Situações-limite e consciência social: a juventude resiste!

29/09/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

 

Ainda é preciso dizer o óbvio: a vida das juventudes importa!

 

Recentemente, em julho de 2020, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) lançou o Altas da Violência 2020. O conjunto de estudos, diagnósticos, pesquisas e reflexões oriundas desses grandes mapeamentos realizados, nos ajudam a lançar luzes em temas espinhosos, como é o caso dos homicídios, e pensar sobre a necessidade de enfrentar essa questão a partir do processo de consciência crítica desse fenômeno.

Em junho do presente ano, recebemos a notícia do assassinato do jovem Gabriel, de 18 anos, morador de um bairro periférico aqui em Natal/RN. Esse caso, somado a várias outras notícias de homicídios das nossas juventudes nos mantém em alerta, em que pese, uma aparente redução nos números, até porque essas vidas não são apenas números.

Antes de nos debruçarmos sobre a análise dos homicídios juvenis, chamamos a atenção para o conceito de juventude e condição juvenil e aprofundamos essa discussão a partir da consideração que essa juventude, que vive sua condição de forma diversa, também é perpassada pelas opressões de gênero, identidade de gênero, raça/etnia e classe. O que queremos dizer com isso é que a vida concreta das juventudes é perpassada por desigualdades socioeconômica, racial e de gênero. Entender esse imbricamento de estruturas e como elas se interpõem nas vidas e existência das juventudes é fundamental para qualquer análise que pensemos.

Assim como os conceitos de infância e adolescência, a juventude é um conceito construído socialmente e, portanto, carrega relação com as relações sociais e a produção/reprodução material da vida. Pensamos as juventudes muito além de uma fase ou faixa etária, porque entendemos que a esse grupo de sujeitas e sujeitos são atribuídos papéis sociais, perspectivas e expectativas que as/os colocam em uma situação dialética de, hora pertencimento, hora afastamento, o que a Sawaia (2001) conceitua como dialética da inclusão-exclusão, entendendo que esse processo é permeado de contradições.

Santos (2018) apresenta algumas ideias que chamam a atenção sobre o fato das juventudes não serem reconhecidas como atores e atrizes políticos, no sentido de que ainda que se reconheça a existência de pessoas jovens, esse grupo é o que mais vivência situações de violência, violação de direitos e trabalho precário ou subemprego, especialmente quando falamos em juventude negra, pobre e/ou LGBT+.

Os dados atuais mostram que 25% da população brasileira é jovem, ou seja, tem entre 15 e 29 anos. Com uma população tão representativa da juventude, por que ainda temos números alarmantes de mortes e extermínios dessa parcela da população? Para entender esse cenário, precisamos remontar a nossa história e entender a centralidade que é ser um país colonizado, que passou por processos de escravização da mão de obra indígena e negra, expropriação das suas riquezas naturais, apagamento da sua cultura, entre outros elementos estruturais como o patriarcado e o capitalismo.

Os dados recentes, publicados pelo IPEA (2020), mostram que os homicídios são a principal causa de mortalidade juvenil. São sujeitas e, principalmente, sujeitos em pleno desenvolvimento biopsicossocial, em período de formação educacional e inserção no mercado de trabalho, ainda que uma inserção extremamente precarizada. No ano de 2018, foram 30.873 jovens vítimas de homicídios, o que equivale a 4 homicídios a cada 100mil jovens e 53,3% do total de violência letal intencional no país. Pesquisadores e estudiosos, levantam a bandeira de que, em que pese um número bastante alto de homicídios, esse número tem caído – se pensamos a partir de uma progressão ou comparação com os anos anteriores – indicando uma diminuição de cerca de 13,6% na taxa.

Quem morre, sabemos, tem cor/raça, sexo e classe social, isto é, são os homens – em geral, negros e pobres – que têm mais chances de uma vida interrompida. É preciso dizer que morre, devido aos homicídios, mais juventude (homens e mulheres) do que qualquer outra faixa etária da população. Dessa forma, apesar de, em 2018, ter existido uma melhora nos índices de mortalidade violenta juvenil, pensando a última década, ainda acumulamos uma taxa extremamente alta, além das consequências arrasadoras geradas por uma dialética de vida e morte das juventudes no Brasil.

