Sex Education e as muitas educações sexuais dentro da educação escolar    

03/05/2022

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

A educação sexual em seu sentido mais amplo, abordando desde a sexualidade e o desenvolvimento corporal, o ato sexual propriamente dito, as infecções sexualmente transmissíveis, a proteção sexual, o abuso sexual, o aborto, a diversidade sexual, entre outros assuntos, é um tema de enorme relevância e apelo entre adolescentes e jovens, motivo pelo qual se tornou foco central de um seriado na Netflix. Com uma trama jovem e envolvente, sem clichês e tabus, a série Sex Education conquistou seu público já na primeira temporada, o que demonstra, de maneira veemente, o quanto adolescentes e jovens anseiam por falar, ler e ouvir sobre o tema, para além de praticar.

A série coloca em discussão alguns dos problemas mais graves de nossa educação escolar e da sociedade em geral, em termos de como lidam com as relações e os conflitos interpessoais, mais, sobretudo, com o desenvolvimento sexual e a sexualidade de adolescentes e jovens. Otis e Meave, os jovens protagonistas, descobrem um “negócio” promissor em sua escola: o de tornar Otis um conselheiro sobre assuntos sexuais para estudantes ávidos por alguém que escutem seus desejos, dilemas e conflitos, alguém que, como certa vez Carlos Bazzano[1] disse, não seja propriamente um especialista da área, mas tenha a escuta sensível às “dores do coração”.

Para um país, como o Brasil, em que ainda se discute e criminaliza a “ideologia de gênero” e o “kit gay”, em que existe um movimento de “Escola Sem Partido” e a ex-ministra Damares Alves transformou em “política pública” a abstinência sexual como “estratégia” para reduzir a gravidez na adolescência. Ou seja, para um país marcado por um forte discurso de repressão e controle da sexualidade infantojuvenil, calcado em uma moral conservadora que silencia os sujeitos e seus desejos e conflitos, o que nos apresenta Sex Education é, como dizem, um “tapa na cara da hipocrisia sexual”, que pode ser assim resumida: os adultos até podem querer evitar ou controlar a discussão sobre sexualidade, mas não podem evitar a agência dos sujeitos jovens e suas formas de construírem educações sexuais entre seus pares, longe dos olhares e ouvidos dos adultos, concretizando, por suas próprias autodeterminações, parte de seus direitos sexuais.

Isto nos lembrou um fato presenciado por um dos autores deste texto. O ano era 2006. Em uma tarde de sábado, quando adentramos uma sala de aula para ministrar uma oficina com estudantes de uma escola pública de Belém, da faixa etária de 11 a 13 anos, sobre as temáticas da violência sexual, notamos (os três docentes que, na época, também eram estudantes de Direito da Universidade Federal do Pará) ao fundo um grupo de meninos reunidos em uma roda, todos rindo e apontando para o centro da roda. Por curiosidade, nos aproximamos do grupo. Então, pudemos ver o motivo da atenção de todos: um dos garotos estava brincando com um jogo de celular em que o objetivo era acerta a penetração do pênis em uma vagina. Os risos não eram de vergonha ou medo diante da cena sexual que o jogo propunha, mas de alegria ante as tentativas, entre erros e acertos, que cada qual fazia, em seu devido momento.

Naquele momento, a atividade que iríamos realizar mudou completamente de sentido. Já não se tratava de trazer à escola uma temática “nova” para trabalhar desde uma perspectiva pedagógica crítica, mas de experenciar com tais crianças e adolescentes os sentidos e os conhecimentos que produziam na partilha daquele momento coletivo, em que, a partir de um jogo de celular, a sexualidade era vivenciada virtualmente e aprendida no grupo de pares. Esta era uma educação “invisível” dentro da educação escolar, uma das muitas educações que ocorrem dentro da escola. Esta educação pode prescindir de docente, ou de alguém adulto, pois, na verdade, ela é a expressão real da condição de sujeitos de conhecimentos que cada criança e adolescentes carrega consigo.

Isso traz à tona, a importância de falar sobre o assunto. Transformar o sexo e todos os subtemas que o envolvem em um tabu, não vai fazer com que os/as adolescentes parem de falar e buscar informações sobre isso, muitas vezes em fontes não confiáveis e tomando para si uma infinidade de informações falsas. Os resultados disso são inúmeros, e vão desde o aumento nos casos de abusos, de infecções sexualmente transmissíveis e até de gravidez na adolescência. Daí a importância de que profissionais competentes e qualificados, sejam as fontes primárias dessas informações, aqueles/aquelas que irão orientar e garantir que esses/essas adolescentes tenham seu direito garantido de escolha. Proibir e não falar, só exerce o efeito contrário de estimular ainda mais a curiosidade.

Nesse sentido, embora a sexualidade seja um traço inerente ao indivíduo durante todas as fases de sua vida, a educação sexual nas escolas é cada vez mais uma raridade em terras tupiniquins, quando deveria ser o contrário, isto é, parte de um projeto pedagógico de formação dos sujeitos para a vida, em especial a melhor compreensão de seus desejos, relacionamentos e sexualidades. Segundo Cláudia Bonfim (2012), a percepção dos corpos hoje difundida é influenciada pela mídia, pelo capitalismo e mercantilismo, o que gera uma desumanização das relações sociais e afetivo-sexuais, tornando as facetas da sexualidade limitadas e reduzidas ao corpo. Desse modo, a maneira que os/as jovens passam a entender o sexo e sua sexualidade é influenciada por informações que, por muitas vezes, não são pedagógica e didaticamente suficientes para solucionar problemas e deter a perpetuação de tabus envolvendo a temática (DESIDÉRIO, JACINTO e MANCHINI, 2020).

Concomitantemente, vale ressaltar que existe um amparo jurídico a respeito da abordagem da educação sexual nas escolas. Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n° 9.934/1996), em seu artigo 2°, destaca que “[a] educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios da liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando” e a Constituição Federal no artigo 205 afirma que “[a] educação, direito de todos [...] visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania [...]”. Ou seja, a educação sexual não se trata apenas de um dever da família, mas também do Estado, o que corrobora para o entendimento de que as escolas têm o dever de desenvolver essa educação. Além disso, quando a educação é legitimada pela Constituição visando o desenvolvimento da pessoa e se leva em consideração que a educação sexual promove o desenvolvimento dos indivíduos, é perceptível que debater sobre a educação sexual não é apenas uma necessidade, mas é legítimo de acordo com a Carta Magna do país.

Face o exposto, o presente escrito buscou correlacionar, de modo didático, explicativo e exemplificativo, o importantíssimo tema da educação sexual e seus desdobramentos com a série Sex Education – um fenômeno das mídias digitais, que trata com excelência o tema discorrido anteriormente. Além de analisar o tema na atual conjuntura da sociedade brasileira, sobre a qual paira um antigo, persistente e nocivo tabu acerca das questões que envolvem a educação sexual para o público infantojuvenil.

 

Notas e Referências

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

BONFIM, C. Desnudando a educação sexual. Campinas: Papirus, 2012.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB. 9394/1996.

MANCHINE, I.; JACINTO, J. C.; DESIDÉRIO, R. A sexualidade silenciada no ambiente escolar e as contribuições da série Sex Education. Revista on line de Política e Gestão Educacional, Araraquara, v. 24, n. esp. 3, p. 1780-1792, nov. 2020. e-ISSN:1519-9029. DOI: https://doi.org/10.22633/rpge.v24iesp3.14276

[1] Carlos Bazzano é psicólogo social. A fala foi proferida na sessão de debate do lançamento virtual do documentário Connecting the Dots (Unindo vozes), produzido pela cineasta Noemí Weis, no dia 24 de setembro de 2021. Esta documentário percorre diferentes países do mundo para discutir os impactos da pandemia e do isolamento social na saúde mental de adolescentes e jovens estudantes.

 

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