Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
Em matéria de direitos humanos, uma das importantes perspectivas de compreensão do surgimento e da consolidação de direitos parte do pressuposto de que estes não são, de um lado, dádivas do Estado e, de outro, não resultam de mero reconhecimento formal, mas de um vivo, dinâmico e intenso processo histórico, social e coletivo de lutas, na direção da dignidade humana (Herrera Flores, 2009, p. 109).
Assim como a realidade que, nesta quadra da história, modifica-se em escala e em velocidade intensas, os direitos e, em amplo sentido, a interação entre as normas e as sociedades também são tensionadas pela necessidade de um contínuo processo de reflexão, refazimento, reacomodação.
Nisso não há, isoladamente, um problema. A chamada gramática de direitos humanos, sob certo sentido, funciona como um instrumental vivo e dinâmico exatamente por conta da sua estreita vinculação com as muitas parcelas de realidade que, historicamente, escaparam do modo de produção jurídico dominante, da dogmática jurídica tradicional e das normas estabelecidas[1] e que, em tempos e processos históricos diferentes e complexos, vão caracterizando verdadeira disputa por um lugar de reconhecimento, proteção e efetividade.
Desse modo, importantes dimensões ou características de direitos que, hoje – pelo menos no plano normativo – visualizamos como estabelecidos, foram consagrando-se como resultado de processos intensificados de lutas, tais como o direito ao voto e o direito ao trabalho em condições de dignidade, por exemplo.
Encontrá-los no texto constitucional ou mesmo no plano da lei não significa que tenham perdido seu caráter dinâmico ou que os processos de luta se tenham esgotado. Assim como nascem em movimento no seio social, direitos também são ameaçados e morrem na dinâmica estruturalmente desigual da sociedade[2].
Nesse contexto, a compreensão de direitos humanos como processos exige a premissa de que toda essa dinâmica é sempre e fundamentalmente inconclusa e inacabada.
Em matéria de direitos de crianças e adolescentes, no Brasil, testemunhou-se o nascimento da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente, como síntese de um amplo e diversificado contexto de articulações em prol do reconhecimento, no plano formal, de direitos para sujeitos historicamente não considerados como tais[3].
Além disso, o ECA significou, de fato, uma virada político-discursiva em relação a crianças e adolescentes, anteriormente submetidos aos efeitos de muitas ausências, inclusive e sobretudo a da do duplo efeito da legalidade: a de limitar o Estado em matéria de intervenções e a de assegurar direitos a esses sujeitos[4].
Sem desconsiderar e reconhecer a complexidade de todo esse processo histórico, é possível afirmar que foi com ênfase na lei e no seu conteúdo protetivo, que a articulação e a luta em torno da efetivação do ECA e de suas disposições assumiu, ao longo das últimas décadas, o lugar de uma das principais estratégias de atuação do sistema de garantias enquanto tal.
De um lado, foram inúmeros os ganhos políticos e estratégicos desse processo, tais como a consolidação da luta pela efetividade das conquistas formais de direitos para crianças e adolescentes; a capilarização dos atores sociais como estratégia de fortalecimento social e de monitoramento de efetivação de direitos; a criação de uma série de políticas públicas destinadas a assegurar seus direitos fundamentais; a complexificação do debate sobre a efetividade de direitos e mesmo a construção de verdadeiros campos de estudo sobre possíveis crises de interpretação, continuidades e descontinuidades entre a proteção integral e o modelo anterior.
Porém, apesar de inquestionável e decisiva a importância do ECA como síntese de um processo vasto e complexo de abertura do Direito para a ressignificação jurídica, social e histórica de crianças e adolescentes como detentoras de cidadania autêntica e de direitos, a ênfase na lei e na sua efetividade também possui como subproduto o frequente encobrimento do papel ativo de todos os atores implicados no sistema de garantias em relação ao avanço da pauta de direitos em matéria de infâncias e juventudes. Em outras palavras, na (re)construção de direitos.
Vale dizer: enquanto legitimamente o sistema de garantias se articula em prol da efetividade de direitos já assegurados, o mundo se movimenta e com ele as realidades se sacodem, transitam, demandando o protagonismo social no debate por direitos.
Três décadas de regulação jurídica afirmativa no campo das infâncias e das juventudes já nos anunciaram, por exemplo, realidades para as quais a proteção integral nem tudo resolveu: a de sujeitos cujos direitos visibilizam-se/viabilizam-se a partir do reconhecimento de diferenças culturais e epistemológicas e que reclamam, portanto, proteção plural[5]; a de sujeitos cuja cidadania e direitos possuem como desafio a dinâmica da rua e das suas desigualdades[6], a de sujeitos que foram nomeados pelo Estado como tais, mas que têm dimensões da vida sob ameaça constante de objetificação, como é o caso da sexualidade e da autonomia sobre os corpos[7].
O sistema de garantias de direitos, enquanto tal, possui então o compromisso fundante de permanente “consciência do inacabamento” (Freire, 1996) do processo de afirmação de direitos de crianças e de adolescentes, expressão contida na obra do educador e filósofo recifense e que representa um pressuposto político para a atuação em matéria de direitos.