 

Vida e morte: a dialética de uma guerra “invisível” e as suas consequências

 

            Desde a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, os ataques aos direitos da classe trabalhadora se intensificaram, evidenciando a política genocida engendrada pelo presidente e sua equipe. Medidas como a reforma trabalhista e a reforma da previdência, contribuem para precarizar ainda mais a vida e existência dos filhos e as filhas da classe trabalhadora, além de um aumento da repressão, fake news, discursos que alimento o ódio às populações mais vulnerabilizadas, como as pessoas LGBT+, as mulheres, pessoas com deficiência e pessoas negras. São essas pessoas que compõem a classe trabalhadora e são essas pessoas que formam as juventudes brasileira.

            Outro tema que nos deixa em constante alerta se refere à projetos de lei que ameaçam reduzir a maioridade penal. Sabemos que, em momentos específicos, o debate sobre a segurança e, consequentemente, o tema da redução retornam para a agenda pública e se tornam medida de barganha eleitoral. Uma temática atrelada a essa se refere ao aumento do tempo de internação dos e das adolescentes em privação de liberdade, geralmente, após alguma infração grave que ganha grande repercussão na mídia. Essas pautas são importantes para os movimentos de garantia de direitos de crianças e adolescentes, mas precisamos que os debates e discussões com a sociedade mais ampla sejam realizados com cuidado e levando em consideração o que preconiza o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) e o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Ou seja, crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, o que nos oferece um conjunto de argumentações para justificar o posicionamento contrário a redução e ampliação do tempo de internação.

            Com apenas dois anos de gestão, à crise econômica, social, política e ambiental se soma a pandemia da covid19. Já passamos de 100mil pessoas mortas em decorrência do coronavírus e ainda não sabemos as consequências concretas dessa doença e como ela pode afetar e gerar uma série de consequências futuras para as pessoas que foram infectadas. Com relação ao perfil de pessoas mortas existe uma predominância de pessoas negras (cerca de 69%), homens (58%) e pessoas idosas, com 60 anos ou mais (72%). De fato, não é a juventude quem mais tem morrido, nesse caso, mas o ônus tem recaído também sobre essa população, sem sombra de dúvidas.

            Esse ônus pode ser percebido, por exemplo, no impacto financeiro a partir da perda do trabalho e renda, no retorno a índices perversos de insegurança alimentar, além do aumento da população em situação de pobreza extrema – cerca de 20% (13 milhões) de crianças e adolescentes no Brasil eram considerados pobres em 2017 (IPEA, 2020).

Como já citado, além das mortes provocadas pela pandemia, ainda precisamos lidar com constantes violências e violações de direitos contra a população infantojuvenil, especialmente, àquelas e àqueles jovens negros e periféricos, que morrem pela ação direta do Estado – por meio das balas que encontram os corpos negros da nossa juventude e também por meio do encarceramento que tem cor, sexo e idade. Toda essa conjuntura tem dificultado a organização política dos movimentos – sociais, estudantis, sindicais –, mas eles continuam existindo e garantindo a sobrevivência de muitos/as jovens. As ações de solidariedade, campanhas, fortalecimento das comunidades por meio das artes e da cultural, e o levantar cedo todos os dias tem garantido, em alguma medida, a comida na mesa, o dinheiro do aluguel e a possibilidade de mais um dia. Em discursos proferidos pelo atual presidente,  não existe preocupação por parte da sua gestão com a juventude, no máximo, há uma indicação de que os jovens estão acomodados e precisam estudar e trabalhar se querem um futuro, nada de novo e tudo dentro do esperado, ou seja, a perspectiva individualista e meritocrática que dita as políticas e programas.

Ainda sobre os homicídios juvenis, os dados do IPEA (2020) apontam uma redução, em 2018, a partir de cinco fatores, reunidos em três blocos: 1) sequência de redução de homicídios proveniente, possivelmente, do resultado de estatuto do desarmamento, do aumento qualitativo de políticas públicas e da questão demográfica – envelhecimento populacional e progressiva diminuição do número de pessoas jovens; 2) armistício entre as maiores facções do país e 3) pelo aumento recorde do número de mortes violentas com causa indeterminada (MVCI), que pode ter ocultado milhares de homicídios.

