REVELIA NA AÇÃO RESCISÓRIA E A PRIMAZIA DA RESOLUÇÃO DE MÉRITO

17/04/2022

Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta

Um dos momentos mais importantes do andamento procedimental refere-se à analise quanto aos efeitos da atitude passiva do réu em não atender ao chamado judicial.

De fato, considerando a necessidade da resolução do objeto litigioso do processo, após o encerramento do prazo para a conduta ativa do demandado, poderão ser adotadas múltiplas atividades pelo juiz, dependendo da existência, ou não, de contestação.

O conceito de revelia é simples: é a falta de apresentação de contestação, advinda de conduta passiva do réu em não atender, ou atender intempestivamente, ao chamado judicial (art. 344, do CPC).

Contudo, mais importante do que a revelia em si, é a análise dos seus efeitos, levando em conta as consequências para as demais etapas procedimentais.

A citação não impõe uma conduta positiva do réu, mas, em caso de não atendimento ao chamado judicial, algumas consequências processuais e materiais lhes são impostas. Como bem ressalta Araken de Assis:

“Nenhum texto legal obriga o réu a responder. O réu tem o ônus, jamais o dever de comparecer em juízo, e independentemente do caráter involuntário da abstenção, subsistirão invariáveis e constantes as consequências atribuídas à omissão. O revel adota atitude contrária ao próprio interesse, mas não é rebelde ou insubmisso à autoridade judiciária”[1]

A rigor, contumácia é gênero, sendo a revelia, uma de suas espécies. Como apontam Yarshell, J. Pereira e Rodrigues, quando estudam a revelia:

“Trata-se de instituto próprio do processo de conhecimento, que não se aplica ao processo de execução, no qual o executado, por meio da citação, não é chamado a responder, mas a pagar, depositar, cumprir, etc. O conceito largo de inércia, aplicável genericamente a todas as situações processuais em que o sujeito se queda inerte, é o de contumácia. Apesar de ser comum a confusão entre contumácia e revelia, são fenômenos diferentes. A contumácia é a inércia de qualquer sujeito processual, quanto a uma determinação judicial. Revelia, por sua vez, é a ausência de resposta tempestiva e regular, ou seja, a inação do réu em responder o pedido formulado pelo autor na demanda. Contumácia, portanto, é gênero do qual a revelia é espécie”[2].

De toda sorte, constatada a falta de contestação (ou a sua intempestiva apresentação), dois efeitos estarão presentes e devem ser sopesados nas múltiplas situações práticas: a) efeito material (art. 344, do CPC) – presunção (relativa) de veracidade dos fatos alegados pelo autor, com a possibilidade de resolução antecipada do mérito (art. 355, II, do CPC); b) efeito processual – prazos com fluência a partir da publicação da decisão (art. 346, do CPC).

Assim, em razão da incontrovérsia fática decorrente do efeito material, é desnecessária a fase probatória, sendo possível a resolução do mérito de forma antecipada (art. 355, II e 374, III, do CPC).

Contudo, mesmo neste caso, a antecipação da decisão meritória pode não ocorrer. Mesmo sendo revel, o réu pode se contrapor aos fatos alegados pelo autor e produzir prova, desde que compareça a tempo de evitar o julgamento antecipado (art. 349, do CPC).

A intenção maior da legislação processual de 2015, mesmo nos casos em que se admite julgamento por presunção, é tentar buscar a resolução do mérito[3] – a resolução do próprio objeto litigioso. O réu revel pode tentar evitar maiores prejuízos processuais, com o comparecimento e contraprodução probatória, desde que se apresente rapidamente e antes do pronunciamento meritório por presunção.

Esse já era o caminho traçado pela jurisprudência consagrada no tempo de vigência do CPC/73 (STJ- REsp 677.720- 3ª T – Rel. Min. Nancy Andrighi , J. 10.11.2005) e previsto expressamente na Súmula 231/STF, pela qual “o revel, em processo cível, pode produzir provas, desde que compareça em tempo oportuno”.

