Sexo: regras e neuroses

12/07/2023

A compreensão que temos de nós mesmos não nos permite levar em conta o que temos de primitivo. Falo de primitivo no sentido do que, em nosso organismo, funciona pouco diferenciadamente de como funcionou em nossos ancestrais. A fome, por exemplo, decorre de comandos de instâncias primevas de nosso cérebro.

A diferença está em que um primata antropoide tinha fome e se atracava com o que pudesse submeter à condição de alimento. Um sapiens sapiens tem a mesma fome, embora não cace nem tenha relação direta com a produção de comida. O comer agregou valores à comida: as etiquetas e a sofisticação dos sabores.

As regras de conduta para o comer adquiriram tal importância que acabaram como intermediação significativa entre o instinto e a refeição. As especificidades das relações com a comida destacam não só a ocasião, mas a “qualidade” de quem come, identificando os lugares sociais de origem dos comensais.

Vontade de sexo, tal como a fome, é uma coisa primitiva. Fazer sexo, do mesmo modo que o comer, é mais complexo. Há introjeção de cultura. “A ordem do sentido, evocada por Jacques-Alain Miller, não é a ordem primitiva dos sentidos fisiológicos. Nesse contexto lacaniano, o termo ‘sentido’ equivale ao conceito de ‘significado’.

Lacan inspirou-se no filósofo Frege ao diferenciar o sentido (Sinn) do significado (Bedeutung). Tal diferenciação entre o sentido e o significado é, no âmbito da teoria de Lacan, o trajeto feito pelo sentido bruto da sensibilidade, até o além do sentido inaugurado pela subjetividade.

A ordem subjetiva do significado, como se constitui sob os efeitos do simbólico, reorganiza a própria sexualidade humana como um ‘valor’, não como uma vivência pura. A mera descarga reflexa do instinto é redimensionada na subjetividade, ganhando assim um papel simbólico distinto de sua origem.

Quando Jacques-Alain Miller, tentando resgatar a contribuição mais original de Lacan, diz que o sujeito está perenemente enredado pela ordem discursiva, está nas entrelinhas afirmando que todo ente humano só pode desejar um objeto com a condição do mesmo estar mediatizado pelo desejo do outro.

Através da socialização do corpo o sujeito é convertido em um animal ‘desnaturalizado’ e, a partir daí, os diversos discursos culturais passam a condicionar a nossa nova e alienada maneira de ser” (Marcos de Oliveira, Lacan e a sua antropogenia do sentido, Facebook).

Há milênios não somos mais natureza. O cérebro do humano atual nem estava pronto quando a cultura já incidia sobre ele. Seja: não há como escapar dos discursos culturais. Somos como que buscados e constituídos em nossa subjetividade por modos de pensar circulantes que nos alcançam e nos formatam.

O sexo restou o sexo mais os valores que lhe foram acrescentados: uma coleção de regras permissivas (com poucas, ainda que sérias obrigações) para os homens; uma enormidade de impedimentos e conformação para as mulheres. Homens e mulheres – elas laborando em equívoco – reproduzem esses valores.

A sexualidade humana acrescida de valores foi parar nos códigos religiosos e jurídicos. Ao prazer do sexo acrescentaram-se formalidades contratuais, ritos sociais, controles físicos, interdições de práticas, locais específicos, idade para fazê-lo. Regulamentamos o instinto (ou a pulsão).

Disciplina sexual com função repressora adoece as pessoas. Freud tem uma obra inteira mostrando isso. Os desdobramentos sociais dos valores disciplinadores agregados ao sexo não foram de todo pensados. Foucault, entretanto, já adiantou: as relações entre sexualidade reprimida e poder são muito ruins.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Sex Sells.. //Foto de: Sarah Scicluna // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/sarahxic/3135283110

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura