Só mais um simulacro abusivo: Jenifer do BK  

08/03/2019

 

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Profundamente, trata-se aqui de um outro tipo de trabalho, de um trabalho de aculturação, de confronto, de exame de código e de veredicto social: as pessoas vêm encontrar aí e seleccionar objectos - respostas a todas as perguntas que podem fazer-se; ou antes, vêm elas em resposta à pergunta funcional e dirigida que os objectos constituem. Os objectos já não são mercadorias; já nem sequer são exactamente signos cujos sentido e mensagem decifrássemos e dos quais nos apoderássemos; são testes, são eles que nos interrogam e nós somos intimados a responder-lhes e a resposta está incluída na pergunta. Todas as mensagens dos media funcionam de maneira semelhante: nem informação nem comunicação, mas referendo, teste perpétuo, resposta circular, verificação do código.[1]
- Baudrillard, Jean em
Simulacros e simulação.

Existe, ainda, alguma linha minimamente perceptível que seja capaz de distinguir, separar, a publicidade da vida cotidiana? Que permita, em síntese, isolar a publicidade como tal, como atividade econômica que é, evitando que seja vislumbrada (confundida) como parte integrante de todos os contextos vivenciados no dia a dia[2]?

Em princípio, parece correto afirmar que, rotineiramente, deparamo-nos com situações que evidenciam, talvez, não haver mais distinção (minimamente eficiente) entre qualquer coisa e publicidade.

Não existe relevo, perspectiva, linha de fuga onde o olhar corra o risco de perder-se, mas um ecrã total onde cartazes publicitários e os próprios produtos, na sua exposição ininterrupta, jogam como signos equivalentes e sucessivos[3].

Experiências, vivências, prazeres, lazeres, alegrias, dramas, diálogos, relações pessoais, momentos inúmeros, que não existem - ou parecem não existir plenamente - sem que o mercado lhes tenha conferido algum significado, por meio de anúncios publicitários esmiuçadamente pensados para imantar a marcas e produtos as sensações atinentes àqueles momentos.

Contextos múltiplos são engendrados, arquitetados e, por fim, permeados, impregnados pelo Mercado. O entretenimento, nesse contexto, já não se distingue minimamente do consumo. Filmes, seriados, novelas, desenhos animados, aparentam ter mais vida na dinâmica do mercado de consumo do que nos limites de seus roteiros/histórias, mediante sua presença em embalagens, outdoors, comerciais televisivos e em tantas outras formas de comunicação mercadológica dispostas a promoção de produtos e serviços que, em princípio, estariam alheios ao cenário de magia engendrado pelo entretenimento.

Evidências de que “todas as formas atuais de atividade tendem para a publicidade, e na sua maior parte esgotam-se aí”[4]. Engendramentos elaborados em cenário no qual o mercado revela-se ubíquo, na medida em que ocupa - ou visa a ocupar - todas as situações da vida cotidiana.

O mundo mágico instaurado pela hipermidiatização do planeta relegou alguns recuos para as distinções tão assumidas no funcionamento do livre-mercado. Inclusive podemos sentir uma estratégia de testes aos limites da sociabilidade. Tais estratégias – mediante as quais o comércio mistura-se no entretenimento, à vida, ao cotidiano, a tudo, e a partir das quais tudo é engolido pelo comércio – encontram-se bem sedimentadas no contexto da Sociedade de Consumo. Fazem parte do cotidiano dessa Sociedade, estimulando o consumo a partir do frenesi gerado por filmes, séries, novelas, personagens, atores, cantores e qualquer outro “meio”, assim considerado, estrategicamente imantado a marcas e produtos, apto a atuar como porta voz da publicidade (e de inúmeras formas de estratégias comerciais). O novo alcance das Tecnologias da Comunicação (TICs) permitem uma reorientação social, a gerência de novos atrativos de toda dimensão do humano para situá-lo na iminência do consumo.

Um anúncio recente de uma famosa rede de fast food, inserido na dinâmica do aplicativo Tinder, fez uso de estratégia comercial que consistia em conferir descontos aos usuários que dessem “match” com a “Jenifer do BK” – considerando-se, aqui, a peculiaridade do nome “Jenifer” na atualidade, posto que intitula música de sucesso no país.

Exemplo concreto de que o entretenimento, a vida, as relações sociais - pode-se dizer tudo - é posto, ainda que inadvertidamente, a serviço do consumo. Arestas inúmeras, dentre tantas, posicionadas de forma a cumprir este desiderato, tornando as existências, cada vez mais, existentes em função de sua função para o Mercado. Movem-se por esse fator, em que pese aparente externo, criado artificialmente, é cada vez naturalizado,  imbricado a todas as dinâmicas vigentes nessa Sociedade coerentemente intitulada como “de consumo”.

As dinâmicas engendradas a partir das premissas acima apontadas culminam em uma miríade de situações já corriqueiras, ainda que passíveis de gerar abusividades[5]. Inclusive, abusividades novas, próprias do século XXI e da expansão das redes em que o humano é tão bem acolhido pela máquina de comunicar. Abusiva máquina que se caracteriza pela criação e manutenção de diversos mundos, mundos possíveis mediante ingresso a ser bem pago, seja no velho modo do dinheiro ou, então, com informações e dados pessoais valiosos; para sua comodidade, obviamente.

Trata-se de mais uma reespecificação do código. Simulacros e Simulação do cotidiano; no Tinder ou na fila do Burger King.

 

Notas e Referências

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Trad. Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Editora Relógio d'água, 1991.

[1] BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Trad. Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Editora Relógio d'água, 1991, p.98.

[2] Permitindo-se, ademais, cumprir, com adequação e efetividade, o comando normativo extraído do art. 36 Código de Defesa do Consumidor, a partir do qual se entende que o anúncio publicitário deve ser veiculado de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, o identifique como tal.

[3] BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Trad. Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Editora Relógio d'água, 1991, p.98.

[4] BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Trad. Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Editora Relógio d'água, 1991, p. 113).

[5] Ofensas ao princípio da informação, à transparência exigida nas relações de consumo, dentre tantas outras condutas potencialmente opostas ao Direito do Consumidor.

 

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