SERIAM OS PRECEDENTES JUDICIAIS UMA FORMA DE COLETIVIZAÇÃO DO PROCEDIMENTO?

13/08/2021

  Projeto Elas no Processo na Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

O artigo 333 do Código de Processo Civil de 2015, que previa a conversão da ação individual em coletiva, foi vetado e não compõe a redação do CPC em vigor. Referido artigo tratava da possibilidade de tal conversão, diante da existência de pedido coletivo ou da necessidade de solução de “conflito de interesse relativo a uma mesma relação jurídica plurilateral, cuja solução, por sua natureza ou por disposição de lei, deva ser necessariamente uniforme”. Assim, não há previsão legal da possibilidade da conversão de uma ação individual em coletiva.

Todavia, não se pode negar que a instauração de incidente de resolução de demandas repetitivas e o julgamento de recursos especiais e extraordinários repetitivos acabam por ter efeito similar ao do artigo vetado, tanto é que um dos motivos do veto foi o fato de o Código já contemplar mecanismos para tratar demandas repetitivas.

A partir de uma análise dos mecanismos de criação dos chamados precedentes vinculantes, é possível perceber, claramente, que a pretensão da instituição de tais mecanismos foi permitir a extensão dos resultados de um julgamento para outros casos considerados idênticos. Tais procedimentos implicam no reconhecimento do caráter coletivo das matérias neles debatidas, isso porque fazem com que o provimento jurisdicional proferido em um procedimento individual alcance os outros casos idênticos, tratando-se, portanto, de procedimentos destinados à tutela de direitos individuais homogêneos. Ou seja, tais procedimentos buscam tutelar “um conjunto de direitos subjetivos individuais ligados entre si por uma relação de afinidade, de semelhança, de homogeneidade, o que permite a defesa coletiva de todos eles”[i].

Como alerta André Vasconcelos Roque, “os procedimentos para resolução de casos repetitivos frequentemente são associados às ações coletivas, visto que estas contemplam, como um dos seus escopos, o processamento e a apreciação, em um só processo, de direitos classificados como individuais homogêneos”[ii].

Essa aproximação da ideia de julgamentos de casos repetitivos com as ações coletivas decorre, ainda, do fato de que o um procedimento de natureza individual passa a ser julgado considerando a existência de uma considerável quantidade de demandas em que se discute questões de direito idênticas. Assim, um procedimento que seria individual terá o seu provimento jurisdicional estendido, como se coletivo fosse o procedimento.

Em se tratando de procedimentos destinados à tutela de direitos individuais homogêneos e bastante similares ao que seria a conversão da ação individual em coletiva, poderíamos chamá-los de procedimentos coletivos? É essa a reflexão ora pretendida.

Apesar do objeto tutelado, pode-se dizer que o que ocorre em procedimentos como o IRDR e os recursos repetitivos é uma verdadeira coletivização do provimento jurisdicional, que passa a ser aplicável obrigatoriamente, nos termos do artigo 927 do CPC, aos demais casos idênticos.

Não se pode considerar que tais técnicas ocasionam a coletivização do procedimento, tendo em vista que nada além do resultado terá natureza coletiva. Há apenas a coletivização do provimento jurisdicional, não de todo o procedimento.

Para que fosse possível pensar nas técnicas de construção de precedentes vinculares como forma de processo coletivo, seria necessário, em primeiro lugar, questionar a representatividade do litigante. Diante de toda a lógica do processo coletivo brasileiro, que se baseia na representação adequada ope legis, não se poderia admitir que, tão somente em razão da temática debatida nos autos, a parte daquele procedimento se tornasse como legítima representante da coletividade.

Sabe-se que a legislação brasileira adotou o critério legal quanto à legitimidade nas ações coletivas, estabelecendo previamente as pessoas aptas a defender os interesses transindividuais em juízo, considerando, ainda, a representatividade adequada, de forma a garantir que “os membros do grupo que não estão presentes no processo judicial devem ser adequadamente representados para a observância do devido processo legal substancial”[iii].

