Coluna Direito Civil em Pauta / Coordenadores Daniel Andrade, David Hosni, Henry Colombi e Lucas Oliveira
A pandemia mundial do covid-19, dentre os inúmeros impactos nas relações sociais e suas repercussões, ocasionou, sem dúvidas, reflexos importantes nas relações jurídicas contratuais, notadamente impactando no sinalagma funcional dos contratos e no adimplemento das obrigações.
Outrossim, a pandemia realçou – o que há muito vem sendo apontado por estudiosos – que os contratos estão encadeados em rede, o que impacta gravemente o mercado e a sociedade. Emprego, aqui a expressão “em rede”, não estritamente no sentido técnico de rede contratual/contratos coligados, mas na percepção que o contrato, na sua essência de veste jurídica de operações econômicas, insere-se no mercado (ambiente onde se desenvolvem as operações econômicas) e que as opções e decisões, a priori, estritamente jurídicas sobre o contrato, impactam no mercado e, por conseguinte, na sociedade. Há muito já se transcendeu ao viés estritamente individualista na teoria dos contratos, numa perspectiva clássica de que o contrato interessava apenas aos envolvidos na relação contratual, digo, contratantes. Não se nega, pelo contrário, o princípio da relatividade, mas é cediço que esse princípio é atualmente compreendido reconhecendo-se que o contrato afeta em certa medida a terceiros.
Os princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato são igualmente de salutar relevância, exigindo, também, a devida compreensão para que não sejam invocados em desnaturação da essência do contrato como norma específica da relação jurídico-contratual entre as partes, fruto da autonomia privada destas, cuja finalidade é mesmo regular juridicamente a operação econômica.
A crise gerada pela pandemia, também, conduz-nos a reflexões sobre o modelo social, o modelo jurídico e, especificamente para o que interessa para o presente texto, sobre o modelo contratual que sejam adequados à maior realização de seus propósitos. Novamente, a discussão sobre liberdade e igualdade se impõe, na busca do equilíbrio entre a autonomia privada e o intervencionismo estatal.
O intervencionismo estatal pode se manifestar em perspectiva geral e abstrata, por meio da lei, que confere maior previsibilidade para a solução adotada e, nessa ótima, converge para a segurança jurídica, todavia, muito embora a generalização inerente a esta solução, em nome da igualdade, peca por impor uma padronização, em detrimento das especificidades do caso concreto.
O intervencionismo estatal revela-se, ainda, no caso concreto, por meio da atuação do Poder Judiciário, em ações individuais e em ações coletivas, seja aplicando regras legais, seja aplicando princípios e conceitos abertos. A atuação vertida a uma situação específica confere maior possibilidade de adequação às suas particularidades, no entanto, pode gerar prejuízo à previsibilidade da solução e, por conseguinte, à segurança jurídica.
O comparativo entre as soluções para as crises nas relações jurídicas contratuais advindas do intervencionismo estatal ou da autonomia privada indica, também, que naquela ocorre uma distribuição heterônoma dos riscos (feita pelo legislador e/ou pelo juiz) ao passo que por intermédio da autonomia privada a alocação de riscos é empreendida pelas partes da relação jurídica. Neste quadro, em tese, a solução fruto da autonomia privada, com alocação de riscos segundo a vontade das partes, tende a ser mais adequada, porque alinhada à essência do contrato como, dentre outros, norma fruto da autonomia privada, desde que, é claro, não haja vício de consentimento ou assimetria entre as partes.
As soluções decorrentes da intervenção estatal, ao seu turno, visam superar eventual assimetria entre as partes, correspondente a uma posição de vantagem (economia, técnica etc.) de uma parte em relação à outra, assimetria essa que, por vezes, prejudica a solução por meio da autonomia privada. Assim é que, nessa perspectiva, a solução por meio do intervencionismo estatal, por, em tese, contornar ou, pelo menos, mitigar a assimetria das partes, é mais adequada que aquela advinda a autonomia privada.
