Zigmunt Bauman foi um grande pensador. Explicou com precisão os dilemas da vida em sociedade. Cunhou o termo liquidez para descrever que tudo é passageiro, inexistindo a solidez temporal de outrora. Demonstrou que existiu a “passagem da fase ‘sólida’ da modernidade para a ‘líquida’ – ou seja, para uma condição em que as organizações sociais (estruturas que limitam as escolhas individuais, instituições que asseguram a repetição de rotinas, padrões de comportamento aceitável) não podem mais manter sua forma por muito tempo (nem se espera que o façam), pois se decompõem e se dissolvem mais rápido que o tempo que leva para moldá-las, uma vez reorganizadas, para que se estabeleçam.”[1]
A modernidade líquida surgiu em razão do desamparo existente no mundo[2].
Observando-se a realidade virtual (principalmente as redes sociais), fica muito evidente que as palavras são jogadas ao ar, mas em seguida são retiradas ou excluídas do pensamento, não representando mais nada[3].
Para Bauman, portanto, tudo é passageiro. A vida é líquida, a modernidade é líquida, o amor é líquido, a filosofia é líquida.
É possível falar-se até em direito líquido, pois não há mais perenidade nos posicionamentos dos tribunais e da doutrina. Hoje a jurisprudência é uma, amanhã é outra.
E no âmbito da saúde, a teoria de Bauman também se aplica?
Sim, se analisada na perspectiva da sociedade de austeridade, que propõe um “processo de implementação de políticas e de medidas econômicas que conduzem a disciplina, ao rigor e a contenção econômica, social e cultural”[4]. Neste contexto, tudo é considerado líquido, pois a crise – existente ou criada – é apresentada em todos os cantos, com a finalidade promover (1) contenção de despesas estatais; (2) privatização; (3) aumento de tributos; (4) redução de salários[5].
A saúde líquida, portanto, é aquela decorrente da insegurança instaurada na sociedade e das omissões estatais que impedem a concretização dos direitos sociais. Há falta de médicos, ausência de medicamentos, inexistência de tratamentos adequados, especialmente no âmbito da saúde pública.
Nesta perspectiva, pode-se afirmar que a transitoriedade também é inerente ao direito à saúde. E não apenas no Brasil, basta ver a iminente ameaça ao Obamacare[6].
Assim, é indispensável a criação de barreiras para inibir a saúde líquida e permitir a melhoria dos atendimentos, dos medicamentos, da atenção básica, tudo em busca da concretização da saúde em sentido amplo, como já definido pela Organização Mundial da Saúde (“saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”[7]).
Vale dizer, o direito à saúde não pode ser transitório. Aqui, é preciso segurança e garantias para satisfação do principal interesse humano e cabe ao Estado e à sociedade a concretização desta proposta.
Notas e Referências:
[1] BAUMAN, Zigmunt. Tempos líquidos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 7. Título original: Liquid Times.
[2] Jornal Estado de São Paulo (10 de janeiro de 2017, pág. C6, Caderno 2).
[3] Umberto Eco alertou que "as redes sociais dão o direito de falar a uma legião de idiotas que antes só falavam em um bar depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a humanidade. Então, eram rapidamente silenciados, mas, agora, têm o mesmo direito de falar que um prêmio Nobel. É a invasão dos imbecis" (In Jornal La Stampa).
[4] FERREIRA, António Casimiro. A sociedade de austeridade: Poder, medo e direito do trabalho de exceção. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 95, 2011. disponível in: http://rccs.revues.org/4417
[5] FERREIRA, António Casimiro. A sociedade de austeridade: Poder, medo e direito do trabalho de exceção. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 95, 2011. disponível in: http://rccs.revues.org/4417
[6] Trump quer derrubar e trocar reforma da saúde de Obama imediatamente. In Jornal Folha de São Paulo. 10 jan 2017. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/01/1848693-trump-quer-derrubar-e-trocar-reforma-da-saude-de-obama-imediatamente.shtml
[7] Disponível em http://www.who.int/eportuguese/countries/bra/pt/. Acesso em 15 de janeiro de 2017.
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