E, conforme esclarece Flávia Hellmeister Clito Fornaciari, “não se vislumbra justificativa plausível para que qualquer legislação que verse sobre direitos coletivos não coloque a representatividade adequada dentre os princípios dos processos voltados a sua defesa, porque ele é intrínseco ao próprio conceito das ações representativas”[iv].

Assim, não seria possível considerar o litigante individual, parte da demanda em que for instaurado o julgamento repetitivo como representante adequado da coletividade, sendo este um dos principais motivos para não se equiparar as técnicas de construção de precedentes vinculantes ao processo coletivo.

Vale lembrar que, no vetado procedimento de conversão de ação individual em coletiva, haveria a substituição do legitimado ativo por quem requeresse a conversão, que poderia ser o Ministério Público, a Defensoria Pública ou qualquer dos outros previstos no art. 5º da Lei nº 7.347/85 e no art. 82 do Código de Defesa do Consumidor, passando o autor originário a figurar como litisconsorte. Havia, portanto, uma inicial preocupação com a legitimidade coletiva, o que não há nas técnicas de julgamento coletivo previstas no CPC.

Além disso, em um procedimento coletivo, seria necessário refletir sobre a extensão do provimento jurisdicional, de modo que, nos casos em que se pretender a tutela de direito individual homogêneo, a sentença deveria ser imutável com efeitos erga omnes somente nos casos de procedência do pedido inicial. É o que preconiza o art. 103, III, do Código de Defesa do Consumidor, que determina que a sentença somente faz coisa julgada, nas hipóteses de direitos individuais homogêneos, “no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores”.

Sabe-se que não se fala em “coisa julgada” ao se tratar de precedentes vinculantes, mas há uma clara determinação legal no sentido de que o entendimento firmado a partir das técnicas de construção de precedentes deve ser obrigatoriamente aplicado por juízes e tribunais, como se houvesse a obrigação de se preservar a coisa julgada de outra demanda.

Sofia Temer aponta ser inegável a existência de uma dimensão coletiva nos julgamentos de demandas repetitivas, mas esclarece que tais procedimentos não são considerados coletivos, porque se limitam a fixar uma tese em caráter objetivo, sendo que as demais demandas individuais idênticas deverão ser necessariamente apreciadas pelos juízos em que tramitarem[v]. Todavia, não se pode desconsiderar que, na prática, após um julgamento repetitivo, é como se já houvesse prévio julgamento das causas individuais, firmando-se entendimento cuja aplicação é obrigatória. Há sim, análise das demandas individualmente, porém, com a obrigatória vinculação a um provimento jurisdicional firmado em razão da natureza coletiva da questão em discussão. Verifica-se, desse modo, que há uma atípica e insólita extensão da coisa julgada constituída nos julgamentos de casos repetitivos.

Portanto, o que se pretende denunciar aqui é que não se pode reconhecer os precedentes vinculantes como forma de coletivizar o procedimento, sendo mera técnica de coletivizar os provimentos jurisdicionais, tornando um mesmo resultado aplicável em outros casos, sem se importar com quem representava a coletividade no julgamento coletivo, nem mesmo com a forma de extensão destes resultados. Assim, injustificado o veto à conversão da ação individual em ação coletiva, já que a existência de julgamentos repetitivos não proporciona, de fato, a existência de procedimentos coletivos no CPC/2015.

Para fins de reflexão, seria razoável pensar se há necessidade de adequar os julgamentos repetitivos à lógica do processo coletivo ou se o necessário mesmo seria abandonar qualquer ideia que vincule os mecanismos de construção de precedentes judiciais ao processo coletivo.

 

Notas e Referências

[i] ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 43.

[ii] ROQUE, André Vasconcelos. Ações Coletivas e Procedimentos para a Resolução de Casos Repetitivos. In: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da (coords.). Julgamentos de Casos Repetitivos. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 16.

[iii] RICHTER, Bianca Mendes Pereira. Representatividade Adequada: uma comparação entre o modelo norte-americano das class actions e o modelo brasileiro. Revista Jurídica da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. Vol. 1, 2012, p. 227.

[iv] FORNACIARI, Flávia Hellmeister Clito. Representatividade adequada nos processos coletivos. Tese de doutorado. São Paulo: Faculdade de Direito da USP, 2010. p. 54

[v] TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 94.

 

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