da herança; ação de abertura de sucessão provisório; ação do ausente que aparece depois da sucessão definitiva, acudindo à provocatio ad agendum

Não obstante, é induvidoso que as sentenças de eficácia preponderantemente mandamental, igualmente, exigem do julgador poder de império. Ademais, o que importa para a análise em questão é constatar que nas ações possessórias não se verifica a actio judicati, ou seja, a existência de um procedimento autônomo para o cumprimento de sentença. 

Nesse sentido, convém trazer a lume a lição de Athos Gusmão Carneiro: 

Ora, o juiz arbitral não detém os poderes inerentes ao imperium, ou seja, para ordenar ou efetuar modificações no plano dos fatos 

(omissis

Com a habitual propriedade, expõe J. E. Carreira Alvim ser forçoso reconhecer que o árbitro só tem do juiz romano a jurisdictio, que importa no poder de conhecer (cognitio) e julgar (iudicium), enquanto o juiz togado tem, também, o imperium, do que resulta o seu poder de executar a sentença, fazendo efetivos os atos constritivos da liberdade individual no caso concreto; o que não significa que, faltando ao árbitro o imperium, perca a sua atividade o caráter jurisdicional. 

(omissis

Se a pretensão for preponderantemente declaratória, a sentença arbitral dirá em definitivo sobre a existência, inexistência ou modo de existir da relação jurídica (eficácia satisfativa plena); se pretensão constitutiva, a sentença arbitral constituirá ou desconstituirá a relação de direito (eficácia satisfativa plena); se pretensão condenatória, a sentença arbitral impõe-se como título executivo judicial, que servirá de base ao processo de execução perante o juízo togado; se mandamental ou executiva, o árbitro solicitará ao juiz togado a expedição do mandado que couber. 

Como é elementar, nada impediria nas ações possessórias o exame dos fatos pelo árbitro, no que se limitasse a declará-los, ressalvando-se que eventual provimento promanado do aludido juízo careceria de eficácia executiva ou mandamental, portanto, exigindo-se a posterior atuação do Poder Judiciário para que fosse determinada a expedição do respectivo mandado. 

Nessa linha argumentativa, convém trazer à baila os ensinamentos de Cândido Rangel Dinamarco no sentido de que realizações sem prévia decisão careceriam de significado teleológico, na mesma medida em que decisões sem condições de efetividade não são aptas a alterar a realidade e, portanto, não revelam o exercício de poder. 

O ajuizamento da ação possessória diretamente perante o Poder Judiciário, diante dessas peculiaridades, homenageia os preceitos da economia processual e da eficiência (art. 8º do Código de Processo Civil) 

Aliás, conforme salientam Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini e Cândido Dinamarco, a arbitragem é meio alternativo de pacificação da sociedade cuja existência se justifica exatamente com vistas à célere solução do conflito e a superar o excesso de formalismo. 

Nessa trilha, ao considerar que nas ações possessórias não existe separação entre o acatamento (cognição) e a execução ou mandado, não parece razoável, pelos aspectos da economia processual e da celeridade, que a parte esteja obrigada a percorrer o caminho mais longo, provocando o juízo arbitral para posteriormente socorrer-se ao Poder Judiciário. 

Finalmente, convém destacar que nas ações possessórias, em regra, a causa de pedir está relacionada a ato-fato jurídico (apossamento), o que notadamente nas ações de manutenção de posse não exige deliberações a respeito da existência ou validade de determinada relação jurídica negocial, portanto, ao menos nesses casos, não se sujeitam à convenção de arbitragem. 

Feitas essas considerações, conclui-se que, em regra, a existência de convenção de arbitragem não derroga a atribuição do Poder Judiciário de processar e julgar ações possessórias. 

 

Notas e Referências 

CARNEIRO, Athos Gusmão. Arbitragem. Cláusula Compromissória Cognição e Imperium. Medidas Cautelares e Antecipatórias. Civil Law e Common Law. Incompetência da Justiça Estadual. Revista Brasileira de Arbitragem, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 42-59, Julho-Outubro de 2003. 

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido. Teoria Geral do Processo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. 

DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. 

PONTES DE MIRANDA. Tratado das Ações Vol. I, II e III. Editora Revista dos Tribunais Ltda., 1971.

 

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