Tramita no Congresso Nacional Projeto de Lei (PL) nº 844/2024 de autoria da Senadora Margareth Buzetti (PSD/MT) que “altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, e a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal, para modificar os regimes de cumprimento de pena, extinguindo o regime semiaberto”.
Das justificativas
Em apetada síntese, a Senadora autora do PL apresenta as seguintes justificativas:
1. que o regime semiaberto praticamente não existe em nosso país; 2. que não há benefícios palpáveis que compensem os custos dessa etapa do cumprimento da pena. As saídas dos detentos não são devidamente fiscalizadas e o Estado não possui o controle de suas ações; 3. que o regime fechado de prisão não vem apresentando sua função intimidadora, preventiva especial, tampouco preventiva geral. Mesmo nos casos de crimes graves, cometidos com violência ou grave ameaça, como o roubo, os condenados tendem a cumprir menos de dois anos de prisão em regime efetivamente fechado. É uma anomalia que torna a sociedade atemorizada e hipervigilante.
Afinal, propõe que “o condenado a pena superior a 6 (seis) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado; e o condenado a pena igual ou inferior a 6 (seis) anos poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto, mas desde que tenha cometido crime sem violência ou grave ameaça e não apresente risco à sociedade” e, conclui afirmando que “o efeito intimidatório da prisão deve ser urgentemente resgatado”.
Dos regimes de cumprimento da pena[1]
1) Sistema filadélfico (belga ou celular)
Teve sua origem em 1681 na Colônia da Pensilvânia. Contudo, foi em 1790, sobre a influência dos Quakers, com a construção da primeira prisão norte-americana, a Walnut Street Jail, que o chamado sistema filadélfico desenvolveu-se. [2] Neste sistema os presos ficavam completamente isolados em uma cela sem qualquer contato com os demais presos, também eram obrigados a rezar. As celas eram pequenas, escuras e insalubres. O referido sistema levou muitos presos a enlouquecerem ou suicidarem-se.[3]
2) Sistema auburniano (silente system).
O sistema auburniano, como o nome já diz, surgiu na cidade de Auburn (Nova Iorque), nos Estados Unidos da América, no ano de 1818.[4] Este sistema prescrevia a cela individual durante a noite, trabalho e as refeições em comum e, como regra, o silêncio absoluto onde os presos só podiam falar com os guardas, com a permissão destes e em voz baixa.
Conforme, verifica-se, não há diferenças substanciais entre esses dois sistemas, tanto o sistema filadélfico como o auburniano se baseiam numa rígida disciplina e na submissão completa do ser humano. Como bem observa Michel Foucault em seu Surveiller et pinir (vigiar e punir), a pena passou a ter como alvo principal, não mais os corpos dos condenados (suplícios), mas o controle e domínio da alma através da disciplina e da correção.
Referindo-se aos “recursos para o bom adestramento” Michel Foucault afirma que:
O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo. (...) A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício...[5]
3) Sistema progressivo (inglês e irlandês)
O Sistema progressivo de cumprimento da pena tem sua origem no sistema inglês desenvolvido pelo capitão Alexander Maconochie, no de 1840, na Ilha de Norfolk, na Austrália, conhecido também como sistema de “vales” ou “marcas” em que a duração da pena era medida pelo trabalho e a boa conduta do condenado. O referido sistema foi aperfeiçoado por Walter Crofton, nomeado em 1854 diretor de prisões na Irlanda, sempre visando preparar o regresso do interno (recluso) para a sociedade. O referido regime era composto por quatro fases: 1) reclusão celular diurna e noturna; 2) reclusão celular noturna e trabalho diurno; 3) período, denominado por Crofton, como “intermediário” (entre a prisão em local fechado e a liberdade condicional), no qual o preso trabalhava ao ar livre, no exterior do estabelecimento penal; 4) liberdade condicional, onde o preso era libertado sob determinadas condições até atingir a liberdade definitiva.
Assim, o sistema Inglês/Irlandês fixou as bases de um regime progressivo adotado pelo nosso Código Penal.
O Código Penal brasileiro prevê três regimes de cumprimento da pena: regime fechado, semiaberto e aberto. De acordo com o art. 33 do Código Penal (CP), considera-se: “regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média; regime sem-aberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar; regime aberto a execução da pena em cãs de albergado ou estabelecimento adequado”. Estabelece, ainda, o Código Penal que: “as penas privativas de liberdade deverão ser executadas de forma progressiva, segundo o mérito do condenado...” (art. 33, § 2º), no mesmo sentido a Lei de Execução Penal (art. 112).
O sistema progressivo de pena adotado pela legislação brasileira permite que o condenado, assim como o ocorria com as saídas temporárias – aniquilada pela Lei nº 14.843, de 11 de abril de 2024 – gradualmente se reintegre a sociedade. Constitui instrumento de suma importância para os fins de reintegração e ressocialização do preso que tem no discurso oficial da pena uma de suas finalidades, além da punição. Neste particular, o regime semiaberto - o qual a autora do PL 844/2024 pretende extinguir -, cumpre papel essencial, posto que, de acordo com a lei, “o condenado fica sujeito ao trabalho em comum durante o período diurno, em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar” (§ 1º do art. 35 do CP). Sendo, ainda, admitido o trabalho externo, bem como a frequência a cursos supletivos profissionalizantes, de instrução de segundo grau ou superior (§ 2º do art. 35 do CP).
