SEGURANÇA PÚBLICA E A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS: DESIGUALDADES, SISTEMA CARCERÁRIO E VIOLÊNCIA POLICIAL

26/06/2020

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

É possível dizer que, durante a pandemia do coronavírus, a extensa trama dos atores e instituições do Estado ganham novo holofote. No que diz respeito à área da segurança pública, diversos problemas sociais antes já existentes tomam outra magnitude, especialmente no aprofundamento de desigualdades, possibilitando que aqui falemos do agravamento do cenário de superlotação carcerária e do contexto da violência urbana.

Importa destacar, primeiramente, o agravamento das desigualdades sociais durante a pandemia, vez que as populações mais afetadas pelo vírus possuem cor, raça e classe. Dados do boletim epidemiológico da Prefeitura de São Paulo do dia 30 de abril apontam que o risco de morte de pessoas negras por Covid-19 é 62% maior em relação aos brancos. No caso de pessoas pardas, esse risco é 23% maior. Populações estruturalmente vulnerabilizadas socialmente tendem a, em períodos de extenso rearranjo social - por questões das mais diversas faces -, ser constantemente realocadas para os espaços de gerências de suas vidas pela morte.

Ademais, não é novidade a existência de uma estrutura jurídica que não garante o exercício de direitos a todas as pessoas. O sistema jurídico, ao invés de mitigar estas diferenças, é ainda outro espaço responsável por reproduzi-las, gerando ainda mais exclusão.

Nessa leitura, a pandemia do coronavírus evidencia a naturalização das desigualdades estruturais da nossa sociedade. De início, destacamos os efeitos de medidas em dois níveis: a) com as chamadas medidas sanitárias, a partir das exigências de lavagem constantes das mãos com água e sabão e cuidados maiores de higiene; e b) a restrição de circulação, a partir da necessidade de praticar o “isolamento social”, que de imediato deflagra a impossibilidade de confinamento por todos(as). São indicações sociais que apontam para a inexistência de um direito mínimo à moradia e ao saneamento, considerando a existência de infraestruturas urbanas precarizadas no que tange à mobilidade urbana e ao saneamento, sobretudo em regiões periféricas, e à inexistência de políticas públicas voltadas para o planejamento urbano.[1]

Essas desigualdades também se manifestam no agravamento da truculência nas relações da polícia com as comunidades. No Estado do Rio de Janeiro, apesar da diminuição de registros de crimes durante a pandemia, houve um aumento de 13% de mortes em intervenções das forças de segurança em relação ao ano de 2019, mesmo com a necessidade de confinamento como forma de contenção do contágio do coronavírus, de acordo com os dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) e do Observatório de Segurança do RJ. Só em abril, o número de mortes subiu 43% em relação ao mesmo mês do ano passado. Em São Paulo, o número de 255 mortes em supostos confrontos com a polícia entre janeiro e março representam um aumento de 23% em relação ao ano anterior, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado.

O debate acerca da temática do fazer-policial, perpassando pelos campos do legítimo, do legal, e do entendimento sobre a violência, já são amplamente explorados no campo da sociologia da violência, demonstrando um quadro preocupante em relação às polícias e demais instituições de segurança pública no Brasil (ADORNO; DIAS, 2014; KANT DE LIMA, 2014; COSTA; LIMA, 2014; MUNIZ; JUNIOR, 2014).

Em relação ao atual momento em que vivemos, um movimento virtual tomou forma a partir da morte de João Pedro, um garoto negro de 14 anos, que foi baleado no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no Estado do Rio de Janeiro, caso que teve repercussão nacional. Familiares relataram que ele foi executado dentro do pátio de casa, enquanto brincava, por um policial militar. Existem relatos de invasões e operações policiais em Belford Roxo, Manguinhos, Vidigal e Chapadão, com operações que deixaram 13 mortos no Complexo do Alemão, ocorridas em datas muito próximas à execução do Complexo do Salgueiro (entre os dias 16 e 18 de maio).

