Shock and Awe: o massacre do Paraná e o impeachment de Richa

05/05/2015

Por Salah Khaled Jr - 05/05/2015

A violência policial não me é estranha. Posso dizer que é uma velha conhecida e a familiaridade não decorre das manchetes dos jornais. Fui professor da rede pública do Rio Grande do Sul durante cerca de oito anos. Lecionei história, filosofia e sociologia. Marchei inúmeras vezes contra o autoritarismo de inúmeros governos. Lutei por condições dignas de trabalho e remuneração condizente com a importância da minha profissão. E experimentei na carne a repressão policial, ainda que jamais tenha vivido nada parecido com a verdadeira operação de guerra desencadeada pelo governo Richa (PSDB) contra os professores do Paraná.

Qual pode ser o sentido de uma operação tão brutal como a conduzida pelo aparato de repressão do governador Richa? Não parece ser outro que o de uma demonstração de força, típica do mandonismo de quem se considera dono do poder (veja aqui). A intencionalidade que move uma ação tão flagrantemente ilegal e imoral não pode ser outra que a de quebrar o próprio espírito do adversário. A tática empregada contra os professores paranaenses se assemelha ao Shock and Awe (Choque e Pavor), doutrina conhecida pela intenção de domínio rápido, cujo sentido consiste no emprego de força avassaladora e mostras espetaculares de poder para paralisar a compreensão do adversário e destruir sua vontade de lutar. Harlan K. Ullman e James P. Wade, definem o sentido da estratégia em "Shock and awe: achieving rapid dominance".[i]

Os autores sustentam que o objetivo da dominação rápida é afetar a vontade, percepção e compreensão do adversário através da imposição de um regime de choque e pavor. A meta consiste em impor a quantidade necessária de choque e pavor para tornar o adversário impotente, o que exige efeitos físicos e psicológicos. Ullman e Wade pensam que a dominação rápida pode proporcionar de forma mais efetiva e eficiente os objetivos militares ou políticos subjacentes ao uso da força, tornando o adversário completamente impotente. O aspecto psicológico da doutrina também merece especial atenção. O domínio psicológico consiste na habilidade de destruir, derrotar e neutralizar a capacidade de um adversário resistir: o alvo é a vontade, percepção e compreensão do adversário. O principal mecanismo para obter o domínio é a imposição de condições suficientes de "Choque e Pavor" no inimigo para convencer ou compelir a aceitar metas estratégicas e objetivos militares. Para isso, informações erradas, mentiras, confusão, negação seletiva de informação e desinformação, possivelmente em grandes quantidades, devem ser disseminadas.

Tenho certeza que o leitor tem todas as condições de realizar a interlocução com a provocação aqui levantada: a meta por trás do massacre não era nada menos do que a desmoralização da categoria e a destruição do seu espírito de luta. O governo do Paraná declarou guerra aos professores e a deflagrou de forma absolutamente covarde e ilegal. Não é preciso indicar detalhadamente o âmbito estratégico da atuação governamental durante e após o massacre, quando o aparato discursivo entrou em ação: o controle de danos chegou a incluir até mesmo referência aos black blocs, o que foi negado pela Defensoria Pública do Estado do Paraná e pela OAB (veja aqui).  O que dizer então do episódio do PM do sangue falso? (veja aqui). Desinformação, mentiras, confusão caracterizam esse tipo de atuação: os agenciadores da violência simbólica fazem de tudo para minimizar e justificar a situação. Como esperado, Sheherazade compactua com a falácia dos Black Blocs (veja aqui).  Nada surpreendente para alguém que defende linchamentos e redução da maioridade penal. Pelo menos é condizente.

