Inicialmente, cumpre informar que o título do presente texto é alusão a Bauman, mais especificamente a obra lançada após seu óbito, isto é, “Retropia”. Nesta, o eterno sociólogo inicia com o capítulo “De volta a Hobbes?”, com indagações, reflexões e conclusões semelhantes a deste artigo. Visando esclarecer e guiar na finalidade do presente escrito, transcreve-se a seguinte passagem:
Cada dia mais o Leviatã de Hobbes – que até há pouco se acreditava ter cumprido sua missão postulada de subjugar a crueldade inata dos homens, tornado assim a vida humana entre humanos suportável, e não “sórdida, bestial e curta”, como teria sido – é objeto de desconfiança por não ter feito seu trabalho direito, ou simplismente por não ter sido capaz de realizá-lo de modo adequado. A agressividade humana endêmica, que repetidas vezes resulta em propensão à violência, não parece ter sido absolutamente mitigada, e menos ainda extinta; ela está muito viva e sempre pronta a eclodir sem muito preâmbulo – ou nenhum aviso.[1]
Tal qual notoriamente conhecido – sendo bibliografia obrigatória na maioria dos cursos – Hobbes, em sua magnum opus[2], descreve o pré-Leviatã (período no qual não havia qualquer forma de política, ou seja, ausência completa de Estado) como uma época de guerra de todos contra todos, sendo “o outro” sempre inimigo já desmascarado ou a desmascarar.
Em razão disso, seria necessário um Estado, com um conjunto de normas reguladoras e um contrato social, as pessoas viveriam pacificamente, configurando um “processo civilizatório”. Ocorre que, atualmente, aquele que deveria ser o guardião tornou-se sinônimo de insegurança. No entanto sem surpresas, afinal, já advertia Leo Strauss “Sempre houve e sempre haverá mudanças de perpectiva surpreendentes e totalmente inesperadas, as quais modificarão de forma radical o significado de todo conhecimento antes adquirido”.[3]
Bom, tal retorno parece ter começado a ocorrer com, muito provavelmente, o mais famoso processo criminal do País até então, datado de 2014 e, aparentemente, longe de findar. Contudo os ânimos acentuam-se com veemência desde o envolvimento e posterior julgamento de determinado sujeito, gerando ódio e mais características referentes ao pré-Leviatã. Não usarei nomes neste artigo, assim, sempre irei referir no decorrer do desenvolvimento como “lado A” e “lado B”.
Pois bem. O objeto primário de justiça de John Rawls[4] parece estar longe de efetivação no momento, tendo em vista que é justamente as instituições sociais as elencadas como alvo de inúmeras reclamações – se é que configura reclamação. Conflitos, em decorrência, principalmente, da guerra entre os chamados “coxinhas” e “comunistas” (arrisco dizer que 90% das pessoas que se dizem comunistas ou que pronunciam outra como tal sequer leram o “Manifesto Comunista” de Karl Marx e Friedrich Engels), formulam divergentes opiniões e paixões perante as instituições.
Tais manifestações são colocadas em “debate” na Ágora[5] brasileira (leia-se Facebook), local no qual pode-se encontrar os mais variados “juristas”, “deputados”, “senadores” e “presidentes” de plantão. Naquela, os debates tornam-se agressões, muitas vezes configurando injúria e difamação. Se Pierre Bourdieu teve muito a refletir acerca da televisão[6], indagações não faltariam com a internet.
Inclusive, muitos representantes, de ambos os lados, já anunciaram sua saída da Ágora, tendo em vista ter conhecimento demais e não suportar alienados, analfabetos, coxinhas ou comunistas. Ora, talvez tais pessoas sejam os heróis imprescindíveis para o desenvolvimento de terrae brasilis, o que estão esperando para assumir o Executivo, Legislativo e Judiciário? Precisamos de vocês! Seus líderes, articuladores, e membros mais ativos parecem ter cursado mais de 43 (número meramente exemplificativo) faculdades de Direito.
Consequência inevitável disso é o crescimento gritante de ódio nos cidadãos brasileiros. Cada vez mais sujeitos do “lado A” odeiam o “lado B”, cada vez mais o “lado B” intolera o “lado A”, isto é, cada vez mais os lados criam barreiras entre si, com discursos lamentáveis propagados. Caso já se conheçam, sem dúvidas passaram a divergir quando descobriem seus posicionamentos.