Analisando esse caso, que não é isolado, mas foi um dos poucos de maior repercussão, temos que a pandemia do coronavírus parece colocar em evidência um agir policial já antigamente padronizado no Brasil: a falta de controle do trabalho policial junto com a legitimidade de um agir violento, ainda mais em um governo onde a bandeira levantada era a de extermínio de criminosos, retroalimenta um sistema de mortes daqueles considerados passíveis de morrer.

Ademais, a falta de um olhar estatal também se direciona para os policiais que estão na “linha de frente” de atuação na pandemia, em contato com diversas pessoas, sendo mais expostos tanto ao coronavírus quanto a várias outras doenças transmissíveis. No momento em que uma pandemia é tratada de forma tão displicente, esses profissionais são deixados por “conta própria”, deixados sem um amparo governamental necessário para exercer seu trabalho diário, resultando em um ambiente preocupante, em que os altos números de mortes de policiais em serviço e por suicídio demonstram o delicado quadro desses trabalhadores.

Como forte indicativo empírico acerca da atuação problemática das instituições policiais, pensemos e atentemos para as manifestações que estão ocorrendo em todo o Brasil, com o lema de “Black Life Matters”, ou “Vidas Negras Importam”, que denunciam a violência estatal direcionada para a população negra, que tiveram um estopim atualmente, a partir da morte de George Floyd nos Estados Unidos, o que acabou gerando manifestações em vários locais do mundo, inclusive no Brasil.

Aqui, os movimentos aparecem como forma de luta antirracista, para denunciar o racismo estrutural da sociedade brasileira, para cobrar das instituições jurídicas o controle da polícia e demonstrar que a violência policial é seletivamente direcionada para determinado grupo social. Mesmo em meio a uma pandemia, a problemática da violência policial parece transpor essa situação, manifestando seus efeitos na continuidade de um projeto genocida contra a população negra.[2]

Com relação ao quadro do sistema carcerário, o cenário de superlotação anterior à pandemia do coronavírus se agrava em função da impossibilidade de tomar os cuidados mínimos para evitar a propagação do vírus. Do total de pessoas presas, 250 mil já possuem algum tipo de doença, que podem ser potencializados a partir da pandemia, ainda mais em se tratando de um local com condições insalubres. O potencial de proliferação é aprofundado em razão da existência de outras doenças contagiosas que há muito tempo afetam a população carcerária e os servidores de unidades prisionais. Estima-se que o risco de contágio de tuberculose nos presídios, por exemplo, seja 30 vezes maior do que o risco verificado na população comum.[3]

Além disso, é importante destacar que o perfil majoritário das pessoas encarceradas é de jovens, de 18 a 29 anos, pretos e pardos, que respondem, sobretudo, por crimes contra o patrimônio e relacionado à lei de drogas, o que, por si só, demonstra uma marca de desigualdade racial, social e de educação. Parecem ser, de novo, essas pessoas as mais afetadas pela proliferação das doenças dentro do sistema carcerário.

Assim, temos um sistema que caminha na direção contrária aos procedimentos para minimizar os riscos da proliferação do coronavírus, que exige medidas como higienização das mãos e superfícies, ventilação dos espaços, não aglomeração de pessoas, isolamento social e atendimento imediato de quem apresenta os sintomas. Com isso, no sistema prisional e socioeducativo, entre os dias 15 de maio e 15 de junho, foi de 180% o crescimento de número de casos confirmados do vírus entre pessoas presas e servidores, totalizando em 5.754 ocorrências, conforme divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[4].

Como medida minimizadora do campo apresentando, o CNJ lançou a Recomendação n. 62/2020, aprovada em 17 de março, com inúmeras indicações preventivas à propagação da infecção pelo coronavírus no âmbito dos estabelecimentos do sistema prisional e do sistema socioeducativo. A Associação Nacional de Membros do Ministério Público Pró-Sociedade ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 660 contra dispositivos da Recomendação 62/2020 do CNJ[5], indicando, sobretudo, que os dispositivos são potencialmente ofensivos ao direito individual e coletivo à segurança, incluindo a segurança sanitária, ao direito social à saúde e ao princípio da legalidade.