É preciso reconhecer. Nós acusamos o golpe e o jogo de cena. O dia seguinte foi de revolta e também de desesperança. Tudo parece em vão. Nos tornamos receptáculos de ações violentas que reproduzem literalmente uma lógica de confronto com o inimigo, no plano concreto e no simbólico. Digo nós porque me identifico com essa dor e porque permaneço professor. Nunca quis ser outra coisa. Mas de fato, existem horas em que mesmo o mais determinado dos espíritos sucumbe ao desânimo. É difícil não fazê-lo. Como continuar a resistir quando o tratamento reservado a professores é tiro, porrada e bomba? Como resistir quando um governo democraticamente eleito emprega táticas de guerra contra a população civil, no exercício de direitos constitucionalmente assegurados? Qual é a conduta? Porte ilegal do direito de reunião e de liberdade de expressão? O que dizer para os milhares de alunos que estão cursando inúmeras licenciaturas pelo país afora? É esse o tratamento reservado a professores que saem pelas ruas em defesa de seus direitos e lutam contra iniciativas perversas e predatórias deles?

É evidente que não pode e não deve ser. De fato, a violência policial no Brasil foi naturalizada (veja aqui). A lógica do "aqui se faz, aqui se apaga" ainda dita muitas vezes a pauta de uma força policial militarizada e carente de oxigenação constitucional. É incompreensível que os acontecimentos do último dia 29 não tenham provocado maior repercussão, principalmente na grande mídia, que timidamente noticiou o fato. Não há como não questionar se o resultado seria o mesmo caso as manifestações pelo impeachment da presidente Dilma tivessem recebido tratamento semelhante. Tenho certeza que o espaço reservado à dor dos manifestantes seria infinitamente maior. E isso é um problema gigantesco. Nós não apenas nos acostumamos a ver a polícia bater, como nos acostumamos a ver professor apanhar. Naturalizamos a dor do educador e minimizamos a barbárie do opressor.

A dívida que este país tem para com os professores é incomensurável. Em todos os sentidos possíveis. Não pode continuar assim. Isso tem que parar. E para ontem. Que a sociedade civil faça toda pressão necessária para que fatos como esse sejam definitivamente proscritos da nossa história. O Ministério Público do Paraná pretende instaurar procedimento para apurar se houve excesso na repressão às manifestações no entorno da ALEP. Parece ridículo que o excesso possa ser objeto de apuração, não é mesmo? Mas que isso seja apenas o começo e não uma forma de assegurar a impunidade desde o princípio. Alguém dirá que não penso como professor de Direito Penal quando digo isso. Dirão que estou sendo levado pela minha inclinação política para a esquerda e pela minha condição de professor. Talvez estejam certos. De fato, não poderia opor resistência a muitas dessas acusações. No entanto, há quem diga que a teoria do domínio do fato inclusive ampara meu argumento, uma hipótese que certamente merece consideração (veja aqui).

A questão é simples: penso que um governo não pode resistir a uma ação ilegal de repressão como a perpetrada pela milícia armada de Richa. A conduta é criminosa e ocorreu no presente mandato. Foi inclusive defendida pelo governador como justa e necessária. Não me parece que a responsabilidade se restrinja apenas aos policiais militares ou eventualmente ao secretário de Segurança Pública. Penso que existem bases concretas para discutir o impeachment do governador. Não se trata de delírio infundado materialmente e muito menos de meio para retirar um governante impopular. Felizmente a sua própria base começa a se questionar, como deve se questionar (veja aqui).

Pode um governador que emprega recursos análogos a táticas de guerra permanecer no cargo? Pode um governador massacrar professores impunemente e justificar sua conduta criminosa através de ardis que a tornam justificável? Pode um governador conduzir uma campanha difamatória que visa desmoralizá-los ao ponto de desistirem de lutar por seus direitos? Pode ele dar um basta no que vê como um incômodo e instituir um regime de "Choque e Pavor" contra a população civil em pleno Estado Democrático de Direito? A resposta é não. Isso a democracia não pode tolerar. Com isso ela não pode conviver. Que as instituições cumpram o seu papel, assim como cada um de nós. Parabéns aos professores do Paraná, vocês tiraram o bicho da toca (veja aqui). Estamos com vocês!


Notas e Referências:

[i] Disponível em: http://www.dodccrp.org/files/Ullman_Shock.pdf


SALAH NOVASalah Hassan Khaled Junior é doutor e mestre em Ciências Criminais, mestre em História e especialista em História do Brasil. Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande, professor permanente do PPG em Direito e Justiça Social                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            


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