Por Leonardo Isaac Yarochewsky e Bárbara Bastos - 13/02/2016
“Carnaval sem assédio/ É a regra da alegria/ Agora são as minas/ As donas da folia/ Pera lá, rapaz, segure seu amor/ Não é assim que se faz/ Eu também sou da folia e a minha fantasia é só um jeito de brincar/ E pra minha brincadeira, se você se comportar/ Posso até te convidar/ Mas jamais se esqueça da lição: não é não/ Calma lá, Pierrot/ Não é assim que se conquista a Colombina/ Ela é quem determina até onde a brincadeira vai chegar/ É um charme ser cortês/ Ao contrário, estupidez, acaba com qualquer clima/ E pra encerrar, jamais se esqueça da lição: não é não”
Para muitos, o Carnaval não é, há tempos, a festa milenar que marca o “carnis levale” (retirar à carne; adeus à carne) dando início a um período de abstinência e jejum. Pelo contrário, as festividades carnavalescas são cada vez mais associadas à permissividade, extravagância, libertinagem e possibilidade de dar vazão a comportamentos e desejos comumente reprimidos no cotidiano.
Assim, seja na “avenida” ou nos “blocos de rua”, a folia literalmente ocupa o espaço público, mobilizando aqueles que querem se divertir ou praticar algum ato de inspiração social ou política e põe em xeque determinadas regras e valores coletivos.
Cientes dessa conjuntura, foi desenvolvido pelo “Catraca Livre” em parceria com a revista “AzMina” e de blocos de Carnaval de São Paulo, a campanha virtual #CarnavalSemAssédio, com o objetivo de prevenir e inibir práticas amplamente difundidas e, desgraçadamente, arraigadas na sociedade brasileira: assédio e violência sexual. A referida campanha também intentou combater o machismo, não como um problema pontual, mas sim conjectural.
O assédio sexual, que não se assemelha em nada à paquera benfazeja e que se distancia de qualquer espécie salutar de flerte, é prática recorrente na rotina feminina. Para muitos – desavisados e/ou ignorantes - representa parte da cultura do país.
Durante o Carnaval, observa-se o crescimento vertiginoso da pratica de condutas sexuais indesejáveis, amparada pela indefensável escusa de que nos quatro dias de folia tudo é permitido, logo, nada é proibido.
Vale aqui trazer à colação a famosa marchinha “máscara negra” gravada em 1967 por Zé Keti e imortalizada pela voz de Dalva de Oliveira, com seguinte refrão:
“Vou beijar-te agora Não me leve a mal Hoje é carnaval”
Poderia dar a entender que durante o carnaval “vale tudo”! Não, definitivamente não vale tudo. O corpo da mulher não pode ser visto como algo público. É necessário dar um basta definitivo na conduta daqueles que insistem a tratar a mulher e seu corpo como objetos de consumo.
No que diz respeito à bela e premiada marchinha carnavalesca é preciso salientar que esta, com quase cinquenta anos de gravação, foi gravada em outro contexto histórico e cultural. No tempo das “guerras de confete”, da “serpentina”, da época em que a maior extrapolia era cheirar “lança perfume”.
Hodiernamente, findo o Carnaval, surgem inúmeros relatos de mulheres que foram agredidas por dizerem “não”. Ações educativas observadas em alguns blocos, como ”Mulheres Rodadas” e “A Mulherada” passaram praticamente despercebidas por parte da grande mídia e foram, por muitos, questionados, até explicarem que lutam pelo óbvio: respeito. Respeito independentemente da situação ou ocasião. Na folia ou fora dela, respeito é bom e todo mundo gosta.
Não obstante, tais avanços são acometidos por uma febre que sempre paira sobre as lutas feministas (uma vez que não há luta sem resistência), qual seja a da menos valia. Assim, na tentativa de distorcer a reivindicação por direitos iguais, tais como o de poder dançar nas ruas durante o Carnaval sem ter o braço ou cabelo puxado para terem um beijo “roubado”, criam-se justificativas implausíveis a fim de naturalizar um comportamento essencialmente opressivo.
