Sempre haverá luta! Juristas contra o autoritarismo nacional - Por Antonio Pedro Melchior

05/04/2016

Por Antonio Pedro Melchior - 05/04/2016 

Caros professores Miguel Reale Jr., Janaina Paschoal, Sérgio Moro, por favor, avisem aos demais. Sempre houve e, sempre haverá, luta. Antes de vocês vieram outros e, para falar a verdade, não esperamos que isso acabe tão cedo. Apenas lembrem de como insistiu Foucault. A resistência vem em primeiro lugar, ela permanece superior a todas as forças do processo e obriga a mudarem as relações de poder.[1]

Muitos juristas compartilhavam suas ideias e ações políticas. Uma visão de mundo antiliberal, a aposta na força ao invés do diálogo, a defesa da ruptura democrática ou, simplesmente, a crença de que garantias individuais são favores concedidos aos criminosos e que urge conferir maior força repressiva ao Estado. [2]

Mas sempre houve e sempre haverá, luta. Juristas que dedicaram suas vidas à causar desvios nas práticas autoritárias estatais, respaldadas pela sociedade. Silenciados na narrativa deixada pelos vencedores (Benjamin), estes juristas foram e, ainda são, diques de contenção e reafirmação da democracia e das liberdades. Este breve texto é uma deferência à eles. Aos juristas "absolvidos pela história".

Juristas de ontem e de agora, que colocam o seu pensamento ao lado do povo oprimido do país e se dispõem a dar parte de si por um projeto de transformação social e cultural. Impedir que se degenerem conquistas políticas, construir novas práticas no sistema de justiça criminal, resistir às macro e micro patologias inquisitoriais.

No campo da história das ideias, especialmente quanto ao funcionamento do sistema de justiça penal, o atual contexto brasileiro não é diferente do que já se viu aqui em outras épocas. O mesmo se diga das outras experiências pelo mundo. A hipótese é a seguinte:

1. O discurso de manutenção da segurança e da ordem representa uma “razão de Estado” [3] e está em tensão permanente com a efetividade das liberdades; 2. Em torno desta tensão, agrupam-se forças sociais distintas, dentre elas os juristas. A tensão entre juristas expressa duas perspectivas em conflito: expansão do poder estatal e tutela da defesa social (segurança e ordem) vs contenção do poder estatal e tutela dos direitos fundamentais (liberdades). 3. Cada uma destas perspectivas produz uma teoria jurídica-criminal afinada aos pressupostos políticos e ideológicos de um modelo de Estado: autoritário ou democrático.

A partir deste mapeamento, a questão é saber de que lado da corda o jurista se encontra.

Na resistência ao império no Brasil, destacaram-se Xavier da Silveira, Luiz Gama, João Marques e Eduardo Carigé. São nossos exemplos remotos de juristas, advogados e militantes abolicionistas, responsáveis por auxiliar os escravos em ações de liberdade ou de “manutenção” de liberdade. Por este motivo, sofreram ameaças e perseguições de fazendeiros escravistas, transformando o espaço dos tribunais numa arena de conflitos.[4] O tumulto causado por suas atuações tiveram grande peso de pressão política na desagregação da escravidão. [5]

Eduardo Spiller Pena lembra que, por outro lado, os juristas integrantes do Instituto dos Advogados Brasileiro teriam adotado uma posição pragmática, defendendo a liberdade dos escravos no limite dos direitos de propriedade, logo, se não provocassem “desordem e intranquilidade social na nação”.[6] Estes juristas tiveram papel fundamental na elaboração da ideologia jurídica do Estado imperial, o que se explica pelas suas ligações orgânicas com os “quadros do governo, tanto nos cargos administrativos, como nas cadeiras do legislativo e nas altas posições políticas ligadas ao Conselho de Estado”. [7]

Ao longo da história política do país, é comum ver juristas se dedicaram à construção de uma “ideologia jurídica de Estado”, redesenhando suas instituições, seja pela produção teórica que lhe dá suporte, seja pela formulação direta de políticas públicas.

No período do Estado Novo esta participação foi particularmente intensa, a considerar o grande “esforço para legitimar o regime perante a sociedade e opinião pública”. Como concluiu Diogo Malan, os ideólogos autoritários brasileiros de década de 30 tiveram inegável importância para a criação de um novo arranjo institucional “caracterizado por um projeto político-ideológico extremamente bem organizado e articulado em seus diversas linhas de atuação”.[8]

Responsável pela primeira Lei de Segurança Nacional (Lei nº. 38/35), o jurista e político Vicente Rao, então Ministro da Justiça do governo Vargas, instrumentalizou o executivo com amplos poderes de emergência e teve forte atuação contra o comunismo no campo forense.[9] Movido pelo desejo de “alterar o tradicionalismo judiciário ultrapassado”, compareceu no dia 14 de julho de 1936 à Câmara dos Deputados onde falou do “doloroso anacronismo da democracia liberal que desarmava o Estado na luta contra seus inimigos” [10]. No dia seguinte, Getúlio Vargas enviou ao Congresso uma mensagem em que requeria a criação de um órgão especial de justiça: [11] o Tribunal de Segurança Nacional.

Considerado por vários autores como o típico intelectual orgânico do autoritarismo no Brasil, [12] ainda na década de 20, Francisco Campos já trazia ao debate doutrinário e à ação administrativa pública, os conceitos e programas para constituição de um Estado nacional, antiliberal, autoritário e moderno. [13] Na década de 30 investiu com maior “violência” contra as liberdades individuais, os parlamentos e as instituições democráticas em geral. Foi o reformador do sistema de ensino nacional, das instituições jurídicas e das instituições políticas. [14] O arranjo político-institucional do Estado Novo foi, em grande parte, consequência da orientação ideológica do seu pensamento político.[15]

Nenhum projeto autoritário se constrói impunemente.

Em 1936, no âmbito do debate parlamentar, houve resistência à tentativa de criação do Tribunal de Segurança Nacional. A minoria, liderada por João Neves da Fontoura acusou o projeto de violar o princípio do juiz natural, arguindo a sua inconstitucionalidade face ao artigo 113, §25º da Constituição da República de 1934 (que vedava o tribunal de exceção).

Reynaldo Pompeu de Campos lembra ainda que os deputados Rego Bastos, Arthur Santos e Roberto Moreira, então membros da comissão de Constituição e Justiça, negaram-se a assinar o parecer favorável ao projeto de lei, apresentando, em separado, voto que enfatizava a violação ao princípio da irretroatividade (uma vez que estipulava a aplicação das leis nº 38 e nº 136/1936 aos réus da intentona comunista - 1935).[16] A minoria parlamentar, composta ainda por nomes como o de Otavio Mangabeira e Adolfo Bergamini[17], bacharel em direito, sustentaram com firmeza a inconstitucionalidade do projeto de Vicente Rao, denunciando que era com esse aparelho inquisitorial que afronta a nossa lei magna e mancha nossa civilização que se pretendia salvar a democracia brasileira abalada em seus fundamentos pelos próprios órgãos da soberania popular.[18]

Evandro Lins e Silva, na contramão do silêncio dos juristas, se posicionou sobre a repressão política no país na década de 30. Em publicação de 1938, no mesmo volume em que a Revista de Direito Penal publicava a nova regulamentação para o Tribunal de Segurança Nacional (Lei nº 244/1938), Evandro Lins e Silva interpelava a comunidade jurídica e política à garantir uma maior e mais efetiva proteção legal nas imputações por crimes políticos.[19]

Estamos particularmente acostumados ao discurso de que é necessário reformar as instituições, em especial as leis penais, para proteger a sociedade de indivíduos perigosos: terroristas, subversivos, vândalos ou corruptos. Esta é uma constante na linguagem oficial do Estado e dos grandes meios de comunicação. As demandas pelo recrudescimento da ordem, a ideia de que o indivíduo é pequeno demais e deve se submeter à engrenagem do poder, em nome da pátria, da nação, da sociedade. Fragilizar as garantias fundamentais, dar ao juiz criminal a força de que precisa para proteger os cidadãos de bem. Tudo isto é antigo demais.