O tema da revisão dos contratos também deve ser analisado sob os prismas do modelo fruto da intervenção estatal e do modelo oriundo da autonomia privada. É que a revisão dos contratos consiste na alteração de previsões contratuais – geradoras de direitos e obrigações – posteriores à celebração do negócio entre as partes, precisamente, ao tempo de sua execução, quando se alude a contratos de execução futura, continuada ou diferida. A revisão dos contratos funda-se no princípio do equilíbrio contratual, eis que objetiva exatamente restabelecê-lo quando da ocorrência de desequilíbrio superveniente à celebração do contrato. Assim é que a revisão dos contratos é uma das possibilidades quando se verifica a quebra do sinalagma funcional do contrato, atuando em convergência com o princípio da conservação do negócio jurídico. É claro que há situações em que a manutenção da avença não é possível ou desejável, sendo sua extinção o caminho que se impõe.
Diz-se que a revisão dos contratos deve ser analisada pela perspectiva da intervenção estatal e da autonomia privada porque a alteração das previsões contratuais – com o desígnio revisional, de reestabelecimento do sinalagma funcional do contrato – pode ocorrer por meio dessas duas perspectivas. Isto é, é possível e até desejável que a revisão do contrato seja fruto da autonomia privada, pelo que as partes renegociam a relação jurídica contratual, alterando suas previsões de modo a reequilibrar o contrato e propiciar sua manutenção. As previsões contratuais e até legislativas que determinam a submissão das partes à renegociação constituem estímulos à busca de soluções pela autonomia privada, indicando que se privilegia essa via, conferindo às partes a alocação dos riscos da relação contratual.
Lado outro, caso não haja consenso entre as partes para a renegociação, é possível excepcionalmente que ela decorra da revisão judicial dos contratos, que é um signo do intervencionismo, dado que a revisão é tratada na perspectiva impositiva, fruto de atuação heterônoma na relação contratual, e não fruto da autonomia privada.
Merece registro a alteração legislativa ocorrida em 2019, por meio da Lei nº 13.874 (Lei de Liberdade Econômica), incluindo no Código Civil o parágrafo único no artigo 421, segundo o qual “nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.” Ainda, a referida lei acrescentou ao Código Civil o art. 421-A, que prevê, dentre outros, que “a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada” e que “a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.”
As alterações legislativas convergem para o reforço da excepcionalidade da intervenção estatal e pela importância de se privilegiar a autonomia privada das partes. Acredita-se que, quanto dispositivos referidos, a Lei de Liberdade Econômica não representa completa inovação na ordem jurídica, mas, antes, constitui reforço legislativo importante à linha doutrinária e jurisprudencial que há muito sublinha tal excepcionalidade.
É sabido que existem, na doutrina nacional e estrangeira, várias teorias a respeito da revisão judicial dos contratos, tratando, assim, de requisitos necessários para que a tal intervenção estatal na relação contratual seja cabível. Alinha-se ao entendimento de que nossa ordem jurídica adota a Teoria da Imprevisão e a Teoria da Onerosidade Excessiva, no art. 478 do Código Civil, a Teoria da Base Objetiva do Contrato, no art. 317 do Código Civil, bem como novamente a Teoria da Onerosidade Excessiva no art. 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor.
Sem embargo das especificidades de cada teoria – que, por elas, se individualizam e distinguem – é cediço que o tema da revisão dos contratos relaciona-se à alocação de riscos da relação contratual, referindo-se à alteração da alocação originalmente feita pelas partes.
No contexto de revisão judicial dos contratos, importa analisar a respeito da técnica processual consentânea à essa realocação dos riscos, de modo a propiciar o reequilíbrio da relação contratual na medida necessária para sua manutenção pelo prazo (determinado ou indeterminado) avençado entre as partes.
Tem especial relevo nesta temática as chamadas tutelas provisórias, que são provimentos jurisdicionais pautados em cognição sumária e, por isso, essencialmente mais céleres.
Sabe-se que a prestação jurisdicional pautada em cognição exauriente exige o tempo de tramitação de todas as fases do processo de conhecimento até a prolação da sentença (fase postulatória, saneamento, fase instrutória). Ocorre que, por vezes, a relação jurídica contratual não suporta aguardar em grave desequilíbrio o tempo necessário à prestação jurisdicional definitiva (diga-se, fundada em cognição exauriente), seja porque neste tempo poder-se-á consumar inadimplemento absoluto do contrato, que enseja sua resolução, seja porque neste tempo, por exemplo, pode-se ultimar o termo final do contrato (para aqueles negócios de prazo determinado).
Nesse quadro de referência, é comum o Judiciário ser chamado a intervir numa relação contratual, ordenando alteração de suas bases, em sede de tutela provisória, pautando-se, pois, em cognição sumária.
Importa registrar que a tutela provisória é instrumento de direito processual que também trata de alocação, precisamente, da distribuição do ônus do tempo no processo. É uma tutela fundada em cognição sumária, que longe de significar análise mal realizada ou arbitrariedade do julgador, é aquela atividade cognitiva completa e devidamente fundamentada que o julgador deve empreender de todos os elementos do processo que tem à sua disposição ao tempo da prolação da decisão, ou seja, das alegações das partes e/ou provas que constam no feito ao tempo da prolação da decisão sobre a tutela provisória. Comportando o processo outros elementos, diga-se, a oportunidade de outras manifestações em exercício do contraditório e a oportunidade de produção de outras provas, diz-se que a cognição então exercida é ainda sumária, gerando a respeito da questão analisada um juízo de probabilidade (positivo ou negativo quanto à pretensão deduzida pela parte). A tutela provisória tutela, assim, o direito que se tem por provável naquele caso concreto.
Tanto na situação em que se combate uma situação e perigo/urgência, seja naquela em que se combate apenas o chamado dano marginal do processo, é certo que a tutela provisória atua distribuindo o ônus do tempo, isto é, impondo à parte cujo direito não é tido por provável o ônus de aguardar o tempo necessário à prestação jurisdicional definitiva.
Em sede de revisão judicial de contratos, determinada em tutela provisória, o que se faz exatamente é tutelar aquele que tem o direito de revisão que alega reconhecido como provável, impondo à parte cujo direito de resistência foi reconhecido como não provável que suporte o ônus do tempo do processo. Em outras palavras, determinando que as partes da relação contratual suportem as novas bases dessa relação, fixadas na decisão da tutela provisória, pelo menos até novo juízo a respeito da controvérsia (em cognição sumária, se houver fatos novos, ou, em último caso, em cognição exauriente).
Cumpre registrar, também, que a doutrina e a jurisprudência processual são há muito assentes a respeito da possibilidade de antecipação de efeitos práticos mesmo de provimentos declaratórios e constitutivos, não restringindo a antecipação de tutela (espécie satisfativa de tutela provisória) aos provimentos condenatórios.
Especificamente quanto à revisão judicial dos contratos por força da pandemia, é possível que os impactos desta na relação contratual configurem perigo de dano/urgência por um provimento provisório, conservativo ou antecipatório (satisfativo) da revisão contratual, dada a impossibilidade de a parte aguardar a decisão definitiva, amparada em cognição exauriente. É indispensável que cada situação concreta seja analisada detidamente, à luz de suas especificidades, sendo descabido afirmar que a invocação da pandemia em qualquer relação contratual seja suficiente para caracterização do perigo de dano necessário à concessão de uma tutela provisória de urgência.
Destaque-se que a urgência é requisito fático, a ser comprovado por provas ou por situações que as dispensam (fatos notórios, incontroversos), com vistas à relação jurídico-material. Ademais, é assaz importante analisar a relação jurídico-material em sua integralidade (em atenção à outra parte e à rede na qual aquela relação se insere), pois é possível que revisão contratual gere perigo de dano inverso à outra parte.