A presunção de veracidade decorrente do efeito material da revelia, sempre que possível, deve ser afastada, permitindo o julgamento com as provas existentes nos autos, o que inclusive pode ser contrário à tese afirmada pelo demandante. Como bem entendeu a Corte da Cidadania, em julgados proferidos no ano de 2019:

“AGRAVO  INTERNO  NO  RECURSO  ESPECIAL.  DIREITO  CIVIL E PROCESSUAL CIVIL.  AÇÃO DE ARBITRAMENTO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. ALEGAÇÃO DE NEGATIVA  DE  PRESTAÇÃO  JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. REVELIA. NÃO IMPORTA  PRESUNÇÃO  ABSOLUTA  DE  VERACIDADE  DOS  FATOS. REVISÃO DO JULGADO.   IMPOSSIBILIDADE.   INCIDÊNCIA  DO  ENUNCIADO  N.º  7/STJ. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. NÃO VERIFICADO.1. Inexistência de maltrato ao art. 1.022, incisos I e II, do Código de  Processo  Civil,  quando o acórdão recorrido, ainda que de forma sucinta, aprecia com clareza as questões essenciais ao julgamento da lide. 2.  A  jurisprudência  do  Superior Tribunal de Justiça é assente no sentido  de que a caracterização da revelia não importa em presunção absoluta  de  veracidade  dos  fatos,  a qual pode ser afastada pelo julgador à luz das provas existentes (...)”.AgInt no REsp 1816726 / RS – Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino – 3ª T – J. em 30/09/2019 – DJe 03/10/2019)”.

“AGRAVO  INTERNO  NO  RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA CUMULADA COM INDENIZATÓRIA.  1.  EFEITOS  DA  REVELIA. RELATIVIDADE. CONVICÇÃO DO JUIZ.  INVIÁVEL  MODIFICAR  AS CONCLUSÕES DAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. 2. CONDENAÇÃO AO PAGAMENTO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. CABIMENTO. PRECEDENTE. 3. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1.  A  presunção  de  veracidade decorrente dos efeitos da revelia é relativa,  tornando-se  absoluta  somente  quando  não  contrariar a convicção  do  Magistrado.  Na  hipótese  dos  autos,  as instâncias ordinárias  levaram  em  consideração  todo  o acervo probatório dos autos, sendo inviável modificar suas conclusões, sob pena de incidir a  Súmula  7/STJ.  2.  Conforme  precedente  desta  Corte  Superior, "havendo  revelia  e  sagrando-se  vencedor  o  réu,  é  descabida a condenação em honorários (precedentes). Regra que não se aplica se a parte,   apesar   de   não   ter   apresentado   contestação,  atuou posteriormente  nos  autos" (REsp n. 779.515/MG, Relatora a Ministra Eliana  Calmon, Segunda Turma, julgado em 27/6/2006, DJ 3/8/2006, p. 260). 3. Agravo interno desprovido” (AgInt no REsp 1779513 / RJ – Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze – 3ª T – J. em 17/06/2019 – DJe  25/06/2019)”[4].

Assim, mesmo em caso de revelia com a presunção de veracidade dos fatos (efeito material), ainda assim é possível a apreciação livre pelo magistrado[5], bem como ao réu é garantida a contraprodução probatória, afastando os elementos constitutivos do direito do autor, ou mesmo apresentando as matérias de defesa que podem ser deduzidas a qualquer momento (art. 342, do CPC), desde que a manifestação seja a tempo de evitar o julgamento meritório antecipado pautado nas presunções decorrente da atividade omissiva.

Resta demonstrado, com isso, que a primazia da resolução de mérito enseja uma revisão/ revisitação dos efeitos materiais da revelia, mesmo nos casos de demanda de natureza patrimonial em que, pelo menos em tese, é admitido o julgamento antecipado em decorrência da presunção fática e da incontrovérsia dos elementos constitutivos do direito do autor.