Ao concluir esse ponto sobre a dialética da guerra invisível, é importante resgatar o que foi dito no início. Começamos esse ensaio e/ou reflexão apontando elementos da nossa formação histórica que nos ajudam a pensar o Brasil de hoje. Nesse sentido, recuperamos a nossa história não para vitimizar as populações mais vulnerabilizadas, mas sim, para registrar e demarcar a dívida história que temos – como sociedade – com esses grupos. No caso das crianças e adolescentes, desde de 1980, foram mais de 265.658 meninos e meninas que tiveram suas vidas, sonhos e projetos interrompidos (IPEA, 2020), sem conta o número de jovens que também tiveram suas vidas arrancadas – somente em 2018, como mencionado, foram cerca de 30.873 mortes, o que equivale a 53,3% do total de homicídios do país naquele ano, fora os dados de acidentes e os dados subnotificados.

 

Ter desde cedo uma vida marcada por processos de violência, medos e violações de direitos (especialmente a uma educação de qualidade social, saúde e alimentação), que se expressam nas dinâmicas sociais e são fruto de uma sociedade capitalista, patriarcal e racista, é algo que gera consequências dolorosas e influem para a reprodução de situações dessa mesma ordem.

Para nos ajudar a entender essas consequências, podemos nos referenciar em Martín-Baró, psicólogo Salvadorenho, que nos aponta o conceito de trauma psicossocial, com destaque para esse último termo, em contraposição a uma perspectiva mais tradicional da Psicologia, que enfatiza o trauma a partir de elementos internos e individuais.

Para Martín-Baró (1990), é importante analisar o trauma a partir de uma dimensão dialética em que o trauma não define um sujeito doente, pelo contrário, aponta a especificidade da relação entre as relações sociais e os/as indivíduos. Essa relação é entendida para além de parâmetros de normal e anormal, com os quais a psicologia e outras ciências tendem a enxergar a realidade. Diante dessa ideia, o adoecimento das pessoas pode significar uma resposta esperada e normal a algo que é anormal, que não deveria acontecer. Por exemplo, anormal deveria ser a morte constante de jovens negros e não o adoecimento dos seus familiares provocados por essa violência extrema, no entanto, as vidas negras são consideradas tão supérfluas que causa estranheza em alguns grupos de pessoas, que essas mortes causem dor, indignação e comoção social. Para Martín-Baró (1990) – e nós concordamos com ele –, o trauma psicossocial reflete as características de desumanização que a ordem de exploração e acumulação evidenciam.

Em outro sentido, Martín-Baró (1990) nos apresenta o conceito de situação-limite, que são aquelas em que as situações cotidianas são desveladas e conseguimos entrever a relação dos e das sujeitos/as com a sociedade, revelando a constituição de uma subjetividade atrelada as condições objetivas de vida das pessoas. Nessa possibilidade de enxergar além das aparências se criam as condições para a emergência de uma consciência crítica e uma atuação coletiva.

De acordo com Moreira e Guzzo (2015), as situações-limite oportunizam uma virada de chave, em termos de consciência crítica e revolucionária, isto é, a possibilidade de uma ruptura e questionamento do status quo e da reprodução de uma vida alienada e alienante. Por sua vez, tal ruptura pode impulsionar a ação consciente e a construção de alternativas coletivas, que contribuam para a mobilização e organização popular, a partir de coletivos, movimentos, fóruns e redes de enfrentamento a violência e violação de direitos.

Diante desses dados e análises percebemos que avançamos em muitos sentidos, mas que os direitos não estão dados e que precisamos seguir em luta, articulação e mobilizações para sairmos desse estado de coisas. É importante lembrar que nós, classe trabalhadora, homens, mulheres, juventudes, não estamos parados/as e nem paralisados/as. Resistimos e resistiremos até que tenhamos uma sociedade para todas as pessoas!

 

Notas e Referências

CERQUEIRA, Daniel; BUENO, Samira. Atlas da Violência. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Acesso em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/24/atlas-da-violencia-2020, 2020.

MARTÍN-BARÓ, Ignácio. La violencia política y la guerra como causas del trauma psicosocial en El Salvador. In I. Martín-Baró (Org.), Psicología social de la guerra: trauma y terapia (pp.65-84). San Salvador: UCA, 1990.

MOREIRA, Ana Paula Gomes; GUZZO, Raquel Souza Lobo. Do trauma psicossocial às situações-limite: a compreensão de Ignácio Martín-Baró. Revista Estudos de Psicologia: Campinas, v. 32, n. 3, p. 569-577, 2015.

SAWAIA, Bader. As Artimanhas da Exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Vozes: Petrópolis, 2001.

SANTOS, Luana Isabelle Cabral dos. Juventude e Participação Política: analisando a práxis dos movimentos sociais de juventude. Tese (Doutorado em Psicologia) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2018.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações

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