Sabemos que sempre existe um espaço para intervir e produzir os desvios de que necessitamos, se não para impedir, para deixar um furo em qualquer projeto autoritário de poder, político ou de justiça criminal. Deste furo, respiraremos. A história é também e, principalmente, a história dos que não sucumbiram. Aqueles à quem devemos, em qualquer geração, os direitos de liberdade. Sempre houve e, sempre haverá, luta.


Notas e Referências:

[1] FOUCAUL, Michel. Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e a política de identidade, 1982. In: Ditos & Escritos. Genealogia da Ética, Subjetividade e Sexualidade. Vol. IX. Ed. Universitária, 1994.

[2] Concebido como a principal expressão jurídica do Estado Novo, tais expressões constam da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal atual, promulgado no ano de 1940.

[3] Para Michel Foucault, a “Razão de Estado” é a própria essência do Estado. “O Estado que garante a segurança é um Estado que está obrigado a intervir em todos os casos em que a trama da vida cotidiana é rompida por um acontecimento singular, excepcional. De repente, a lei não está mais adaptada; de repetente, são necessárias essas espécies de intervenção, cujo caráter excepcional, extralegal, não deverá parecer como signo do arbítrio nem do excesso de poder, mas, ao contrário, de uma solicitude. (...) É essa a modalidade de poder que se desenvolve”. FOUCAULT, Michel. Segurança, População e Território. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp. 170/171.

[4] PENA, Eduardo Spiller. Pajens da Casa Imperial. Jurisconsultos, Escravidão e a Lei de 1871. Campinas – SP: Editora da Unicamp, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2001. p. 26

[5] PENA, Eduardo Spiller. Pajens da Casa Imperial. Jurisconsultos, Escravidão e a Lei de 1871. Campinas – SP: Editora da Unicamp, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2001. p. 26

[6] Esta é a conclusão de Eduardo Spiller, não exatamente similar a de Eneá de Stutz e Almeida que também estudou a atuação do Instituto dos Advogados Brasileiros durante o Estado imperial. Cf. ALMEIDA, Eneá de Stutz e. Ecos da Casa de Montezuma. O Instituto dos Advogados Brasileiros e o Pensamento Jurídico Nacional. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007.

[7]PENA, Eduardo Spiller. Pajens da Casa Imperial. op. cit, p. 37. Entre estes, sobressai o nome de Perdigão Malheiros, presidente do IAB (Casa de Montezuma) entre os anos de 1861 e 1866 e parlamentar na câmara imperial (1869 a 1872) como deputado do partido conservador por Minas Gerais.

[8] MALAN, Diogo. Ideologia política de Francisco Campos. In: MELCHIOR, Antonio Pedro, MALAN, Diogo, SULOCKI, Victoria-Amalia de Barros Carvalho Gozdawa de. Autoritarismo e Processo Penal Brasileiro. Coleção Matrizes Autoritárias do Processo Penal Brasileiro/ Geraldo Prado e Diogo Malan (organizadores) Vol.1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 40

[9] PEREIRA, Anthony W. Ditadura e Repressão. O autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 85

[10] CAMPOS, Reynaldo Pompeu de. Repressão Judicial no Estado Novo. Esquerda e Direita no Banco dos Réus. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982, p. 39

[11] “(...) Não há negar tampouco, a impropriedade do processo e julgamento nos moldes das leis vigentes, adstritas como estão a limites e preceitos cuja eficácia não se contesta para os tempos normais, mas pode revelar-se insuficiente, como de fato se revela, para situação graves, tal a que o país apresenta. Sem um julgamento rápido, enérgico e duplamente eficiente, no sentido da repressão e no da prevenção, será muito precária a defesa das instituições e da ordem (....).” VARGAS, Getúlio. Dever do Estado e defesa do regime. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1936, p. 42. A mensagem de Vargas ao Congresso foi citada por CAMPOS, Reynaldo Pompeu de. Repressão Judicial no Estado Novo. op.cit., p. 41.

[12] MORAES, Maria Célia. Francisco Campos: o caminho de uma definição ideológica (anos 20 e 30), In: DADOS: Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 35, n. 02, 1992, pp. 239-265. Conferir a categoria intelectuais orgânicos proposta em GRAMNSCI,  Antonio. Os intelectuais e a Organização da Cultura. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Círculo do Livro.

[13] JARBAS, Medeiros. Ideologia Autoritária no Brasil 1930/1945.op. cit, p. 12.

[14] Quanto as instituições jurídicas, promoveu a reforma dos Códigos de Processo Penal e Civil, da Lei de Contravenções Penais, as Leis contra a Economia Popular, a nova Lei do Júri, a Lei Orgânica do Ministério Público Federal, a nova Lei de Segurança e a reorganização do Tribunal de Segurança Nacional, a Lei das Nacionalidades, a de Atividades Políticas de Estrangeiros, etc. Quanto às instituições políticas, foi o redator da Constituição de 1937 e de todas a legislação de exceção do Estado Novo, realizada por decretos-lei.

[15] SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Francisco Campos: um ideólogo para o Estado Novo. In: Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 13, n. 02, pp. 31-48, 2007, p. 46-47

[16] CAMPOS, Reynaldo Pompeu. Repressão Judicial no Estado Novo. Esquerda e Direita no Banco dos Réus. op. cit, pp. 43-44. Em defesa do Tribunal de Segurança Nacional e contrário à minoria parlamentar, Adalberto Correia sustentava que “se antigamente era necessário que as leis protegessem o cidadão contra o Estado, hoje é indispensável que se defenda o Estado contra o indivíduo. Na atualidade, só com um organismo de exceção, armado de amplos ou ilimitados poderes poderá opor um dique à avalanche comunista (...). Toda a nossa atenção deve estar voltada para a estabilidade do regime e não para a garantia de supostos direitos de criminosos aos quais o sr. João Neves de Fontoura trata carinhosamente de irmãos”. CORREIO DA MANHÃ, Discurso de Adalberto Correia. Rio de Janeiro, 1 set. 1936, p. 6.

[17] Mangabeira acabou preso e exilado com a decretação do Estado Novo. Desde a década de 20, Adolfo  Bergamini protagonizava debates intensos com Francisco Campos, então deputado estadual. Na sessão de 31 de julho de 1924, quando Campos subiu à tribuna para justificar a medida do Governo de estender à Bahia o estado de sítio (primando pela ordem e autoridade), Bergamini o acusou de armar o aparato repressivo do Estado por fora do Constituição, invocando precedentes contra a Carta e atentando contra as liberdades públicas. Diante do fechamento do Congresso em novembro de 1937, Adolfo Bergamini encerrou a carreira parlamentar. Os debates travados na câmara dos deputados na década de 20, com ênfase na construção do pensamento político de Francisco Campos podem ser encontrados em CAMPOS, Francisco Luís da Silva, 1891-1968. Francisco Campos, discursos parlamentares. Sel. e intr. de Paulo Bonavides. Brasília: Câmara dos Deputados, 1979. A respeito da atuação de Otávio Mangabeira entre 1930/1937, conferir CARDOSO, Kelson Carlos de Carvalho. Otávio Mangabeira: projeto político e disputas em torno do passado. Disponível em https://pos.historia.ufg.br/up/113/o/IISPHist09_KelsonCarlalhoCardoso.pdf, consultado em 04 de junho de 2015.

[18] CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, 5 ago. 1934, p. 4. Muitos jornais da época encontram-se digitalizados e disponíveis à pesquisa. O Correio da Manhã, por exemplo, pode ser consultado em: www.hemerotecadigital.bn.br.

[19] SILVA, Evandro Lins e. O “sursis” e o crime político. Revista de Direito Penal, v. XXIII, fasc. I-III, out/dez. 1938, pp. 17-24.


Antonio Pedro MelchiorAntonio Pedro Melchior é Doutorando em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro; Professor de direito processual penal do IBMEC/RJ; Professor e coordenador adjunto de Direito Processual Penal da EMERJ; Membro do Fórum Permanente de Direito e Psicanálise da EMERJ; Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná; Advogado Criminalista.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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