Espantosamente, segundo pesquisa realizada pelo Instituto Data Popular, 61% dos homens entrevistados afirmaram que uma mulher solteira que vai pular Carnaval não pode reclamar de ser cantada e 49% disseram que bloco de Carnaval não é lugar para mulher "direita". Mais uma vez, resta demonstrado que práticas machistas insistem em relegar as mulheres ao plano do domínio privado, sem poderem exercer plenamente sua cidadania no âmbito público.
Tal registro é mera fotografia do quanto se fere direito essencialmente humano, em virtude da distorção da realidade operada por pensamentos retrógrados e conservadores. Inseridas na mesma lógica do “mereceu ser estuprada” criam-se as alegorias da mulher “direita” e daquela que “mereceu ser assediada”, e por aí vai.
Márcia Tiburi refere-se ao que chama de “lógica de estupro” e nesta perversa lógica, toda e qualquer culpa recai sobre a vítima. Segundo Tiburi, “ao fazer recair a culpa sobre a vítima, o estuprador não é responsabilizado por seu ato. O estuprador projeta sua culpa no outro e pode aproveitar sua liberdade”. Pela “lógica do estupro”, diz Tiburi mais adiante, a mulher é sempre “caça”, “presa”. Pela “lógica do estupro”, pensa-se mais no “erro” da vítima do que no “erro” do criminoso.[1]
Olvida-se do fato de que: “as explicações universais tendem a uma simplificação das relações reduzindo-as à mera descrição dos sujeitos sociais, sem, contudo, nomeá-los, situá-los numa dada configuração social perpassada por laços culturais e históricos”. [2]
Problematizar o tema é preciso, e serve de inspiração para o sistema criminal como um todo, uma vez que discussões a respeito da (não) utilização do espaço comunitário pela exclusão afeta toda a humanidade e conceitos muito caros a ela, como o de igualdade material, em detrimento da normalização e da dominação de uma determinada parcela considerada desmerecedora de qualquer tipo de estima.
No que pese todos os dados de violência contra a mulher, durante ou fora do Carnaval, não se pode atribuir ao direito penal a função de prevenir tais praticas. É sabido que o direito, assim como a pena, é manifestação e instrumento de poder. Não sendo, portanto, legítima para conter esta ou qualquer outra espécie de violência.
Como já observou, acertadamente, Maria Lúcia Karam, “a criação de novos tipos penais ou a maior severidade da repressão penal em relação a violências praticadas contra a mulher em nada podem contribuir para o reconhecimento e garantia de seus direitos, tampouco trazendo qualquer contribuição para que se avance na concretização da igualdade entre homens e mulheres e na construção de uma nova forma de convivência entre os sexos”. Ao final, conclui Karam: “o reconhecimento e a garantia dos direitos da mulher não irão encontrar na reação punitiva um instrumento adequado para sua realização”.[3]
Como é cediço, o direito penal, além de não proteger bens jurídicos a que se propõe, é seletivo, estigmatizante e repressivo, de modo que a ele não se pode conferir o papel de panaceia para todos os males da sociedade.
Assim, o enfrentamento das questões apresentadas neste artigo e da violência de gênero, bem como a superação dos vestígios de uma sociedade patriarcal e machista ou qualquer que seja a forma de discriminação, “não se darão através da sempre enganosa, dolorosa e danosa intervenção do sistema penal”.[4]
Finalmente, como disse Chico Buarque, “deixe a menina sambar em paz”.
Belo Horizonte, verão de 2016.
Notas e Referências:
[1] TIBURI, Marcia. Como confersar com um fascista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2015.
[2] PEREIRA.Lusia Ribeiro. A QUESTÃO DO GÊNERO COMO CATEGORIA HISTÓRICA DE ANÁLISE NA BUSCA DA EFETIVAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO in DIFERENÇA SEXUAL e desconstrução da subjetividade em perspectiva. Belo Horizonte: D’PLÁCIDO, 2016.
[3] KARAM, Maria Lúcia. Sistema penal e direitos da mulher. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 3, n. 9, janeiro/março. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
[4] KARAM, Maria Lúcia. Violência de gênero: o paradoxal entusiasmo pelo rigor penal. Boletim do IBCCrim. Ano 14, nº 168 – Novembro/2006.
. . Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). . .
. . Bárbara Bastos é Estagiária e Acadêmica de Direito da PUC-Minas. . . .
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