SOBRE A APLICABILIDADE DA “NOVA” LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA AOS PROCESSOS EM ANDAMENTO

12/11/2021

A lei 14.230 de 25 de outubro de 2021 alterou de modo significativo diversos artigos da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8429/1992 - LIA), trazendo transformações profundas no cenário do sistema de responsabilização por atos de improbidade. Nos próximos meses e anos muita controvérsia surgirá quanto a interpretação e efetivação dos novos dispositivos inseridos na LIA.

Uma das questões mais relevantes e complexas que merecerá atenção especial dos operadores do direito diz respeito à aplicabilidade das regras introduzidas pela lei 14.230/2021 aos processos que já estavam em andamento na data de sua entrada em vigor. Não resta dúvida que caberá aos Tribunais Superiores definir sobre o modo como a legislação será aplicada.

De chofre, podemos afirmar que as alterações de natureza processual têm aplicabilidade imediata aos casos que se encontram em tramitação.

Nesse sentido, afirma o art. 14, do Código de Processo Civil (CPC), que “a norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada”. Vale ressaltar ainda o ditado pelo Código de Processo Penal (CPP) em seu Art. 2o, “A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”.

Como se vê, os atos processuais praticados sob o regime jurídico anterior à lei 14.230/2021 se mantêm intactos, não sendo atingidos, em regra, pelo surgimento da nova lei. Contudo, a partir do momento que as regras processuais são modificadas pela lei 14.230/2021, impõe-se sua aplicação imediata aos processos em andamento.

Já no plano das alterações de direito material a questão parece ganhar outros contornos. A razão para isso é simples, a aplicação dos novos dispositivos de direito material da lei 14.230 aos casos em andamento resulta, na verdade, em retroatividade da norma, fazendo com que esta regule fato anterior ao seu nascimento.

A premissa fundamental para que possamos discutir a retroatividade da lei de improbidade no âmbito do direito material é o seu reconhecimento como norma de natureza sancionatória. Trata-se, portanto, de instrumento punitivo. Dito isso, convêm sublinhar que as sanções constitucionais previstas para as condutas de improbidade têm capacidade de causar imenso impacto sobre a esfera das liberdades, da propriedade e do direito de representação política (princípio democrático). Trata-se, portanto, de direito sancionatório repressivo cuja proximidade com o direito criminal não passa desapercebido[1].

Com efeito, sob o Estado de Direito, a sanção por improbidade somente se dará em casos estritos, como última ratio, desde que estejamos perante situações nas quais haja prova inequívoca da conduta ofensiva e correspondência exata com o quadro normativo.

Dessa forma, quando imaginamos as possíveis mudanças sofridas pela lei de improbidade, dois caminhos se abrem com relação ao direito material: ou o legislador endureceu (recrudesceu) as normativas substanciais ou ampliou o rol de garantias dos acusados, amenizando sanções e impondo maiores limites para a sua aplicação. É essa, de fato, a grande tensão que envolve a lei de improbidade. Está mais do que claro que a lei 14.230/2021 teve o intuito de conferir maior segurança jurídica e garantias aos agentes públicos no âmbito da improbidade administrativa. Em suma, a lei tem um espírito garantista e não punitivista.

Em vista disso, a pergunta específica que interessa responder é essa: se as alterações da lei de improbidade forem mais benignas ou favoráveis aos acusados em comparação com as regras anteriormente vigentes, as novas normativas deverão ser aplicadas aos casos em andamento? A regra geral quanto à aplicabilidade das normas está inscrita no art. 6o da LINDB[2], cujo conteúdo determina que “a Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”.  Em última instância o que está fixado no direito nacional é a determinação de que os fatos devem ser regidos pela lei vigente na época em que ocorreram (Tempus regit actum).

Naturalmente a diretriz expressa acima comporta exceção. Nesse sentido, nossa Carta Política traz a seguinte regra: “art. 5o, XL a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Consoante afirmamos, o grau de proximidade entre o direito criminal e o direito sancionatório na ação de improbidade faz com que surja uma zona de intersecção entre ambos os domínios, uma área na qual os princípios garantistas a serem manuseados devem ser os mesmos. Não é sem motivos que o art. 1o, § 4º da Lei de Improbidade, introduzido pela lei 14.230/2021, impõe que aos processos de improbidade se aplique os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.

Nos parece, portanto, que a Lei 14.230/2021 tende a ser plenamente aplicável às ações em andamento naquilo que for mais benéfico ao acusado. Vale dizer que esse posicionamento encontra respaldo em decisões no âmbito do STJ: “o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no art. 5o, XL, da Constituição da República, alcança as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador. Precedente.”[3]

Com o intuito de elucidar a questão, vejamos um exemplo hipotético.

A Lei 14.133/2021 eliminou a hipótese de ato de improbidade culposo na circunstância de dano ao erário. Todos os atos de improbidade agora só ocorrem sob a forma dolosa. Imaginemos uma primeira situação: alguém, um dia após a entrada em vigência da nova lei, pratica uma conduta culposa e cause dano ao erário. Essa pessoa claramente não poderá ser processada nos termos da lei de improbidade.

Pensemos agora em um segundo caso, no qual alguém tenha cometido ato idêntico ao exemplo antecedente, mas que o processo tenha se iniciado um dia antes do advento do novo diploma normativo. Se não for aplicada a regra atual (que impede a modalidade culposa da improbidade), essa pessoa poderá ser apenada.

Em suma: duas situações idênticas terão tratamento diverso pelo Estado. Evidencia-se, no mínimo, a violação do princípio da igualdade e da razoabilidade.

Outro ponto importante que merece ressalva, faz menção a ausência de regras claras de transição entre as alterações legais, como por exemplo, no caso da prescrição intercorrente prevista no art. 23, §5º da LIA.

In casu, é possível verificar a solidificação do instituto da prescrição intercorrente para os atos de improbidade administrativa, fato este até então divergente na doutrina e na jurisprudência, mas, que ao mesmo tempo, não faz referência para uma transição entre a ausência do instituto para a utilização imediata.

Dessa forma, passaria o julgador a utilizar da regra geral do CPC e CC para resolver os casos práticos? De fato, um vazio jurídico a ser preenchido pela doutrina e jurisprudência ao longo dos anos.

Por fim, vale dizer que as polêmicas e controvérsias no terreno das legislações repressivas de caráter sancionatório são infindáveis. Por essa razão não será difícil encontrar posicionamento contrário ao que defendemos aqui. De fato, nossa perspectiva está pautada pela afirmação das garantias constitucionais, indo em sentido contrário de qualquer visão de caráter mais punitivista.

 

 

Notas e Referências

[1] ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo. 7a ed.  São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 105.

[2] Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei n. 4657 de 04 de setembro de 1942.

[3] MS 37031/SP Recurso Ordinário em Mandado de Segurança. Rel. Min. Regina Helena Costa. Data do Julgamento 08/02/2018. Data da Publicação DJe 20/02/2018.

 

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