Série Paradoxos Penais III

28/10/2015

Por Rosivaldo Toscano Jr. - 28/10/2015

Legisnaldo Pena é um estudante de direito com propensões para o cometimento de crimes. Só tem um problema: anda sempre com um Vade Mecum embaixo do braço e, por isso, ao consultá-lo, depara-se com as contradições e paradoxos do sistema. E é nas brechas desse sistema penal insólito que Legisnaldo caminha.

Milagrosamente livre do flagrante da prática do crime descrito no art. 273 do CP (vide postagem anterior aqui), Legisnaldo por pouco não foi preso por desacato. Inicialmente, os policiais desconfiaram que ele fosse louco em se autoincriminar, mas diante do teste negativo com o reagente para cocaína, tiveram certeza de sua insanidade. Porém, para não ficar barato, deram-lhe um bom banho usando vários frascos do talco, antes de liberá-lo. Não perceberam, sequer, que aquele talco que trazia Legisnaldo era um produto adulterado destinado a fins terapêuticos, um crime hediondo.

Frustrado em sua tentativa de iniciar uma carreira criminosa, Legisnaldo finalmente aceitou o antigo convite do seu pai, um empresário de sucesso, pra trabalharem juntos numa grande fábrica de calçados de propriedade da família. Ficou responsável pela tesouraria.  E logo encontrou um meio de realizar seus intentos criminosos:

- Pai, achei um ótimo atalho para incrementarmos os lucros da empresa. Esses empregados são uns otários. Olha só, todo mês temos que repassar para a Previdência Social cinquenta mil reais do INSS deles. Vamos embolsar esse dinheiro. Se um dia vierem cobrar, a gente deixa que botem na Justiça. Pode deixar que darei um jeito de remeter tudo antes para um paraíso fiscal para lavar bem direitinho. Temos bons advogados, passarão anos na pendenga e depois, se for o caso, ou fazemos um acordo ou damos baixa nessa firma e abrimos outra!

- Esse meu filho é um empreendedor. Ele vai longe. Viva ao capitalismo! – exclamou o entusiasmado pai.

Meses se passaram, até que um dos empregados foi acidentado e descobriu que estava sem cobertura nenhuma da Seguridade Social graças à “boa vontade” de Legisnaldo. Deu bode. A casa caiu. O Fisco e o INSS fizeram uma batida e constataram a apropriação indébita previdenciária, prendendo Legisnaldo em flagrante. Prejuízo ao Erário Público: trezentos mil reais.

Legisnaldo, algemado, entra na delegacia. Foi mandado a um xadrez lotado. Inventou que seu Vade Mecum era uma bíblia e entrou com ele na cela. Lá dentro, incrivelmente, descobriu que havia um homônimo seu preso por ter se apropriado de um televisor 14 polegadas do vizinho.

O pai - que não estava na empresa na hora da prisão -, logo que soube, acionou sua equipe de advogados. Poucas horas depois, chega um carcereiro diante da cela e pergunta:

- Quem é o preso aí de nome “Legisnaldo Penalício da Silva”?

- Sou eu! - Gritaram os dois jovens.

- É que um vai ser solto agora e o outro continuará preso, pois o juiz decretou a prisão preventiva. Bem, estou vendo aqui que são homônimos. Um é um camelô que se apropriou de um televisor emprestado pelo vizinho... e o outro um empresário que se apropriou de trezentos mil reais recolhidos dos empregados e não repassados à Previdência Social. Quem é cada um dos dois?

O pobre coitado que se apropriou do televisor berrava e se espremia enlouquecidamente nas grades da cela, jurando ser ele a pessoa que apenas se apropriou do aparelho usado do vizinho e que o que queria era, tão somente, assistir aos jogos do Flamengo. E completou:

- Pelo amor de Deus, seu guarda, não fui eu que surrupiei uma fortuna do suor de trabalhadores. Sou só o do caso da televisão velha.

Enquanto isso, Legisnaldo rapidamente sacou seu Vade Mecum debaixo da axila e foi conferir.

- Um instante, por favor, seu guarda. Para responder eu preciso de um pouco de reza (abrindo o Vade Mecum).

Viu que em se tratando de apropriação indébita (art. 168, § 1º, do CP), mesmo que o televisor fosse restituído ao legítimo dono antes do recebimento da denúncia, seria condenado criminalmente. Teria apenas direito a uma diminuição da pena (art. 16 do CP). Após o recebimento da denúncia, pior. Haveria, tão somente, uma atenuação (art. 65, III, b, do CP).

Viu também que em se tratando de empresário que se apropria do dinheiro do INSS dos seus empregados (art. 168-A, do CP), a lei exige uma representação fiscal, precedida da constituição do crédito tributário. E isso só poderia caber se não fosse possível o parcelamento do débito (art. 83 da lei 9.430/96). Tal peculiaridade tornara ilegal a prisão em flagrante de Legisnaldo. Viu também que o parcelamento poderia ser em até 15 anos (art. 1º da lei 11.941/2009) e que durante esse período sequer denúncia poderia ser oferecida (§§ 1º e 2º do art. 83 da lei 9.430/96) e, o melhor, extinguia-se a punibilidade quando o débito fosse todo pago (§ 4º, do art. 83).

Legisnaldo não pestanejou quando encontrou a saída:

Ei, seu agente! Não sei se o camelô bandido que ficou a televisão do vizinho é ele, mas o empresário sou eu!


ROSIVALDO .

Rosivaldo Toscano Jr. é doutorando em direitos humanos pela UFPB, mestre em direito pela UNISINOS, membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD e juiz de direito em Natal, RN.

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Imagem Ilustrativa do Post: 101/365: Inside Job, nada por aquí, nada por allá. // Foto de: Andrés Nieto Porras // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/anieto2k/5610372563/

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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