Em 18 de março, o STF decidiu que juízes de execução penal deveriam seguir as recomendações do CNJ para evitar a disseminação de coronavírus nas prisões. A Recomendação 62/2020 sugere a reavaliação de prisões provisórias, especialmente quanto a grupos mais vulneráveis (como mães, portadores de deficiência e indígenas) ou quando o estabelecimento estiver superlotado ou sem atendimento médico. Recomenda, ainda, reavaliação de prisões preventivas com prazo superior a 90 dias ou que resultem de crimes menos graves, além de indicar que novas ordens de prisão devem respeitar a máxima excepcionalidade.

Ainda, a Recomendação é para que os magistrados avaliem a concessão de saída antecipada nos casos previstos em lei e na jurisprudência, e também a reconsideração do cronograma de saídas temporárias em aderência a planos de contingência elaborados pelo Executivo. Recomenda a opção pela prisão domiciliar aos presos em regime aberto ou semiaberto ou quando houver sintomas da doença, assim como suspensão da obrigatoriedade de apresentação em juízo pelo prazo de 90 dias nos casos aplicáveis.

De outro lado, antes de abandonar o cargo de ministro da justiça, Sérgio Moro apresentou proposta para colocar apenados idosos ou com sintomas de covid-19 em instalações provisórias, como contêineres e barracas de campanha. Diante disso, diversas organizações sociais divulgaram um ofício contra a proposta. Para eles, os “contêineres violam direitos fundamentais, sendo uma pena cruel, e também violam os manuais de prevenção ao coronavírus”[6].

O que se percebe é um cenário de disputa por manter o discurso da suposta segurança por meio do encarceramento, mesmo que isso represente um risco agravado de proliferação do coronavírus, enquanto algumas instituições do sistema de justiça e setores da sociedade civil tentam apresentar alternativas preventivas.

A partir destes breves apontamentos e dos dados disponibilizados, nos deparamos com um quadro preocupante acerca dos avanços da COVID-19 em território nacional. Em se tratando do campo de Segurança Pública, percebemos uma gerência da vida e das mortes das pessoas, com vieses que parecem escorrer para, mais uma vez, demonstrar quais vidas são possíveis de serem vividas e quais são descartáveis.

O anseio punitivista, presente há muito no contexto social, se reinventa a partir da trama de manter as pessoas indesejadas na prisão, mesmo que isso represente inúmeras violações às recomendações internacionais de prevenção à proliferação do coronavírus. Além disso, o suposto isolamento social contribui para a não intervenção na atuação violenta e discriminatória da polícia, dificultando a visibilidade e a denúncia de casos de abuso e truculência.

 

Notas e Referências

[1] LIMA, Roberto Kant de; GERALDO, Pedro Heitor Barros; MOTA, Fabio Reis; SANTOS, Flávia Medeiros; POLYCARPO, Frederico. O coronavírus evidencia as desigualdades estruturais de nossa sociedade. O GLOBO, 30 mar. 2020, 10h. Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/o-coronavirus-evidencia-desigualdades-estruturais-de-nossa-sociedade.html. Acesso em: 21 jun. 2020.

[2] FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro Caído no Chão: o sistema penal e o projeto genocida do estado brasileiro. Dissertação de Mestrado do Curso do Direito – Universidade de Brasília, Brasília, 2006.

[3] MELLO, Kátia Sento Sé; FREIRE, Christiane Russomano. O sistema prisional brasileiro no contexto da pandemia de COVID-19. Disponível em: https://ufrj.br/noticia/2020/04/01/o-sistema-prisional-brasileiro-no-contexto-da-pandemia-de-covid-19. Acesso em: 23 jun. 2020.

[4] Plataforma eletrônica do CNJ disponível em: https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario/covid-19/. Acesso em: 23 jun. 2020.

[5] Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3246. Acesso em: 24 jun. 2020.

[6] O documento está disponível em: https://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2020/04/Ofi%CC%81cio-CNPCP-Flexibilizac%CC%A7a%CC%83o-Arquitetura-Penal-DP-e-Sociedade-Civil.pdf. Acesso em: 24 jun. 2020.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ronmacphotos/8704611597

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura