Saúde, drogas e a judicialização

11/03/2024

A relação entre saúde, drogas e judicialização exige reflexão da sociedade, tendo em vista o impacto e as consequências para a vida das pessoas.

Neste sentido é interessante observar as conclusões apresentadas por Ana Lembke no livro Nação tarja preta[1]. O texto é extremamente relevante e atual. A autora elaborou uma apresentação exclusiva para o leitor brasileiro, destacando-se as seguintes passagens que merecem apontamentos:

Sobre cannabis e seus derivados:

“um movimento da medicina em favor da cannabis e dos psicodélicos ganhou grande impulso nos Estados Unidos. Vemos regularmente adolescentes que fumam ou inalam vapor de extrato de cannabis de alta potência todos os dias para tratar ansiedade, insônia, depressão e dor, e usam psicodélicos como o LSD e a psilocibina para buscar um ‘despertar espiritual’. Não há evidência confiável de que cannabis ou psicodélicos atuem para tratar transtornos de saúde mental como depressão ou ansiedade, em especial a longo prazo, mas isso não tem impedido que fontes noticiosas da grande mídia as exaltem como drogas maravilhosas para resolver as crises de saúde mental de nossos jovens.”[2]

Sobre o cenário brasileiro:

“O Brasil está num momento preocupante em relação à prescrição de opióides e psicotrópicos. O país mostra os primeiros sinais de excesso, mas que não chegam a ponto de torná-lo irreversível. O Brasil, historicamente, tem acesso limitado a opioides prescritos mesmo para aqueles que sofrem com dor severa e dores terminais. Evidências recentes sugeram que a tendência pode ser revertida, em especial no caso de certos opioides. A venda de  opioides prescritos aumentou 465% no Brasil entre 2009 e 2015, assim como os investimentos no marketing de medicamentos relacionados a  opioides prescritos. […] É difícial a esta altura dizer se esse aumento está atendendo à necessidade médica de controle da dor ou se a representa um suprimento excessivo. Mas aumentos acentuados na prescrição, observados em períodos curtos de tempo e coincidentes com um marketing mais intensivo, ainda mais de opioides de alta potência, sugerem a necessidade de ter cautela.”[3]

Sobre o cenário brasileiro - 2:

“A benzodiazepina sedativa usada para controlar ansiedade e insonia, é uma das drogas psicotrópicas mais prescritas no Brasil, e os maiores índices de prescrição são para mulheres, doentes mentais e pobres. A prescrição do clonazepam aumentou no Brasil durante a pandemia da Covid-19, acelerando uma tendência pré-pandêmica. Sabemos que, quanto mais tempo os pacientes ficam nas benzodiazepinas, maior a probabilidade de sofrerem consequências adversas, como quedas, declínio cognitivo e adicção.”[4]

Sobre a medicalização da vida:

“A questão é os Estados Unidos, o Brasil e vários países do mundo estão cada vez mais confiando em um comprimido para lidar com o sofrimento humano, sem avaliar os custos a longo prazo ou cogitar que os comprimidos que aliviam a dor a curto prazo têm a possibilidade de torná-la pior com o tempo.”[5]

[...]

“A maioria dos meus pacientes que fazia uso incorreto de drogas prescritas não obtinha essas drogas através de traficante, mas sim de um médico.”[6]

[…]

“Este livro é a tentativa de compreender como médicos bem-intencionados em toda a América do Norte – a maioria dos quais se tornou médico para salvar vidas e aliviar sofrimentos – acabaram prescrevendo comprimidos que estão matando seus pacientes, e como seus pacientes, procurando tratamento para doenças e lesões, acabaram dependentes dos próprios comprimidos prescritos para salvá-los. Mais importante ainda, por que continuamos prescrevendo e consumindo essas drogas perigosas, mesmo sabendo disso.”[7]

[…]

“A epidemia de drogas prescritas é, antes de mais nada, uma epidemia de excesso de prescrições. Poções e elixires sempre fizeram parte da prática da medicina, mas a extensão em que os médicos se apoiam hoje em drogas prescritas, em especial as drogas controladas, para tratar seus pacientes mesmo em condições de rotina, que não trazem ameaça à vida, é sem precedentes.”[8]