A presunção de veracidade das circunstâncias fáticas elencadas pelo autor não é efeito material automático da revelia, devendo ser analisado cada caso concreto. O próprio art. 343, do CPC elenca outras situações em que não há essa presunção, a saber: “I - havendo pluralidade de réus, algum deles contestar a ação; II - o litígio versar sobre direitos indisponíveis; III - a petição inicial não estiver acompanhada de instrumento que a lei considere indispensável à prova do ato; IV - as alegações de fato formuladas pelo autor forem inverossímeis ou estiverem em contradição com prova constante dos autos”.

A legislação processual, preocupada com a primazia da resolução de mérito e na busca, de maneira mais aproximada possível, da melhor solução do objeto litigioso, vem se afastando cada vez mais do julgamento por presunções. Esse afastamento ocorre nas causas em geral, com a possibilidade de contraprodução probatória pelo revel, além das situações previstas no art. 343, e também na ação rescisória, como se passa a demonstrar.

Destarte, nesta demanda desconstitutiva, os efeitos decorrentes da revelia são mitigados ou simplesmente afastados, em razão das presunções em favor do próprio título executivo judicial e da estabilização decorrente da coisa julgada material. Como é sabido, a rescisória é cabível, nos termos do art. 966, do CPC, contra decisão de mérito[6] que se enquadre nas situações tradadas em seus incisos.

As perguntas a serem respondidas são: em caso de revelia na ação rescisória, a eventual presunção material poderá afastar as presunções advindas do título executivo e desconstituir a preservação da coisa julgada? Os fatos alegados na ação podem ser dotados de presunções, em contraponto às presunções contidas na declaração judicial transitada em julgado?

Um exemplo deve ser apresentado: demanda fundada no art. 966, III, do CPC, contendo a afirmação fática de que ocorreu coação da parte vencedora. A falta de contestação enseja a presunção de veracidade dos fatos suscitados na peça de ingresso?

A resposta é negativa. As presunções advindas do título executivo, da estabilização decorrente da coisa julgada, e da própria eficácia preclusiva (art. 508, do CPC), prevalecem em relação aos eventuais efeitos materiais decorrentes da revelia. A preservação da garantia constitucional e do direito indisponível[7] decorrente da coisa julgada, apenas poderá ser superada em caso de apreciação e acolhimento do pedido meritório desta demanda.

O Superior Tribunal de Justiça entendeu, ainda com fundamento no art. 319, do CPC/73 que:  “Os efeitos da revelia, previstos no artigo 319 do CPC, não incidem no âmbito da ação rescisória, por força do princípio da preservação da coisa julgada” (AgRg na AR 3867 / PE – Rel. Min. Marco Buzzi – 2ª Seção – J. em 12/11/2014 – DJe  19/11/2014).  

Também no REsp 1260772 / MG (Rel. Min. João Otávio de Noronha. 3ª Turma – J. em 05/03/2015 – DJe 16/03/2015) restou claro que:

“3. A revelia, na ação rescisória, não produz os efeitos da  confissão (art. 319 do CPC) já que o judicium rescindens é indisponível, não se podendo presumir verdadeiras as alegações que conduziriam à rescisão. Deve o feito ser normalmente instruído para se chegar a uma resolução judicial do que proposto na rescisória”.

