RESPONSABILIZAÇÃO DO AGENTE POR APROPRIAÇÃO INDÉBITA TRIBUTÁRIA

09/02/2020

Questão de salutar importância dogmático-jurídica nos é apresentada neste início de ano de 2020, para além do advento do pacote anti-crime, da lei de abuso de autoridade e demais modificações legislativas penais e processuais penais.

Referimo-nos ao julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, do RHC nº 163/334, motivado pelo pretérito julgamento do HC nº 399.109 pelo Superior Tribunal de Justiça. Na ocasião da apreciação do referido recurso em habeas corpus, a Corte Constitucional consolidou a controversa tese de que o não recolhimento do ICMS cobrado do adquirente da mercadoria do produto ou serviço, de forma “contumaz” e com “dolo de apropriação”, configura o delito insculpido no Art. 2º, II, da lei 8.317/90, o qual diz que:

Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:

II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

A lei em epígrafe define crimes contra a ordem tributária, ordem econômica e contra as relações de consumo, instituindo, portanto, que a conduta anteriormente narrada configura crime contra a ordem tributária, desde que haja o dolo de apropriação por parte do contribuinte que deixa de recolher aos cofres públicos os valores referentes ao ICMS declarado.

Contudo, apesar da exaustiva e aprofundada análise emanada do Excelso Pretório acerca de tema de alongada discussão doutrinária e jurisprudencial, a tese fixada mostra-se de difícil aplicação prática, em razão de percalços inerentes ao próprio tipo penal em comento.

Desta forma, renunciando aos apontamentos direcionados a exegese da interpretação adotada pelo Supremo para definir como criminosa a conduta de apropriação de valores referentes ao ICMS cobrado do contribuinte da mercadoria ou serviço, focaremos tão somente na análise processual do caso em tela, qual seja: a responsabilização do agente que pratica a conduta delitiva.

A indagação imposta pela análise técnica da decisão exarada pelo STF nos remete a vetusta discussão acerca da responsabilidade penal das pessoas jurídicas.

Sabe-se que no Direito Penal Brasileiro a regra é a responsabilização penal da pessoa física, de forma subjetiva, atendendo-se a tríplice verificação desta, qual seja: imputabilidade do agente, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.

Entretanto, no ordenamento penal pátrio há situações que excepcionam a regra de responsabilidade penal da pessoa física e permitem a culpabilidade de pessoas jurídicas, como os crimes ambientais, determinados crimes contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.

Todavia, não há salvaguarda jurídica para responsabilizar uma pessoa jurídica por crimes tributários, momento em que verificamos o ponto de atrito entre a premissa axiomática adotada pelo Supremo e a aplicabilidade eficaz da norma: quem poderia ser responsabilizado pelo crime do Art.2º, II da lei 8.137/90?

Neste caso de responsabilização por crime tributário cometido por pessoa jurídica – visto que o ICMS é tributo típico de empresas -, atribuir a culpabilidade pela conduta ao sócio parece medida de fácil adoção e razoável aceitação pragmática.

Contudo, não nos parece medida de lealdade dogmática, pela explícita dificuldade de se atribuir a responsabilidade a um sócio minoritário, por exemplo, que não detém autonomia para a prática criminosa no âmbito empresarial, nem tão pouco para interferir nos trâmites contábeis da sociedade.

Desta forma, não é possível apurar a culpabilidade deste agente, eis que este, por não ter poderes de gerência, não possuiria o elemento da culpabilidade rubricado pela “exigibilidade de conduta diversa”.

Com isto, permitimo-nos superar os apontamentos referentes ao sócio minoritário que concorda com o não recolhimento do ICMS cobrado do contribuinte e embutido no preço da mercadoria ou serviço, por implicar na mesma solução alhures mencionada: irrelevante refletir acerca da intenção e concordância do agente, considerando a impossibilidade deste de intervir nos trâmites contábeis da empresa.

Para possibilitar a análise da responsabilidade penal decorrente de crimes tributários, socorremo-nos do Art. 135 do Código Tributário, o qual impera que são pessoalmente responsáveis pelas obrigações tributárias praticadas com excesso de poder ou infração de lei os diretores das pessoas jurídicas de direito privado. In verbis:

Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:

(...)