Sobre as recomendações:

“O Brasil pode aprender com os erros que os Estados Unidos cometeram se conseguir regular e rastrear a produção, o transporte e a venda em farmácia de opioides prescritos e de outros produtos farmacêuticos aditivos e mortíferos, além de educar os prescritores e pacientes a respeito dos riscos, dos benefícios e das alternativas, incluindo os riscos de adicção e morte. O Brasil pode tomar medidas para limitar a parceria entre o setor farmacêutico e a tomada de decisões médicas. Sabemos  que, quanto maior a influência e o contato que a indústria farmacêutica tem com os médicos, mesmo em encontros breves, maior a probabilidade de os médicos prescreverem essas drogas. O Brasil pode também trabalhar para tornar as intervenções não farmacológicas mais acessíveis e de custo mais baixo para todos os brasileiros, em especial no que se refere à dor cronica e a transtornos de saúde mental, que podem reagir melhor a estratégias não farmacológicas no longo curso. Esses são aspectos da medicina nos quais os Estados Unidos continuam trabalhando. O progresso é lento, mas está acontecendo.”[9]

O livro ainda aborda outros temas interessantes, tais como a “toyotização da medicina”[10] e o “ciclo de prescrição compulsiva”[11].

Como se observa, é importante atentar para o atual cenário dos EUA e evitar que o Brasil seja atingido pela ‘febre dos opioides’.

Além disso, a completa compreensão do direito da saúde também passa pela reflexão crítica sobre o excesso de medicalização, a mercantilização da medicina e a judicialização

 

Notas e referências

[1]LEMBKE, Anna. Nação tarja preta: o que há por trás da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica. Título original: Drug Dealer. Tradução de Luis Reyes Gil. São Paulo: Vestígio, 2023.

[2]LEMBKE, Anna. Nação tarja preta: o que há por trás da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica. Título original: Drug Dealer. Tradução de Luis Reyes Gil. São Paulo: Vestígio, 2023, p. 12.

[3]LEMBKE, Anna. Nação tarja preta: o que há por trás da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica. Título original: Drug Dealer. Tradução de Luis Reyes Gil. São Paulo: Vestígio, 2023, p. 12.

[4]LEMBKE, Anna. Nação tarja preta: o que há por trás da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica. Título original: Drug Dealer. Tradução de Luis Reyes Gil. São Paulo: Vestígio, 2023, p. 13.

[5]LEMBKE, Anna. Nação tarja preta: o que há por trás da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica. Título original: Drug Dealer. Tradução de Luis Reyes Gil. São Paulo: Vestígio, 2023, p. 13.

[6]LEMBKE, Anna. Nação tarja preta: o que há por trás da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica. Título original: Drug Dealer. Tradução de Luis Reyes Gil. São Paulo: Vestígio, 2023, p. 19.

[7]LEMBKE, Anna. Nação tarja preta: o que há por trás da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica. Título original: Drug Dealer. Tradução de Luis Reyes Gil. São Paulo: Vestígio, 2023, p. 23/24.

[8]LEMBKE, Anna. Nação tarja preta: o que há por trás da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica. Título original: Drug Dealer. Tradução de Luis Reyes Gil. São Paulo: Vestígio, 2023, p. 42.

[9]LEMBKE, Anna. Nação tarja preta: o que há por trás da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica. Título original: Drug Dealer. Tradução de Luis Reyes Gil. São Paulo: Vestígio, 2023, p. 17/18.

[10]LEMBKE, Anna. Nação tarja preta: o que há por trás da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica. Título original: Drug Dealer. Tradução de Luis Reyes Gil. São Paulo: Vestígio, 2023, p. 134.

[11]LEMBKE, Anna. Nação tarja preta: o que há por trás da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica. Título original: Drug Dealer. Tradução de Luis Reyes Gil. São Paulo: Vestígio, 2023, p. 177.

 

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