Novamente, o que se observa de inúmeras relações contratuais no contexto da pandemia é que o desequilíbrio decorrente desta tem afetado todas as partes da relação contratual. A questão que coloca à solução é, então: No conflito entre perigo de dano para a parte requerente e perigo de dano inverso para a parte requerida, o que prevalece? O Código de Processo Civil veicula solução “apenas” procedimental: em todas elas, caberá juízo de ponderação do juiz, guiado pelo que entender, no caso concreto, adequado para a alocação dos riscos do contrato e a distribuição do ônus do tempo do processo. Com efeito, novamente está-se diante da tensão entre autonomia privada/liberdade e intervenção estatal. Diz-se “apenas”, entre aspas, porque, em verdade, o CPC ao possibilitar a tutela provisória geral (não apenas em procedimentos especiais), já amplia a intervenção para além da tradicional decisão judicial transitada em julgado.
Entende-se, também, cabível a tutela provisória de evidência, que, em sua essência, dispensa o requisito do perigo/urgência. A questão que se coloca é: é adequada a tutela provisória (notadamente a satisfativa) em revisão dos contratos, sem urgência? Voltamos à tensão entre autonomia e intervencionismo, entre a alocação de riscos do contrato e a distribuição o ônus do tempo no processo. Anote-se que a tutela de evidência prevista no art. 311 aplica-se à generalidade dos procedimentos e, acredita-se, não há especificidades do direito material, isto é, da relação jurídica contratual que a impeça. É necessário, então, analisar na relação jurídica contratual concreta a presença dos requisitos estabelecidos pelo art. 311 do CPC para concessão da tutela de evidência.
A observância do contraditório em sede de tutelas provisórias é tema de especial relevo, até porque muitos críticos dessa técnica processual aduzem que ela representa prejuízo a contraditório. Diverge-se desse entendimento, porquanto se acredita que as tutelas provisórias não constituem essencialmente ofensa ao contraditório, mesmo ao contraditório prévio. Nas situações concretas em que tal ofensa ocorrer, ela deve ser firmemente reprimida, como em situações em que a tutela fundada em cognição exauriente ofender ao contraditório.
A despeito das previsões do art. 10 do CPC que dispensam a observância ao contraditório prévio para algumas espécies de tutela provisória, relegando o contraditório ao modelo diferido, acredita-se que o adequado ao devido processo legal é dispensar o contraditório prévio apenas nas situações concretas em que a urgência apontada é tamanha que não comportar o estabelecimento desse contraditório prévio. A prática forense revela que há muitas situações em que se reclama tutela de urgência nas quais o perigo apontado comporta o estabelecimento do contraditório prévio, ainda que por prazo reduzido e focado estritamente na discussão da tutela provisória (valendo destacar que é possível o magistrado ajustar o procedimento ao necessário à efetividade da prestação jurisdicional, como prevê o art. 139 do CPC). Já quanto às tutelas de evidência, dado que não há situação de perigo de dano, acredita-se imprescindível a observância do contraditório prévio.
Existem vários outros aspectos da técnica das Tutelas Provisórias que podem ser abordados e detalhados quanto às controvérsias relativas à revisão judicial dos contratos (como, exemplificativamente, a fixação de caução, a responsabilidade civil do beneficiário da tutela posteriormente revogada, a reversibilidade ou irreversibilidade da tutela, a estabilização da tutela antecipada) que os limites deste texto não comportam.
De todo modo, é possível a título de conclusão assinalar a relevância das tutelas provisórias como instrumento para revisão judicial dos contratos, mormente no contexto da pandemia do covid-19, reforçando o mister dessas tutelas como instrumento para alocação/redistribuição do ônus do tempo do processo e corroborando, outrossim, o objetivo da revisão dos contratos de alteração da alocação de riscos originalmente estabelecida pelas partes em dada relação contratual.
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