Essa consciência do inacabamento diz respeito não apenas aos direitos e a seus processos de reconhecimento, mas também dos atores sociais, da sociedade civil organizada, das instituições, das estruturas e de tudo o que compõe o sistema, na direção de enxergar, compreender, afirmar e efetivar direitos.
Há algumas décadas, as principais doutrinas jurídicas no campo das infâncias e juventudes não raro esgotavam o debate sobre direitos em questões tais como: direito à alimentação adequada, ao lazer, à educação, à saúde, proteção contra publicidade abusiva e/ou enganosa e outras questões jurídicas estabelecidas, acompanhando os modos de produção da dogmática jurídica tradicional.
Hoje, contudo, apesar da importância de tais temas e de seu permanente debate, o sistema de garantias de direitos necessita de respostas para questões de tal modo específicas e frutos de uma vasta quantidade de atravessamentos de temas que é desarrazoado supor que se possa defender direitos de crianças e de adolescentes sem a abertura ao conhecimento e ao diálogo relacionados a campos do conhecimento cada vez mais complexos e marcados por transversalidades.
Que dizer, por exemplo, da influência de telas no processo de desenvolvimento seguro e sadio de crianças? Como construir pautas antirracistas e de letramento racial e respectivos itinerários de atuação no contexto do sistema de garantias? Que impactos a ausência/insuficiência de políticas públicas de educação midiática exercem na cidadania de crianças e adolescentes? De que modo algoritmos interferem na construção de comportamentos de risco e/ou vulnerações de direitos da população jovem? Quais os atravessamentos entre direitos sexuais e juventudes? Que relações há entre o contexto de mudanças climáticas e os direitos de crianças e adolescentes? Que sujeitos permanecem invisibilizados na lógica das generalizações “infância”, “adolescência” e “criança”?
Essas são apenas algumas perguntas que evidenciam a vastidão de pautas, temas e itinerários de articulação, debate e luta que dependem do movimento dos atores sociais para a sua repercussão social, consolidação e abertura para processos de reconhecimento e afirmação de direitos.
Para tanto, a consciência do inacabamento exige do sistema a sua própria autocrítica, na direção de dois compromissos técnicos, éticos e sociais fundantes, quais sejam: o letramento permanente em matéria de direitos e a respectiva ação coletiva.
Responder a questões como as apontadas acima e, mais que isso, construir movimentos e estratégias de afirmação e efetivação de direitos em torno delas é desafio complexo, que exige ultrapassar o senso comum, mesmo o teórico.
O sentido histórico das viradas de paradigma entre a arbitrariedade e a lei; a informalidade e as garantias; a discricionariedade e a legalidade, todas elas marcas das descontinuidades entre o menorismo e a proteção integral já não territorializa inteiramente todas as tensões existentes no campo dos direitos de crianças e adolescentes e que a realidade nos convoca hoje a enfrentar enquanto sistema de garantias.
É preciso, pois, construir as viradas de paradigma diante de crises para as quais, antes, é necessário o exercício de enxergá-las desde outras lentes e perspectivas. Se é certo que a gramática de direitos humanos é dinâmica e se movimenta, antes dela, quem se move são os sujeitos.
Um sistema de garantias de direitos, nesse contexto, é engrenagem que se desenvolve na direção de uma força expansiva de direitos humanos e para isso, fundamental a ação coletiva e em rede. Apesar de pressuposto normativo, o reconhecimento do sistema de garantias enquanto rede se impõe pela realidade que, cada vez mais, fragmenta as possibilidades de força coletiva.
O mundo cada vez mais digital, por exemplo, afetou profundamente os modos de interação e de articulação social. O filósofo e ensaísta sul-coreano Byung-Chul Han (2018, p. 23) nomina essa fragmentação como “enxame” e afirma que a indignação cada vez mais digital não é capaz de levar nem à ação, nem à narrativa.
Assim, é em prol da experiência de corpos em movimento e em ação por direitos, que a ênfase na atuação coletiva está intimamente ligada à capacidade de avanço das pautas de defesa de direitos de crianças e adolescentes.
O letramento e a ação são, pois, fundamentalmente, recursos de construção da pauta, de fortalecimento da rede, de potencialização da força expansiva e construtiva direitos humanos.
Vale ressaltar que a recente história de recrudescimento do neoconservadorismo e de uma grande quantidade de retrocessos em matéria de direitos humanos, no Brasil, no mesmo passo em que afetou o avanço da pauta, evidenciou a resiliência dos participantes de toda a grande rede de defesa de direitos humanos e, portanto, de sua latência como organismo vivo.
Assim, a partir desses dois movimentos que, aqui, são enunciados como principais estratégias para um sistema de garantias fortalecido, a conclusão é, pois, político-existencial: se o sistema se move, se é capaz de resistir e impedir retrocessos, matéria-prima há para que seja, cada vez mais, um sistema para novas garantias, por direitos a serem construídos no campo dos discursos, normas e políticas públicas, com sujeitos que devem ocupar essa engrenagem com seu protagonismo e diversidade e para sujeitos que são titulares de cidadania e de proteção constitucional plena.