III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.

Deste modo, concluir-se-ia que o responsável pelo crime de apropriação indébita tributária ante o não recolhimento do ICMS embutido na mercadoria ou serviço é o sócio com poderes de gerência, tendo em vista que este é também o responsável tributário pela obrigação resultante de infração legal, conforme narra o dispositivo retro colacionado.

Ainda assim, não se verifica a plausibilidade da solução proposta, eis que impõe indagar acerca de “qual sócio com poder de gerência” poderia ser responsabilizado pelos fatos em análise?

Isto é, o sócio com poder gerencial responsável pelo não recolhimento do ICMS com dolo de apropriação é aquele que exercia a gerência da sociedade empresária na época do fato gerador, na época da ocorrência da conduta típica (deixar de recolher), ou se faz necessário o acúmulo das duas condições temporais?

Caso se adote a condição temporal que se satisfaz com a gerência tão somente à época do fato gerador, restaria maculada a própria tipicidade do delito em comento, visto que este exige, expressamente, que o agente seja sujeito passivo da obrigação tributária, não se podendo aplicar ao sócio que não detinha a qualidade gerencial à época do cometimento da conduta ilícita a responsabilização penal, pois este não era sujeito passivo, responsável pelo recolhimento do tributo.

A figura do sócio-gerente que detinha a gestão da sociedade apenas na época da prática do ilícito, mas não na época do fato gerador denota impossibilidade de aplicação pragmática quanto a responsabilização, visto que este não possuiria dolo de deixar de recolher o tributo devido, perdendo-se a elementar subjetiva do tipo.

Portanto, nota-se que ser sujeito passivo da obrigação tributária é uma das situações fático-jurídicas exigidas para a tipificação do delito, a qual deve aliar-se ao dolo de se apropriar dos valores não recolhidos, para que se tipifique o crime de apropriação indébita tributária.

Ante o exposto, nota-se que a soma das “condições temporais de exercício da gestão” por parte do sócio-gerente faz-se necessária para o preenchimento dos requisitos viabilizadores da responsabilização penal do sócio-gerente.

Conquanto, apesar das conclusões pretéritas acerca do momento de exercício do poder de gestão do sócio-gerente para a responsabilidade penal da conduta insculpida no Art. 2º, II da Lei 8.137/90, é importante ressaltar que, apesar da verificação de poderes gerenciais pelo sócio à época do fato gerador e da prática do ilícito, o dolo necessário para tipificação do crime de apropriação mostrar-se-á, ainda, de difícil apuração em casos que denotam grandes aglomerados empresariais.

Isto é, como apurar-se-ia o dolo do sócio-gerente de mega-empresa, dividida em diversos departamentos, com dezenas de filiais e centenas de operações financeiras sendo realizadas todos os dias no exercício da atividade empresarial. Neste cenário, seria conveniente atribuir dolo ao sócio-gerente de determinada sociedade, dividida em departamentos especializados, por ato ilícito-tributário (e neste caso, penal) praticado por funcionário especializado de determinado departamento, e que se encontra em ponto hierarquicamente distante e, em razão disto, fora de seu controle direto?

Não vislumbramos solução lógica e simplória para a reflexão provocada, visto que se perfaz em controvérsia a muito presente na prática penal econômica, facilmente verificada nas recentes (e ainda “vigentes”) ações penais que visam punir lavagem de dinheiro, corrupção passiva e outros delitos típicos da criminalidade econômica, as quais acabam por desaguar na punição de diretores empresariais, os quais encontram-se departamentalmente distantes dos reais autores dos fatos típicos puníveis, não exercendo um controle efetivo sobre todas as práticas delitivas de seus subordinados.

 

Notas e Referências

[1] BRASIL. Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990 Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências, Brasília, DF, dez de 1990. Disponivel em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8137.htm>. Acesso em: 20 jan. 2020.

[2] PRADO, Luiz Régis. Direito Penal Econômico. 6ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[3] TAKANO, Caio Augusto. De quem é a responsabilidade pelo crime de apropriação indébita tributária?, 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jan-17/opiniao-quem-responsabilidade-apropriacao-indebita-fiscal>. Acesso em: 20 jan. 2020.

 

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