Já Ação Rescisória 3341/SP (Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima – Rev. Min. Maria Thereza de Assis Moura – 3ª Seção – J. em 14/12/2009 – DJe 01/02/2010), consagrou a 3ª Seção da Corte:

“PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO RESCISÓRIA. APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. RURÍCOLA. VIOLAÇÃO DO ART. 485, INCISOS V E VI, DO CPC. REVELIA. ART. 319 DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA. PEDIDO IMPROCEDENTE. 1. Em observância ao princípio da preservação da coisa julgada não incidem sobre a rescisória os efeitos da revelia previstos no art. 319 do CPC. 2. Não prospera a alegação de que os advogados que atuaram no processo originário não tinham poderes para representar a ré, seja porque do exame dos autos não se pode concluir, efetivamente, pela ausência de poderes do causídico que subscrevia as peças, seja porque  seria incabível a extinção do feito sem que se desse a oportunidade, à parte autora, à época, da regularização de sua representação processual. 3. Não tendo a questão sobre a qualidade de segurada sido objeto de análise do acórdão rescindendo, a matéria não pode ser discutida em ação rescisória, uma vez que o STJ limitou-se a decidir acerca do termo inicial do benefício de aposentadoria por invalidez. 4. O relatório apresentado pelos auditores fiscais da Previdência, per se, não traz a carga probante necessária a ilidir o conjunto probatório confirmado nas instâncias ordinárias, sobre o qual o manto da coisa julgada já operou o seu efeito. 5. Ação julgada improcedente” (AR 3341 / SP – Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima – Revisora Min. Maria Thereza de Assis Moura – 3ª Seção – J. em 14/12/2009 – DJe 01/02/2010)

Logo, trata-se de situação jurídica diferenciada, que afasta a literalidade do disposto no art. 344, do CPC, devendo ser preservada a autoridade da coisa julgada e das presunções em favor do título executivo judicial, mesmo em caso de revelia em ação rescisória.

A conduta contumacial do réu, portanto, não permite o afastamento das presunções e da garantia constitucional da coisa julgada, devendo o feito tramitar regularmente, inclusive com a produção probatória se acaso necessária, até seu julgamento pelo Tribunal Competente.

 

Notas e Referências

[1] ASSIS, Araken de. Processo civil brasileiro. Volume III – parte especial: procedimento comum (da demanda à coisa julgada). São Paulo : Revista dos Tribunais, 2015, p. 281.

[2] YARSHELL, Fávio Luiz; PEREIRA , Guilherme Setoguti J; RODRIGUES, Viviane Siqueira.  Comentários ao Código de Processo Civi. Vol V (ars.334 a 368). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 200.

[3] No tema, ver CÂMARA, Alexandre Freitas. O princípio da primazia da resolução de mérito e o novo Código de Processo Civil. Revista Síntese – Direito Civil e Processual Civil, nº 97 (set-out 2015), pp. 9-16; LINS, Arthur Orlando. A primazia do julgamento de mérito no Processo Civil Brasileiro. Salvador: Juspodivm, 2019.

[4] Ainda no tema (inexistência de automática procedência em caso de revelia), vale a leitura do acórdão da Corte Superior, proferido no AgRg no REsp 1342255/SP – 3ª T – Rel. Min. João Otávio de Noronha. J. em 23.02.2016- DJe 11.03.2016). Este entendimento relaciona-se com a hipótese prevista no art. 345, IV, do CPC.

[5] “5. O STJ tem entendimento consolidado de que os efeitos da revelia são relativos  e  não  conduzem,  necessariamente, ao julgamento de procedência dos pedidos, devendo o juiz atentar-se para os elementos probatórios presentes nos autos, para formação de sua convicção” (REsp 1693660 / RN – Rel. Min. Herman Benjamin – 2ª T – J. em 07/12/2017- DJe 19/12/2017).

[6] E outras decisões que não são de mérito, mas impedem nova propositura da demanda ou a admissibilidade do recurso (art. 966, §2º, do CPC).

[7] Assim entendeu o STJ na AR 4309 / SP (3ª Seção – Rel. Min. Gilson Dipp – Rev. Min. Laurita Vaz – J. em 11/04/2012 - DJe 08/08/2012): “inaplicável os efeitos da revelia, previstos no art. 319 do Código de Processo Civil, uma vez que esses não alcançam a demanda rescisória, pois a coisa julgada envolve direito indisponível, o que impede a presunção de veracidade dos fatos alegados pela parte autora”.

 

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