Notas e referências
[1] No campo de direitos da criança e do adolescente, o modo dominante de produção de formas jurídicas, sobretudo no menorismo, acompanhou e (re)produziu a voz social igualmente majoritária: paternalista, branca, cisgênero e hierarquizada, refletindo na construção jurídica de infância ora como problema (nesse caso, objeto de intervenção discricionária do Estado), ora como questão exclusivamente privada (submetida ao também discricionário e então denominado “pátrio poder”).
[2] As estratégias de supressão de direitos, inclusive, não necessariamente passam pela sua eliminação normativa, o que, no Brasil, inclusive, encontraria expressa vedação constitucional quanto aos direitos fundamentais, por força do art. 60, §4º, IV da Constituição de 1988. Mas é possível que através do amesquinhamento ou da diminuição das prestações à coletividade, como, por exemplo, com o gradual esvaziamento de recursos, coloque-se em risco a preservação de determinados direitos fundamentais, sobretudo os de caráter social. Nesse sentido: AGRA, Walber de Moura. O entrenchment como condição para a efetivação dos direitos fundamentais. In: TAVARES, André Ramos (coord.). Justiça Constitucional: pressupostos teóricos e análises concretas. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
[3] Antônio Carlos Gomes da Costa narra, ainda na década de 90, a grandiosidade desse processo (COSTA; MENDEZ, 1994, p. 138): “Conquistada a vitória na Constituição, faltava elaborar a lei ordinária que revogasse, de uma vez por todas, a velha legislação do período autoritário. Nesse momento, num gesto de extraordinária maturidade política, as entidades não-governamentais articularam-se no Fórum DCA: Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. [...] Milhares de encontros, congressos, seminários, reuniões e jornadas foram realizados em todo o país. Centenas de manifestações, contendo subsídios, chegaram ao Grupo de Redação e foram consideradas na elaboração do Estatuto que foi apresentado, a um só tempo, nas duas Casas do Congresso Nacional: o Senado Federal e a Câmara dos Deputados”.
[4] Em sentido contrário, registre-se a existência de trabalhos que apontam que o ECA não teria rompido com a visão e o projeto de sociedade contidos no Código de Menores, mas tão somente operado uma reforma, obtida, inclusive, tardiamente, nos marcos do neoliberalismo. Nesse sentido: OLIVEIRA e SILVA, Maria Liduina. O Estatuto da Criança e do Adolescente e Código de Menores: descontinuidades e continuidades. In: Revista Quadrimestral de Serviço Social. Ano XXVI – n. 83. São Paulo: Cortez Editora, 2010, p. 30-48.
[5] OLIVEIRA, Assis da Costa. As indígenas crianças e a Doutrina da Proteção Plural / The Children Indigenous and the Doctrine of Plural Protection. Revista Direito e Práxis, [S. l.], v. 14, n. 3, p. 1444–1469, 2023. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/revistaceaju/article/view/61154. Acesso em: 15 fev. 2024.
[6] MELO, Eduardo Rezende. Crianças e Adolescentes em situação de rua: Direitos Humanos e Justiça. Uma reflexão crítica sobre a garantia de direitos humanos de crianças e adolescentes em situação de rua e o sistema de justiça no Brasil. São Paulo: Malheiros Editores, 2011.
[7] Como é o caso do contexto da afirmação e efetivação de direitos sexuais de adolescentes em contextos de internação. Nesse sentido: ALBUQUERQUE, Fernando da Silva. O Centro Socioeducativo Feminino de Ananindeua-PA e a efetivação de direitos sexuais: dos discursos aos desafios na afirmação da sexualidade como domínio de direitos. In: SOUZA, Luanna Tomaz (organizadora). Direitos Humanos e vulnerabilidade na Amazônia. Curitiba: Editora CRV, 2014, p. 97-114.
AGRA, Walber de Moura. O entrenchment como condição para a efetivação dos direitos fundamentais. In: TAVARES, André Ramos (coord.). Justiça Constitucional: pressupostos teóricos e análises concretas. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
COSTA, Antonio Carlos Gomes da; MENDEZ, Emilio Garcia. Das Necessidades aos Direitos. São Paulo: Malheiros, 1994.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 27. ed. Paz e Terra, 1996.
HAN, Byung-chul. No Enxame: perspectivas do digital. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2018.
HERRERA FLORES, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.
MELO, Eduardo Rezende. Crianças e Adolescentes em situação de rua: Direitos Humanos e Justiça. Uma reflexão crítica sobre a garantia de direitos humanos de crianças e adolescentes em situação de rua e o sistema de justiça no Brasil. São Paulo: Malheiros Editores, 2011.
OLIVEIRA e SILVA, Maria Liduina. O Estatuto da Criança e do Adolescente e Código de Menores: descontinuidades e continuidades. In: Revista Quadrimestral de Serviço Social. Ano XXVI – n. 83. São Paulo: Cortez Editora, 2010, p. 30-48
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