SMART CITIES: CIDADÃO COMO CONSUMIDOR/ USUÁRIO NA ASCENSÃO DA CIDADE REPTILIANA

25/05/2018

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo/Coordenação: Marcos Catalan

As cidades inteligentes, conhecidas pelo termo “smart cities”, são a concepção contemporânea de espaços urbanos ordenados pela inédita expansão do meio informacional pela via digital, tendo em vista o paradigma dos ICTs (information and communications technology). Se dá pelo ponto de vista política, pois é um apelo de governança do “meio técnico-científico-informacional” – como já apontava Milton Santos ao identificar os avanços das formas tecnológicas e informáticas de produção do espaço urbano.[i]

É possível elencar quatro grandes paradigmas tecnológicos para esse contexto urbano, seja pela tendência contemporânea de produção do espaço mercadoria – na projeção da expansão dos investimentos imobiliários privados – e dos projetos ao nível de planejamento urbano e regional:

  • Big Data: é a formação de técnica e método para armazenamento e interpretação de conjuntos de dados gigantescos, tendo como característica o cuidado com o volume, a variedade, a velocidade e a veracidade[ii], justamente pela quantidade inédita tornou-se um paradigma.[iii]
  • Data-Driven Urbanism: sugere uma gestão da cidade por via dos dados gerados por ela e sobre ela. Embora não seja novidade que os dados tenham influência no planejamento urbano, a questão atual é que os dados mais que informam a governança, mas a dirigem, justamente pela capacidade da administração de grande volumes de dados gerarem redes de informação, criando, em teoria uma cidade governada do ponto de vista pragmático e eficiente baseado em evidências – que acabam por sucumbir aos interesses seletivos, sejam normativos ou/ e políticos[iv].
  • Tecnologia de Informação Sensível ao Contexto: gestão e criação de dados digitais que corrobora a entrada e saída de dados de acordo com o contexto do usuário, do ambiente e do tempo, agindo de forma ativa a interpretar os dados, que não podem mais ser considerados simples, mas sim geridos e categorizados conforme o contexto – principalmente na relação entre os usuários que se transformam na relação entre objetos autônomos (a chamada “internet das coisas”).[v]
  • Gestão atuarial/ algorítmica A partir e ao mesmo tempo da concepção e da gestão dos dados são construídos algoritmos que fundamentam as políticas urbanas – seja na gestão pública ou na privada (mas principalmente na segunda) – sendo permanentemente reformados ao passo do implemento das informações (que segundo falado acima, são mais que dados, mas sim evidências). Assim, surgem serviços algorítmicos sustentados por cálculos baseados na restrição ao risco.

A partir disso se discute como a cidade baseada em dados tecnológicos irá contemplar paradigmas éticos em relação a gestão dos dados. É nesse ponto que se identificam desafios a implementação da tecnologia na gestão das cidades, ao passo que danos definitivos possam ser identificados tarde demais. EM QUE SE BASEIA A GESTÃO DOS DADOS PROMOVIDOS PELA CIDADE? Tanto aqueles que os sistemas autônomos produzem sobre nossas vidas como aqueles que nós mesmos produzimos aos aplicativos (ou sistemas em geral).

Essa gestão da cidade é uma evolução daquela cidade corporativa, da cidade empresa baseada na eficiência pretendida na administração privada das corporações. Dessa forma, tal qual nas empresas em que o empregado é chamado de “colaborador”, na cidade-empresa em sua forma “smart” o cidadão nada mais é que um usuário/ consumidor – além dos tributos, contribui com os dados para a gestão, sem interferir nos objetivos dela.

Essa analogia com o consumidor se dá justamente pelo aprofundamento da relação do cidadão com a cidade interpelada pela forma mercadoria, da mesma forma que o produto do seu trabalho e dos bens de consumo da sociedade do espetáculo serem frutos de profunda alienação, os serviços básicos da cidade também são vinculados a esse mesmo processo. A mobilidade urbana, por exemplo, mais que o transporte e o acesso à vida urbana, passa a ser um produtor de dados – sendo essa a unidade mais importante dessa forma mercadoria.

Dessa maneira, a gestão urbana é dirigida muito mais pelos gestores dos algoritmos de aplicativos ou redes sociais que pela participação dos cidadãos[vi], que outrora eram cogitados como participantes na gestão da política urbana mas agora produzem dados praticamente gratuitos em nome da gestão por outros. Enquanto se esperava que a expansão dos dados e as novas possibilidades de tratamento fossem melhor informar a produção de um planejamento urbano que contemplasse mais atores, ocorreu o contrário, pois os dados já nascem tratados por aqueles que os controlam.

Como já alertava Carlos Vainer[vii], o planejamento urbano liberal tem tido justamente essa natureza de forjar consensos e ocultar ou deslegitimar dissensos e conflitos, por isso, na atualidade, trata a expropriação dos dados e da vida urbana como um consenso em nome da eficiência, pautada na construção de identidades e alianças falaciosas. Corroborando ainda com outro alerta, por Milton Santos: a expansão contínua da cidade do pensamento único pela globalização[viii].

É necessário atenção (e luta) ainda mais especial na realidade atual das cidades, esses processos podem ser vistos de maneira material no dia-a-dia da produção da cidade. Como afirma Ermínia Maricato, para que não se esqueça: “É a questão urbana, estúpido!”.[ix]

Notas e Referências

[i] Ver, especialmente: SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2002.

[ii] Ver: CHENG, Bin et al. Building a big data platform for smart cities: Experience and lessons from santander. In: Big Data (BigData Congress), 2015 IEEE International Congress on. IEEE, 2015. p. 592-599. Disponível em: https://ieeexplore.ieee.org/abstract/document/7207275/

[iii] Sobre o volume de dados ser um paradigma, ver: KITCHIN, Rob. Big Data, new epistemologies and paradigm shifts. Big Data & Society, v. 1, n. 1, 2014.

[iv] Ver: KITCHIN, Rob. Data-driven, networked urbanism. GeoJournal, 2015.

[v] Ver: DA SILVA, Paulo Celso. Smartcities: Modelo de comunicação Global? Uma abordagem da geografia da Comunicação. Em: Anais do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. São Paulo, 2016. Disponível em: http://www.geografias.net.br/papers/2016/R11-1470-1.pdf

[vi] Ver: LEAL, Suely. A utopia urbana da cidade do futuro: solidária e sustentável?. In: 8º Congreso Internacional Ciudad y Territorio Virtual, Río de Janeiro, 10, 11 y 12 Octubre 2012. Centre de Política de Sòl i Valoracions, 2012.

[vii] Ver: VAINER, Carlos. Os liberais também fazem planejamento urbano? glosas ao. Plano Estratégico da Cidade do Río de Janeiro”“, en Arantes, O., Vainer, C. y Maricato, E.(comp.) A cidade do pensamiento único: desmachando consensos, Vozes, Petrópolis, 2000.

[viii] Ver: SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de janeiro: Record, v. 174, p. 25, 2000.

[ix] Ver: MARICATO, Ermínia. É a questão urbana, estúpido!:“In”: HARVEY, D; MARICATO, E; et al. Cidades rebeldes, p. 19, 2013.

 

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