Da prevenção geral e da prevenção especial da pena
Resumidamente, as chamadas teorias relativas, utilitárias ou da prevenção da pena se dividem em: prevenção geral e a prevenção especial. Prevenção geral é a intimidação que se supõe alcançar através da ameaça da pena e de sua efetiva imposição, atemorizando os possíveis infratores, visando produzir efeitos dissuasórios.
A prevenção especial ou individual caracteriza-se pela atuação sobre o autor do crime, sobre o apenado, para que este não volte a delinquir. Aqui, também, como na prevenção geral, verifica-se a intimidação. Contudo, a pena já não é mais uma abstração (prevenção geral), a pena torna-se, agora, uma realidade para o condenado. Promove-se, também, a prevenção especial através da segregação do condenado, buscando uma função imediata de segurança com o isolamento (neutralização) do delinquente.
A prevenção geral subdivide-se em: prevenção geral negativa (a pena dirige-se aos infratores potenciais, visa produzir, através da intimidação, uma contra motivação à transgressão) e prevenção geral positiva (a pena é dirigida aos cidadãos fiéis à lei, visando integrar a sociedade em torno das normas).
Inúmeras são as críticas em relação as teorias de prevenção da pena, especialmente no que se refere a teoria da prevenção geral positiva, neste sentido Winfried Hassemer assevera que
Qualquer um que seja minimamente versado em criminologia sabe que o postulado preventivo do alcance dos objetivos só se dará no dia de “São Nunca” (ST. Nimmerleinstag). Assim, há pequenos criminosos de tendência, estelionatários e ladrões, que transformarão suas formas de vida no máximo após uma intervenção penal mais intensa; e nem mesmo os criminólogos sabem como se pode aferir, com certeza, que da punição de um caso concreto decorrerá uma intimidação exitosa: êxito da prevenção e medida da pena podem estar bastante distanciados entre si.[6]
Conclusão
Por tudo que foi exposto, ainda que resumidamente, o PL nº 844/2024 de autoria da Senadora Margareth Buzetti (PSD/MT) deve ser rejeitado. O pretendido fim do regime semiaberto – quer seja como uma das etapas da progressão de regime ou como regime inicial de cumprimento de pena – se transformara em mais um estorvo, dos tantos que já existem, para almejada reintegração do condenado na sociedade.
Em suas justificativas a autora do PL ao apontar que “o efeito intimidatório da prisão deve ser urgentemente resgatado”, despreza a realidade e as evidências que demonstram que o efeito dissuasório da pena jamais se comprovou.[7]
No dizer de Tobias Barreto, “quem procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar, se é que já não encontrou, o fundamento jurídico da guerra”.
Em um Estado Democrático de Direito deve se evitar que a pena se converta em um fim em si mesmo, o direito penal deve se orientar pelos princípios da legalidade, da irretroatividade, da intervenção mínima (fragmentariedade e subsidiariedade), da lesividade, da culpabilidade, da individualização e da proporcionalidade das penas, e, por fim, como coroamento de todos os demais princípios, o princípio da humanidade, não perdendo de vista os pressupostos de proteção ao bem jurídico “quando imprescindível para assegura as condições de vida, o desenvolvimento e a paz social, tendo em vista o postulado maior da liberdade e da dignidade da pessoa humana”.[8]
Notas e referências
[1] PIMENTEL, M.P. apud Prado, Luiz Regis, diferencia os sistemas penitenciários dos regimes penitenciários, para o referido autor, os primeiros “representam corpos de doutrinas que se realizam através de formas políticas e sociais constitutivas das prisões”, enquanto os regimes penitenciários são “as formas de administração das prisões e os modos pelos quais se executam as penas, obedecendo a um complexo de preceitos legais ou regulamentos”. REGIS, Luiz Prado. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral, 12. ed. ver. atual. E ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p.645.
[2] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. rev. por Fernando Fragoso, Rio de Janeiro: Forense, 2003 p.355.
[3] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, volume 1. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.128.
[4] PRADO, Luiz Regis, op. cit. p. 646.
[5] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 40. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
[6] HASSEMER, Winfried. Punir no estado de direito. Tradução Fernanda Tórtima. Estudos em homenagem a Juarez Tavares por seu 70º Aniversário em 2 de setembro de 2012.Organizadores Luiz Greco e Antonio Martins. Madrid: Marcial Pons Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A., 2012, p. 335-344.
[7] “A história demonstra que a função de prevenção geral negativa nunca funcionou: a ameaça, mediante normas penais, não evita a prática de delitos ou a formação de conflitos; ao contrário, eles se multiplicam e se sofisticaram. O efeito dissuasório não se comprovou, estando, ao contrário, demonstrado que a aparição do delito não está relacionada como o número de pessoas punidas, ou com a intensidade das penas impostas”. KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Niterói, RJ: Luam, 1991, p. 175.
[8] PRADO, Luiz Régis. Bem jurídico-penal e constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 52.
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