O sentimento é de insegurança e desconfiança, fazendo com que parcela da população opte pelo fim do desarmamento – mesmo sabendo que outra nação luta pelo iníco dele -, agravamento de leis penais, fanatismos exagerados (perdoe-me a hipérbole), repulsa pelo outro e até mesmo negue a tão almejada justiça social. Analisando rapidamente, é possível concluir que “o estrangeiro” de Georg Simmel[7] predomina na sociedade brasileira, ou seja, você pode compreender todos os condicionamentos uniformes do grupo social, mas não pode fazer parte dele, vez que deve decidir pelo “lado A” ou “lado B”.
Ainda, pão e circo é o que não falta. Afinal, há julgamento “constitucional” (aspas, pois duvida-se a respeito de sua constitucionalidade) comemorado de modo semelhante a final da Copa do Mundo de 2002, intervenção com finalidade contraditória, assassinato em razão de atitudes políticas, representantes da igreja fazendo discurso político, disparos de tiros em caravanas, agressões que quase ceifam vidas em manifestações, cervejada para os apoiadores, televisionamento de reuniões partidárias como se fosse uma novela, isto é, o dia todo no ar, mas, principalmente, muito discurso de ódio por parte dos adeptos do “lado A” e “lado B”.
Denota-se que um dos lados está extremamente feliz no momento, enquanto o outro decepcionado, tendo sua carga de ódio cada vez mais carregada por seus incentivadores. Essa divergência nos ânimos me assusta, me faz indagar o que um sujeito A é capaz de fazer a um B, e vice-versa.
A questão é: Até que ponto isto nos levou? Onde estamos? Perto do fim almejado? Quais os valores que herdamos? Estamos no caminho certo? Ainda somos humanos?
Os últimos acontecimentos, colacionados com as repercussões na grande mídia, na Ágora, meio acadêmico, dentro outros, fazem minha conclusão ser pessimista para as supracitadas indagações. Aparentemente, vivemos uma guerra polarizada, não de todos contra todos tal qual elencava Hobbes, mas entre o “lado A” e o “lado B”. Infelizmente, o flagelo é cada vez mais acentuado, em razão da ausência de um Estado apto, bem como o incentivo de seus líderes para que a divergência permaneça. Em outras palavras, as principais vozes aumentam o ódio e repulsa, enquanto deveriam evitar.
Em tempos escuros, em que a integridade física corre risco diários por conta de sua convicção, a vida é ceifada pelo mesmo motivo, a honra é completamente ignorada pelos semelhantes, bem como a Constituição, no melhor estilo Lassale[8], não passa de um mero pedaço de papel, acarretam um só sentimento. Não, os fatos recentes não trazem à baila alegria, felicidade, tristeza ou decepção, mas tão somente vergonha.
Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia; e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos. (Fernando Pessoa).
Estamos atrasados, já perdemos a travessia.
REFERÊNCIAS E NOTAS
BAUMAN, Zygmunt, Retropia, Trad. Renato Aguiar, Zahar, Rio de Janeiro, 2017;
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Oeiras: Celta Editora, 1997;
HOBBES, Thomas. "Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro; Maria Beatriz Nizza da Silva." Imprensa Nacional Casa da Moeda (2003);
LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. Editora Liber Juris, 1933;
RAWLS, John, Uma Teoria da Justiça, Trad. Almiro Pisetta e Lenita Esteves, Martins Fontes, São Paulo, 2000;
SIMMEL, Georg, O estrangeiro, Trad. Mauro Pinheiro Koury, RBSE, vol 4, n. 12, 2015, pp. 265/271.
[1] BAUMAN, Zygmunt, Retropia, Trad. Renato Aguiar, Zahar, Rio de Janeiro, 2017, p. 19.
[2] HOBBES, Thomas. "Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro; Maria Beatriz Nizza da Silva." Imprensa Nacional Casa da Moeda (2003).
[3] STRAUSS, Leo, Natural Right and History, University of Chicago Press, 1965, p. 21.
[4] RAWLS, John, Uma Teoria da Justiça, Trad. Almiro Pisetta e Lenita Esteves, Martins Fontes, São Paulo, 2000, p. 7.
[5] Espaço da cidadania grega, onde discutia-se diferentes questões políticas, sendo expressão máxima da esfera pública.
[6] BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Oeiras: Celta Editora, 1997 .
[7] SIMMEL, Georg, O estrangeiro, Trad. Mauro Pinheiro Koury, RBSE, vol 4, n. 12, 2015, pp. 265/271.
[8] LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. Editora Liber Juris, 1933.
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